domingo, 3 de novembro de 2019

Narrativas, de Hermann Hesse




Olá,


Os autores laureados com o Nobel de Literatura são, frequentemente, gênios maduros e com vasta produção literária, uma justificativa para a avaliação ampla de obras que se espraiam em múltiplos planos. Foi o caso do escritor alemão naturalizado suíço Hemann Hesse (1877-1962), premiado em 1946 em virtude de "seus escritos inspirados que, enquanto crescem em audácia e penetração, exemplificam os ideais humanitários clássicos e as altas qualidades de estilo", nas palavras do comitê de premiação. De fato, Hesse foi um dos autores mais influentes de seu tempo, autor de obras profundamente reflexivas e que se debruçaram sobre a natureza e a psiquê humanas, tendo sido considerado essencial para o desenvolvimento dos movimentos libertários dos anos 1960 e 1970, como o hippie e as lutas pacifistas anti-Guerra do Vietnã, por exemplo. A biografia do escritor, de algum modo, contribuiu para esta fama junto a uma juventude ávida por mudanças comportamentais e paradigmáticas: contrariando o desejo dos pais em tornar-se pastor luterano, Hesse abandonou a fé cristã, rompeu com a família e exilou-se voluntariamente na Suíça, onde passou a dedicar-se integralmente à literatura. O autor também travou contato com a espiritualidade hindu e o mundo budista, experiência da qual resultou seu livro mais conhecido, Sidarta, uma jornada espiritual baseada na trajetória de Sidhartha Gautama, o Buda. A obra, publicada em 1922, tornou-se um grande sucesso de público e também de crítica, sendo frequentemente referida e utilizada pela cultura popular. Cito também Demian (1917), O lobo da estepe (1927) e O jogo das contas de vidro (1943), todos com uma excelente recepção crítica e contando com grandes vendagens.

Estas obras, como se pode notar, foram escritas antes da atribuição do Nobel e formaram o capital necessário para sua escolha ao prêmio. Gênio maduro, conforme dissemos, Hesse era um autor consagrado à época e sua eleição foi uma escolha óbvia e praticamente isenta de controvérsias. Gênio este que, no entanto, já dava profissão-de-fé de seu talento narrativo e de sua intensidade temática desde as primeiras obras. E foram seus primeiros contos, publicados esparsamente em revistas literárias e volumes avulsos, depois reunidos sob o título de Narrativas (1977), que escolhi para leitura e análise nesta postagem. O livro traz contos escritos entre 1900 e 1917 e, num exercício de crítica genética, apresentam algumas das temáticas exploradas posteriormente na obra do autor ainda em caráter embrionário, i. e., no que pese à constituição formal ainda em processo de afirmação, fornecem um importante testemunho do nascimento do grande autor que viria ele a ser. Para a evidenciação dessa prova, analisaremos aqui três dessas narrativas.

A primeira é "O lobo", narrativa curta, mas de uma beleza pungente e cuja impressão permanece no leitor muito tempo depois de concluída sua intensa leitura. Trata-se da história de três lobos que, desgarrados de sua alcateia em meio a um inverso rigoroso e repleto de fome, partem em direção ao cume do Chasseral, uma montanha da região do Jura, cordilheira alpestre na fronteira entre a Suíça e a França. Buscam alimento e, principalmente, nutrem esperanças de sobrevivência longe de sua região original, onde os camponeses, sequiosos de defender seus rebanhos - mais que necessários em um inverno tão intenso -, caçam impiedosamente todos os lobos que encontram pela frente. A prosa de Hesse é de grande beleza e de grande impacto, ao descrever o avanço dos três lobos pela neve alta e ao narrar sua expectativa, sua fome, seu medo, sua esperança. No caminho, encontram e atacam um curral. Dois deles são mortos pelos aldeões enfurecidos, mas o terceiro deles (o lobo do título do conto), mesmo alvejado por um tiro, consegue fugir e, escalando a montanha, encontra um pouco de paz na visão maravilhosa da lua que se ergue na noite expectante de perigos:

"Finalmente, o exausto animal atingira o cimo. Estava parado num grande campo de neve levemente inclinado, perto do monte Crosin, bem acima da aldeia de onde fugira. Não sentia fome, mas uma dor surda e fisgante na ferida. Um latido leve e doente saiu de sua boca pendida, o coração batida pesada e doloridamente, sentindo a mão da morte a comprimi-lo como um peso indizivelmente grande, Um pinheiro amplo e solitário o atraiu; sentou-se ali, fitando triste a noite cinzenta de neve. Passou-se meia hora. Nisso uma luz vermelha e baça caiu sobre a neve estranha e macia. O lobo ergueu-se gemendo, virando a bela cabeça em direção da luz. Era a lua, que se levantava no sudeste, imensa, vermelha como sangue, lenta, cada vez mais alta no céu enevoado. Há muitas semanas não fora mais tão vermelha nem tão grande. Triste, o olho do animal moribundo prendia-se à baça lua, um uivo fraco estertorou mais uma vez, dorido e sem entonação, pela noite." (p. 16)




O mimetismo entre o vermelho daquela intensa e inesperada lua e o vermelho do sangue que escapa de sua ferida despertam nele, ainda que envolto em dor e tristeza ante à morte iminente, seu instinto básico (o uivo), marca distintiva de sua espécie no mundo. Espera assim encontrar algum tipo de paz e de consolo na hora final. Mas é então que a selvageria invade a cena. Não advinda dele, mas dos caçadores e aldeões que o perseguem e que, atraídos por seu triste lamento, chegam até o cume do Chasseral e chacinam-no de modo cruel e violento: "Então viram que já estava à morte, caindo sobre o animal com paus e cacetes. Mas ele nada sentia" (Idem). O narrador poupa o lobo da dor, num tributo ao dado "humanizador" que extraiu de sua triste figura à beira da morte, transferido aos outros, os humanos, o caráter selvagem que é peculiar aos animais de natureza caçadora, como os lobos. Ou os próprios homens. Mesmo com algumas ressalvas ao estilo narrativo (certa falta de cuidado ao repetir expressões e a tendência à adjetivações excessivas), a impressão causada pelas imagens pintadas no conto, em especial aquelas que se dedicam a descrever a região do Jura e a retratar os passos dos lobos pela neve, já anteveem o narrador formidável que, duas décadas depois, escreverá alguns dos mais imagéticos romances do século XX.

Outro exemplo é o conto "Carlos Eugenio Eiselen" que, de certo modo, tem uma ligação muito estreita com a própria trajetória de Hermann Hesse e sua recusa em seguir os planos familiares em nome de seu desejo incontornável de tornar-se escritor. Na história, acompanhamos a trajetória de um rapaz, filho de um remediado comerciante, para quem o pai, além de dar o aristocrático e duplo nome de Carlos Eugenio, predisse um futuro auspicioso. Para tal, matricula-o ainda menino em um curso de latim. Mas o garoto, errático, gazeteia as aulas, fazia pilhéria dos colegas e mestres e, certo dia, instando por um colega de curso, fugiu para a floresta afim de encontrar os moicanos, sobre os quais lera num livro da escola, deixando o pai e a mãe de cabelos em pé. Mesmo surrado quando retorna, o rapaz volta a aprontar. Mas suas notas são altas e ele progride nos estudos, vindo a ser matriculado na universidade da capital. Os pais fazem enormes economias e sacrifícios para mantê-lo lá. As cartas, antes frequentes e afetuosas, tornam-se raras e lacônicas, o que faz a mãe desconfiar e, em combinação com o marido, parte para a capital, onde descobre o filho mergulhado em dívidas com jogo e mulheres, além de saber que ele não frequenta curso algum, estando para ser expulso da universidade. É então que ele revela aos pais o desejo de ser poeta. De volta para casa, cheio de livros e com alguns textos publicados em revistas (pagas), Carlos dedica-se fervorosamente à leitura. Na parede, pendura um quadro retratando um jovem poeta, altivo e de olhar desafiador, protótipo de que deseja ele ser no futuro. Carlos almeja escrever uma obra-prima, um poema inesquecível e que entrará no rol da grande literatura de língua alemã, através da qual justificaria seus anos de vagabundagem:

"Se quisesse escrever como esses antiquados fabricantes de romances e gente dessa espécie, pensava, teria sucesso certo! Mas quem oferecia unicamente o mais íntimo, mais profundo, mais pessoal, quem punha seu orgulho na criação de novas formas, no cultivo duma linguagem pura e solene, naturalmente tinha de acabar mártir desses ideais. Não, mesmo se jamais fosse recompensado com sucesso e glória, não falaria ou cantaria outra coisa que não os estados de alma e visões profundas e escolhidas de suas horas mais íntimas." (p. 59)

Os pais, porém, colocam-no conta a parede - em especial a mãe que, depois de tomar pé dos gastos inúteis do filho, tomara o controle da situação financeira da família - e lançam-lhe um ultimato: chegara a hora trabalhar. Ele implora por seu desejo de escrever e, após os debates, os três chegam a um termo: se até a primavera a tal obra-prima não ficasse pronta, teria que ganhar a vida como qualquer um. Carlos Eugênio vê-se pela primeira vez livre da pressão familiar para enfim escrever. Mas as obrigações domésticas (uma "cláusula" do acordo com os pais) e os pequenos trabalhos na loja do pai (que precisa realizar para seus pequenos prazeres, como livros, bebida e cigarros) acabam por afastá-lo da literatura. Aos poucos, ele vai descobrindo que não escreverá nada. Mergulha no trabalho e abandona gradativamente os livros. O tempo passa, ele se casa e assume o armazém após a doença do pai. Torna-se um comerciante modelar e o negócio prospera. Os livros permanecem fechados. Resta apenas o quadro do jovem poeta e seu olhar desafiador, ao qual Carlos agora responde com desdém. Na verdade, o dado autobiográfico presente em "Carlos Eugenio Eiselen" é apresentado ao leitor em inversão, quer dizer, Hesse imagina não o que lhe aconteceu na realidade (pois, ao abandonar a família para dedicar-se integralmente à literatura, acabou por tornar-se um dos maiores escritores do século XX), mas o que teria lhe acontecido se tivesse obedecido os pais, ficado na Alemanha e seguido o projeto paterno de tornar-se pastor.

O terceiro exemplo, talvez um dos mais instigantes e que apresenta certas características fantásticas que, de algum modo, antecipam a literatura distópica tão em voga tempos depois, é o conto "O europeu", uma fábula sobre o fim do mundo e as novas possibilidades de reconstrução da Terra e da raça humana, agora sob nova e (para a época) inaudita perspectiva. O conto começa com o narrador, extremamente irônico, vaticinando que Deus, irritado com o decurso da Primeira Guerra Mundial - momento em que se dá a narrativa -, resolveu dar cabo do mundo através de um novo dilúvio. Imediatamente começa a chover torrencialmente, mas os dois lados insistem a continuar o conflito, erguendo plataformas, diques e torres cada vez mais altas à medida em que o nível das águas sobe, para continuar atacando-se mutuamente. Por fim, resta apenas um deles em um bote, designado apenas como "o Europeu" (sendo o texto escrito em 1917, Hesse optara por deixar em aberto do desfecho da guerra), que goza as "palmas da vitória" (p. 276), sem que aparentemente reste mais ninguém para presenciá-la. É então que aparece a Arca bíblica e o próprio Noé (apenas nomeado como "o velhíssimo patriarca"), que ordena que o pesquem e o tragam à bordo da embarcação. Assim como os animais ali dentro, o europeu é tratado como um exemplar a ser salvo. Há outros exemplares da raça humana além dele, sempre aos pares: um casal de negros, de índios, de hindus, de chineses etc. Cabe ao europeu escrever e inventariar tudo. Para passar o tempo, os passageiros da Arca decidem iniciar uma "competição", na qual homens e bichos deverão mostrar seus talentos. Apenas o europeu não toma parte dela, criticando seus colegas:

"O europeu, que era espantosamente pouco querido, despertara muitas vezes a má vontade de seus competidores humanos, por julgar com dureza e desprezo as realizações dos demais. Quando o índio flechara um pássaro no céu azul, o homem branco dera de ombros, afirmando que com vinte gramas de dinamite se ativera três vezes mais alto! E quando o convidaram a demonstrá-lo não conseguira, mas contara que, se tivesse isso ou aquilo, e dez coisas mais, então conseguiria fazer. Também zombara dos chineses, dizendo que o transplante de trigo novo exigia um trabalho imenso, e que um trabalho tão escravizador não poderia, com certeza, fazer um povo feliz. O chinês respondera, sob aplausos, que um povo era feliz quando tinha o que comer, e honrava os deuses. Mas também a isso o europeu respondera com uma risada irônica." (p. 278)

Hesse, nesse sentido, utiliza a personagem do europeu para evidenciar o incurável etnocentrismo dos habitantes do continente em face dos outros povos, seus modos de produção, suas crenças, seus saberes e suas tecnologias, sempre consideradas arcaicas quando em cotejo com o que de mais moderno havia sido tecido no Velho Mundo. Por seu turno, Noé, observando a competição, sorri feliz e decide que a humanidade já pode recomeçar. Os demais, no entanto, não concordam, dizendo que faltava o europeu explicar direito qual era a sua especialidade. Dirigindo-se a ele, o velho pergunta-lhe o que de melhor era capaz de fazer. E todos o tomam como soberbo e gozador quando este respondeu que sua habilidade consistia em fazer mais feliz a vida dos homens, mas que isso só seria passível de ser observado e percebido com o passar do tempo, gerações e gerações depois. Irritados, os outros homens e mulheres questionam Noé, dizendo-lhe ter sido inútil salvar a vida daquele homem. O velho responde que o europeu fora salvo justamente para mostrar porque se corrompeu a Terra, pela soberba e ganância de alguns. E, para concluir, esclarece que ele fora o único a ser salvo sem mulher; sendo assim, não seria capaz de se reproduzir e de estragar a nova vida que viria depois que as águas baixassem. Embora possamos considerar um tanto ingênua a conclusão do conto, sua mensagem antecipa a visão não-ortodoxa que o autor apresentou depois em suas obras mais contundentes, como O lobo da estepe ou Sidarta, nas quais a visão eurocêntrica tradicional de pensamento cede lugar a novas formas de compreensão do mundo, com incursões pelo pensamento oriental e a abertura à psiquê descortinada pela psicanálise, tão cara ao autor.

Os três exemplos aqui assinalados mostram o jovem Hermann Hesse em seus momentos iniciais como narrador e fabulista, exercícios nos quais é possível antever o excepcional escritor que ele se tornaria nas décadas seguintes, atingindo uma clareza narrativa e um construção estética pautada pela reflexão e pela desconstrução dos paradigmas de pensamento que fizeram dele um dos autores mais dignos do Prêmio Nobel. Sendo um dos nomes mais festejados da literatura de língua alemã ainda em nossos dias, Hesse continua a ser uma influência, tanto temática quanto pessoal. Sua recusa aos modelos (primeiro familiares, depois literários) faz com que sua figura siga inspirando gerações, como aquela que abraçou a liberdade nos anos 1970, como a que se uniu em torno de uma nova Alemanha pós-reunificação. Ouso dizer que a leitura de seus romances e contos, além de trazerem um "benefício para a humanidade" (invocando outra vez as palavras de Alfred Nobel), pode ser capaz de trazer alguma direção aos incertos tempos em que vivemos, nos quais a verdade - tão almejada pela escrita de Hesse - encontra-se cada vez mais borrada pelos falsos discursos e ideologias políticas.

Jorge Verly

Referência da leitura: HESSE, Hermann. Narrativas. Trad. de Lya Luft. Rio de Janeiro: Record, 1978.





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