terça-feira, 13 de abril de 2021

Noche cerrada, de Vicente Aleixandre

 




Olá,


Vicente Aleixandre (1898-1984) tinha quase 80 anos e era o mais consagrado poeta espanhol de sua geração quando foi anunciado como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1977, em razão de sua "escrita poética criativa que ilumina a condição do homem no cosmos e na sociedade atual, ao mesmo tempo que representa a grande renovação das tradições da poesia espanhola entre as guerras", conforme o anúncio oficial da Academia Sueca. De fato, a década de 1970 foi a que mais poetas o Nobel premiou: ao lado de Aleixandre foram escolhidos Pablo Neruda, Harry Martinson, Eugenio Montale, Odysseus Elýtis e Czeslaw Milosz. Diferentes entre si, a escolha desses autores evidencia uma tendência da Academia Sueca, naquela década, para os escritores de expressão essencialmente lírica. 

A escolha do nome de Aleixandre causou espanto nas rodas literárias do mundo (ele era era pouquíssimo editado fora da Espanha), mas não em seu país natal, onde, ao lado de Rafael Alberti e Jorge Guillén, era um dos sobreviventes da Geração de 27, grupo de poetas, contistas, dramaturgos e prosadores espanhóis que, influenciados pela estética vanguardista das duas primeiras décadas do século XX, em especial o surrealismo, passou a renovar as letras espanholas. Sua produção se estendeu entre as décadas de 1920 e o início dos anos de 1980, alcançando imensa popularidade em seu país. Opositor do franquismo desde o início, Aleixandre não se exilou como fizeram muitos escritores espanhóis perseguidos. No entanto, foi sistematicamente censurado ao longo dos anos, o que de certo modo acentuou seu prestígio e sua avaliação nos meios literários de seu país. Mas não apenas por isso, como veremos.

Os críticos costumam assinalar duas fases distintas da escrita poética de Vicente Aleixandre. A primeira delas, iniciada na década de 1920 e estendendo-se até meados dos anos 1950, diz respeito à influência das imagens e visões experimentais advindas da influência surrealista, com o homem a transitar por lugares, sentimentos e sensações, tudo isso marcado por um formalismo experimental e vigoroso. Já a segunda fase, iniciada na segunda metade da década de 1950 e que vai até a morte do poeta, apresenta um Vicente Aleixandre menos preocupado com as experimentações de caráter de formal e mais centrado liricamente na figura do homem em meio ao existente e onde as imagens são acessórias à experiência de viver. No Brasil não há livros de Aleixandre publicados e mesmo em Portugal encontramos apenas uma Antologia de Vicente Aleixandre, editada em 1977 e fora de circulação. Por isso, para esta postagem, recorri à antologia Noche cerrada, em espanhol original e publicada em 1998. Curta, mas bastante significativa, apresenta poemas de todos os livros publicados em vida pelo autor, desde Ámbito (1928) até Poemas de la consumación (1974). Selecionei três deles para comentar. A tradução é minha, pelo que peço sinceras desculpas.

Comecemos pelo poema que dá título à antologia:


NOITE FECHADA (1928)
 
Campo nu. Apenas
a noite desarmada. O vento
insinua surdas
batidas contra sua tela.
 
A sombra avança,
fria, sobre teu seio
sua grave seda, negra,
fechada. Resta oprimido
 
o vulto travestido
de noite, distinto, quieto
sobre o límpido plano
atrasado do céu.
 
Há estrelas falhadas.
Dobradiças polidas. O gelo
flutua à deriva
no alto. Frio lento.
 
Uma sombra passa,
sobre o contorno sério
e mudo bate, sinistra,
seu secreto chicote.
Flagelação. Corais
de sangue ou luz ou fogo
sob as sedas se anunciam,
cedem, fogem logo.
 
Carne ou luz carnal,
profunda. O vento vive
porque antecipa lufadas,
cruzes, pausas, silêncios.
(p. 3-4)


Trata-se de um poema de claro toque surrealista, na clave da produção inicial de Aleixandre e que, conforme disse, demarca sua filiação à Geração de 27. Nele, a noite, fechada, transfigura-se ("Resta oprimido / / o vulto travestido / de noite") em crescente opressão. Ou mais, levando em conta o título e o próprio "clima" que o poema encena, a uma ideia de aprisionamento. Tanto eu-lírico (ou narrador terrível, diria) quanto o leitor são enfeixados em torno da noite assombrosa. E em meio a ela, o castigo ao mesmo tempo incorpóreo (a sombra) e físico (o chicote) impingido pela noite àqueles que a atravessam. Um castigo, no entanto, que não dura ("cedem, fogem logo") para dar lugar, ao fim da noite, a algo de luz que se insinua (ainda que uma "luz carnal"). Mas não é ela, a luz mortiça, que prevalece ao final da jornada noite adentro, mas sim aquilo que o leitor intui desde o início do périplo ("Campo nu. Apenas / a noite desarmada") e que, afinal se apresenta como chave-de-compressão do texto: "silêncios", palavra que podemos ler na linha final do texto. Dentro de uma perspectiva de escrita automática, adotada pelos escritores surrealistas (e, de certo modo, presente na própria concepção do movimento enquanto momento de abstração da arte e de construção de "sentido" a partir da montagem de imagens), podemos dizer que Vicente Aleixandre aqui leva essa premissa para uma espécie de surrealismo de horror (talvez presente, de certa visada, nos quadros de Dalí), i. .e, para a construção de imagens terríveis em busca de uma beleza presente no mistério e na incompreensão. E, friso, nos silêncios.



Outro poema que sinaliza a relação entre o poeta espanhol e a estética surrealista é "Poema de amor":


POEMA DE AMOR (1932)


Te amo sonho do vento
conflui em meus dedos esquecido do norte
nas doces manhãs do mundo de cabeça para baixo
quando é fácil sorrir pois a chuva é branda
 
No seio de um rio viajar é uma delícia
oh peixes amigos dizei-me o segredo dos olhos abertos
do meu olhar que vai dar no mar
sustentando a quilha dos distantes barcos
Eu os amo – viajantes do mundo –, aqueles que dormem sobre a água
homens que vão à América em busca de suas roupas
os que deixam na praia sua ferida nudez
e sobre o convés do barco atraem os raios da lua
 
Caminhar esperando algo é alegre é belo
a prata e o ouro não alteraram o fundo
saltam sobre as ondas e sobre as espumas
e fazem música ou sonho para os cabelos mais louros
 
Pelo fundo de um rio meu desejo escapa
dos inúmeros povos que nas gemas tiveram
trevas vestidas de negro
e ao longe desenhadas nas costas.
 
A esperança é a terra é a bochecha
é uma imensa pálpebra onde eu sei que existo
Lembra? Eu nasci para o mundo numa noite
em que somar e subtrair eram a chave dos sonhos.
 
Peixes árvores pedras corações medalhas
em suas concêntricas ondas – sim – detidas
eu me movo e giro e procuro o central
caminho – viajantes do mundo – do existente futuro
para além dos mares que em meus pulsos batem
(p. 11)


Sendo muitas vezes reputado como um poeta também de temática amorosa, o título deste poema aparentemente engana o leitor, como a mim enganou. Digo aparentemente porque os versos iniciais ("Te amo sonho do vento / conflui a meus dedos esquecido do norte / nas doces manhãs do mundo de cabeça para baixo") nos colocam no plano de um amor não-físico, não-pessoal, não-carnal, mas um amor-universal pelos elementos (e eles abundam pelo texto, como se vê/lê nas imagens montadas com a perícia poética). Não um discurso a/ao amado/amada, mas um discurso às coisas e ao sabor de passar por eles, viajar por elas, vê-las e recolhê-las como objetos-sensações. Um discurso ininterrupto, de um só fôlego, contínuo, perpétuo: o poema não apresenta qualquer pontuação e lê-lo é aderir a esse jorro, a esse rio no qual "viajar é uma delícia". De fato, o clima aqui é absolutamente oposto ao de "Noite fechada", outro é o diapasão, embora a estética surreal ainda os irmane. Porém, se lá as imagens são terríveis e noturnas, aqui elas são solares e extáticas e a própria lua, símbolo da noite, serve para banhar de luz os homens que "vão à América em busca de suas roupas / os que deixam na praia sua ferida nudez / e sobre o convés do barco atraem os raios da lua". A única menção ao elemento escuridão é das gemas no fundo dos rios, "trevas vestidas de negro". Mas antes de apresentá-las, o poeta já avisa: "dele(a)s meu desejo escapa". À medida em que o poema avança na viagem (dos homens, do poeta, nossa enfim pelos elementos que nos cercam), as imagens se sucedem dando ao texto a própria ideia de velocidade, melhor, de deslocamento, como se víssemos um filme em sucessão ("Peixes árvores pedras corações medalhas") enquanto seguimos. E é bastante significativo que a viagem que começou no rio de delícias, de ouro e prata imutável e de povos ancestrais, termine "para além dos mares que em meus pulsos batem", como se a imagem de um único mar fosse (e é) insuficiente para dar conta do cotejo entre o Todo (o existente, os elementos) e o homem navega.

Em sua segunda fase, a poesia de Vicente Aleixandre se torna mais concisa e, de algum modo, menos indomável, não abrindo mão, contudo, da afeição às imagens e aos efeitos que elas são capazes de construir. É o caso do poema que se segue:

A UMA CIDADE RESISTENTE (1962)
 
                                               Ruínas de Numância
                                    I
Nesta cidade morta há pó vivo.
Ao nível do chão passa o frio.
                                    II
Oh, cidade mergulhada no silêncio!
Todas as casas chegam ao céu.
                                    III
Entre colunas que não existem jazem,
distraídos e puros, todos os amantes.
                                    IV
Os guerreiros são um fragor de espadas.
Eterna música em uma noite branca.
                                    V
Dormes, donzela? Oh, não, nada perdes.
Considerada apenas, tua pupila é verde.
                                    VI
Oh, majestade desse clamor total.
Feroz cidade sobre uma perpétua colina.
                                    VII
A pedra descasca. Uma laje apenas.
Numância pronunciada, de pé, sólida. 
(p.51)


Numa entrevista à TV Espanhola logo após o anúncio do Nobel em outubro de 1977, Vicente Aleixandre concorda com a crítica na divisão de sua obra em dois blocos, acrescentando que o primeiro deles seria a relação do homem com o cosmos e que o segundo seria a do homem entre seus semelhantes. "A uma cidade resistente", embora também se apoie nos elementos e na construção de imagens, é um desses poemas, mesmo que promovendo um diálogo com uma distância de mais de 2.300 anos entre os homens de hoje e os antigos homens de Numância, cidade fundada pelos celtas no século III a. C. e localizada numa colina nas proximidades do Douro Espanhol, na região de Sória, e cujas ruínas são aqui evocadas. Um diálogo que começa com a vida que ainda pulsa na aparente morte da cidade em sua condição de sítio histórico ("Nesta cidade morta há pó vivo"), uma cidade fora do tempo ("Entre colunas que não existem"), mas que ainda conserva os amantes cristalizados ("[...] jazem distraídos e puros"), os soldados em posição de eterna guerra ("Eterna música em uma noite branca") e a donzela adormecida que o eu-lírico, desperta e reconstrói no etéreo ("Considerada apenas, tua pupila é verde"). Evocando também a ferocidade da cidade ("Feroz cidade sobre uma perpétua colina"), o poema realiza em suas linhas finais um corte, de natureza quase cinematográfica, ao focalizar as imagens na pedra descorada ("A pedra descasca. Uma laje apenas") em nosso tempo, mas ainda firme e altaneira ("Numância pronunciada, de pé, sólida") nele. Notem o caráter dúplice do vocábulo "pronunciada" no original espanhol e cujo sentido a tradução para o português mantém: pode se tratar tanto do discurso do qual o próprio poema é testemunha, como a própria cidade a se pronunciar, i. e., a manter a sua evidência a despeito do pó (vivo) que a recobre. 

Os três poemas aqui lidos dão uma pequena (mas irrefutável) prova da força da poesia de Vicente Aleixandre. Seja ao transitar por imagens que compõem o cosmo no qual se navega, seja ao evocar homens e espaços de outros tempos ainda a reverberar suas vidas e experiências, seus poemas indiciam a verdadeira função da linguagem poética: comunicar. Fazem também pensar que sua obra precisa e deve ser mais conhecida, como é o caso de tantos outros autores visitados neste projeto. Ao contrário de outros companheiros de geração, a obra de Aleixandre não empalideceu. E não apenas pela notoriedade que lhe foi conferida pelo Nobel de Literatura. Ela permanece vívida pela força imagética, pela riqueza verbal e pela capacidade de gerenciar o efeito sobre o leitor. Efeito que provém de uma lírica, digo sem medo de errar, poucas vezes igualada na poesia do século XX. 


Jorge Verly


Referência da leitura: ALEIXANDRE, Vicente. Noche cerrada. Biblioteca El Mundo. Madri: Unidad Editorial, 1998. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O outono do patriarca, de Gabriel García Márquez




Olá,


Um dos Prêmios Nobel de Literatura mais festejados foi o concedido ao escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) em 1982, em razão de "seus romances e contos em que o real e o fantástico se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente". Trata-se de uma referência ao universo latino-americano retratado por Gabo (como era conhecido) em sua vasta, rica e inesgotável e obra. Sem ser o primeiro autor da região a receber o Nobel (antes dele o receberam Gabriela Mistral, chilena, em 1945, e Miguel Ángel Astúrias, guatemalteco, em 1967), foi certamente o mais representativo, ao receber em nome da escola literária conhecida como "realismo mágico" o maior prêmio de literatura do planeta.

Nascido na pequena Aracataca, Gabo foi primeiro jornalista, ofício que lhe permitiu não apenas um exercício rigoroso da arte da escrita narrativa, como lhe possibilitou conhecer e recolher as muitas facetas da identidade latino-americana. Vide seus Diário de um náufrago e História de um sequestro, obras que tematizam os efeitos da opressão política das ditaduras sobre povos e indivíduos da região. Pode-se dizer que seus anos de jornalismo correspondem a uma escola na qual se preparou para a escritura de uma obra que, como poucas, representou tão vivamente as nuances de uma terra expropriada por séculos de domínio estrangeiro (em especial espanhol) e, ao mesmo tempo, front de uma cultura resistente e sempre em exuberante estado de renovação. Seu primeiro romance, O enterro do diabo (rebatizado depois de A revoada) é já um prenúncio do grande (talvez o maior) acontecimento da literatura latino-americana do século XX e que viria a ser, em 1967, a publicação de Cem anos de solidão. Aliando caudilhos, golpes de estado e vidas nos páramos a um trabalho fantástico com os dados da realidade, subvertendo de tal ordem a relação entre verdade, mentira e invenção, este romance, sem inaugurá-lo, inscreveu de vez o realismo mágico no rol das grandes escolas literárias deste século, servindo de modelo a tantos outros narradores do continente e também de fora dele.

No entanto, escolhi escrever sobre outro romance de Gabo, aquele que veio em sequência - mas com uma distância de oito anos - ao seu livro mais famoso e que, para muitos críticos e leitores, é uma continuação poética e melancólica deste. Falo de O outono do patriarca, reputado pelo próprio autor como um triste poema em prosa sobre a nostalgia do poder. Escrito em longos e esparsamente pontuados parágrafos - seis ao todo -, o livro representa um desafio ao leitor, instado desde o princípio a acompanhar esta alargada narrativa em que vozes múltiplas se misturam à do próprio general (o patriarca do título), presidente de um país inominado do Caribe. A impressão que temos ao ler o relato sobre a "vida eterna" do general é a de que é o próprio povo de seu país que, ao mesmo tempo amado e expropriado por seu governante, encarrega-se da narrativa de sua história: por vezes o narrador usa o singular e por vezes usa o plural, por vezes é o próprio general, por vezes é sua mãe (tornada santa por decreto presidencial), por vezes são os soldados que se rebelam (e que são impiedosamente massacrados) contra seu poder, por vezes é uma prostituta vestida de colegial para saciar os apetites selvagens do patriarca. Múltiplos narradores, enfim, a contar essa história tenebrosa, poderosa e humana a respeito do poder solitário de um homem numa ilha caribenha.




No poder há quase dois séculos por meio de um golpe - sua idade é estimada entre 107 e 232 anos -, o patriarca é encontrado, no momento em que se inicia a narrativa, morto em em seu quarto na decrépita casa presidencial, rodeada de urubus e habitada por vacas, pássaros, leprosos, cegos e paralíticos, seres grotescos e indesejáveis e que formam o último séquito do general. Daí em diante a história atravessa diversos tempos e espaços ao (re)contar sua vida prodigiosa. O leitor logo ficará sabendo que esta não é sua primeira morte. Que ele já morreu outra vez, há mais de um século atrás. Para ressuscitar ao terceiro dia (são muitas as analogias entre a vida do patriarca e a de Jesus Cristo, como o fato de sua mãe, Bendición Alvarado, tê-lo gerado sem o auxílio natural de um varão) e espantar seu conselho de ministros (e a nação inteira) com o fulgor de sua eternidade:


"(...) todos juntos em um só engano invocando a união de todos contra o despotismo de séculos para repartir entre todos o butim de sua morte, tão distraídos nos abismos da cobiça que nenhum notou a aparição do presidente insepulto que deu um único golpe com a palma da mão na mesa, e gritou, então!, e não teve que fazer mais nada, pois quando tirou a mão da mesa já havia passado o estampido de pânico e só restavam no salão vazio os cinzeiros abarrotados, as xícaras de café, as cadeiras atiradas no chão, e meu compadre de toda a vida o general Rodrigo de Aguilar em uniforme de campanha, minúsculo, impassível, afastando a fumaça com sua única mão para que se jogasse no chão, meu general, que agora começavam os problemas, e ambos se jogaram ao chão no instante em que começou à frente da casa o júbilo de morte da metralha, a festa carniceira da guarda presidencial que cumpriu com muito prazer e com muita honra meu general sua ordem feroz de que ninguém escapasse com vida do conciliábulo da traição, (...)" (p. 33)


Na verdade, a morte fora a de seu sósia oficial, ocasião aproveitada pelo general para deflagrar uma impiedosa vingança contra aqueles que tramavam contra seu governo. Aliás, essas escaramuças pelo poder se repetirão muitas vezes ao longo do livro, sempre com o general e sua onisciência quase divina desbaratando seu opositores e massacrando-os com impiedosa crueldade: alguns são lançados vivos aos jacarés, outros são assados e servidos em bandejas aos demais conspiradores, outros têm a pele do corpo arrancada e outros são enviados nus e humilhados em barcaças endereçadas aos países vizinhos. O poder do patriarca é inconteste, avoluma-se e envelhece como ele, sem, contudo, perder viço e temor. 

O que não isenta a ilha de sofrer a influência das potências estrangeiras - e aqui Garcia Márquez reconstrói de modo irônico e mordaz o destino das nações latino-americanas, governadas por ditadores sanguinários que entregam suas riquezas em troca de reconhecimento, apoio militar e dependência. São muitas as nações que desejam, por exemplo, surrupiar o mar do país em troca do pagamento da vultuosa dívida externa, o que acaba inevitavelmente acontecendo. Num traço que evoca o realismo mágico característico e predominante no romance anterior de Gabo, o mar é encaixotado e retirado pelas potências estrangeiras: "(...) levaram o Caribe em abril, levaram-no em peças numeradas os engenheiros náuticos do embaixador Ewig para semeá-lo longe dos furacões nas auroras de sangue e de Arizona (...)". O que não abala o poder do bicentenário ditador, provocando-lhe mais uma nostalgia de ver o mar esverdeado do Caribe a agitar-se diante das janelas da casa presidencial.

Muitas são as mulheres que atravessam (e são atravessadas) a (pela) vida do general e muitos (centenas, milhares) são os filhos bastardos gerados por ele. Nenhum, entretanto, recebe do patriarca a graça de ser nomeado seu sucessor, pois a eternidade do poder não permite a ninguém vislumbrar tal sucessão. Com a exceção do filho que tem com Letícia Nazareno, a única mulher a receber dele o predicado de "esposa". O filho em questão, nascido no exato momento do casamento, é agraciado na mesma pia com o batismo e o título de general das forças armadas da nação. Seu nome, claro, é Emanoel.

Letícia, uma freira expulsa do país como todos os religiosos católicos após a negativa do Vaticano em canonizar a mãe do general, cai em suas graças no momento da deportação para a Jamaica, de onde é sequestrada, amarrada, posta numa caixa escrito "Champagne", dopada e, depois do regresso, deitada no leito presidencial para apreciação do patriarca. Letícia, sabendo aproveitar-se dos apetites do governante, retarda em dois anos o momento do ato sexual e, depois disso, passa a ter, nas palavras dos múltiplos narradores, "as chaves do poder" presidencial. É ela quem faz retornarem os religiosos à ilha, é ela quem enfraquece o poder do exército e é ela quem civiliza o general, ensinando-o a ler, a escrever e a comportar-se à mesa. E é evidente que essa proeminência atrai a ira dos antigos (mas sempre renovados) inimigos do poder. Depois de um fracassado atentado à bomba, Letícia e seu filho são comidos vivos por sessenta mastins escoceses em pleno mercado público e à vista do povo da capital do país. O patriarca enfurece-se e caça com virulência os responsáveis pelo bárbaro crime: uma infinidade de cabeças cortadas chega diariamente ao palácio como fatura de sua vingança. Mas nem por isso sua mão se desgruda do poder. Ao contrário, aferra-se ainda mais a ele.

Nas últimas cinquenta páginas que antecedem o fim do romance é que acompanhamos, de fato e em retrospecto (como é a narrativa de modo geral) o verdadeiro "outono do patriarca". A decrepitude da casa presidencial, antevista no início do livro quando o corpo do ditador é encontrado por ocasião de sua segunda morte, é agora a vívida imagem das vacas subindo as escadas, comendo as cortinas de veludo e cagando os corredores e suas passadeiras inglesas. Também vemos o general, em seus últimos fragores sexuais, sendo enganado por falsas meninas de colégio (na verdade prostitutas do porto arranjadas por seus ministros) vestidas com uniformes escolares e arreganhadas para seus apetites. O encontramos assistindo às novelas e filmes na TV e cujos desfechos são inteiramente gravados em segredo por seus assessores para satisfazer seu desejo por finais felizes. Ou então lendo exemplares falsos do diário oficial, com velhas fotografias suas inaugurado obras há muito esquecidas no tempo. Trata-se do retrato de um velho ditador colado ao poder através das imagens de seu "reino de pesadelo", como muitas vezes ele se refere a seu país. 

Encontramos a síntese da solidão do poder quando o patriarca, já enfim e por fim no fim da vida, rememora o instante em que, sabe-se lá se há um ou dois séculos, entrou com sua mãe na casa presidencial para assumir o controle da nação:

"(...) de modo que esta era toda a história, porra, de modo que o poder era aquela casa de náufragos, aquele cheiro humano de cavalo queimado, aquela aurora desolada de outro doze de agosto igual a -todos era a data do poder, mãe, e, que merda nos metemos, padecendo a decepção original, o medo atávico do novo século de trevas que se levantava no mundo sem a sua permissão, cantavam os galos no mar, cantavam os ingleses em inglês recolhendo os mortos do pátio quando a mãe Bendición Alvarado terminou as contas alegres com o saldo de alívio de que não me assustam as coisas de comprar e os trabalhos por fazer, nada disso, filho, o que me assusta é a quantidade de lençóis que a gente terá de lavar nesta casa, e então foi ele quem se apoiou na força de sua desilusão para tentar consolá-la com um durma tranquila, mãe, neste país não há presidente que dure, disse-lhe, vai ver logo como me derrubam em menos de quinze dias, disse-lhe, e não apenas acreditou nele então senão que continou acreditando em cada instante de todas as horas de sua longuíssima vida de déspota sedentário, tanto mais quanto mais o convencia a vida de que os longos anos de poder não trazem dois dias iguais (...)". (p. 239-240)

Não podemos deixar de concluir a leitura sem concordar com a assertiva de seu autor de que o livro é uma poderosa reflexão a respeito da solidão, das agruras, das dores (e também suas antípodas, as delícias) do poder. Sendo arrastada e por vezes exasperante, a narrativa é por isso mesmo um retrato poderoso dos longos anos de comando do patriarca, inominado como seu país sem nome e que, pela pena exata de Gabriel García Márquez, serve tão bem às experiências traumáticas de poder na América Latina. As experiências ditatoriais felizmente acabam, como lemos na última frase do romance. A grande literatura de Gabo, felizmente também, não. 


Jorge Verly


Referência da leitura: MÁRQUEZ, Gabriel García. O outono do patriarca. Trad. de Remy Gorga Filho. 18 ed. Rio de Janeiro: Record,  2012. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

História policial, de Imre Kertész



Olá,


Em 2002, foi a vez da Hungria ser agraciada pela primeira (e até agora única) vez com o Prêmio Nobel de Literatura. O escolhido foi o romancista Imre Kertész (1929-2016), laureado em razão de sua "escrita que apoia a frágil experiência do indivíduo contra a bárbara arbitrariedade da história". Nascido em Budapeste em uma família de origem judaica, Kertész foi sobrevivente do Holocausto, estando preso nos campos de concentração de Auschwitz, Büchenwald e Zeitz durante os anos de 1942-45. Depois de sua libertação, retornou ao país natal, onde exerceu a profissão de jornalista. Foi quando teve que enfrentar um novo regime totalitário, imposto pelas autoridades húngaras em aliança com o stalinismo soviético. Durante a maior parte de sua vida, Kertész foi obrigado a escrever em segredo ou teve muitas de suas obras previamente censuradas pelo regime comunista. Foi nos anos 1970 que sua produção começou a aparecer de modo mais incisivo, mas ainda dentro dos restritos circuitos do bloco socialista, ganhando notoriedade apenas com a queda do regime, até a sua justa escolha para o Prêmio Nobel. Cronista da experiência da Shoah, Kertész escreveu a respeito da sobrevivência daqueles que escaparam da aniquilação imposta pelo regime nazista na Europa, mas que, de certo modo, continuaram a experimentar o vazio da condição de sobrevivente. O exemplo máximo é o romance autobiográfico Sem destino, um relato terrível do Holocausto narrado por um menino de quinze anos que, despido de qualquer sentimentalismo ou revolta, vai contado ao leitor, com um detalhismo exasperado, tudo o que viveu nos três campos de concentração pelos quais passou, sem julgamentos ou autocomiseração, mas apenas com a necessidade de testemunhar aquela experiência.

No Brasil, assim como no restante do mundo, o nome do autor se tornou bastante conhecido pela tradução do pequeno romance História policial, publicado na Hungria em 1977 e tendo como cenário um país inominado da América Latina, governado por um regime golpista e sanguinário - e que tanto pode referir-se ao Brasil, à Argentina, ao Uruguai ou ao Chile, por exemplo. E é este pequeno livro que discutirei nesta postagem.

Escrito em primeira pessoa na forma de um relato do ex-policial Antonio Martens, o livro começa com seu narrador à espera do julgamento já no momento da redemocratização do inominado país ao qual antes servira em seus tempos de ditadura militar. Embora esta informação não seja explícita, esses elementos são percebidos por indícios presentes na narrativa, como o aparato policial preparado para o serviço da Pátria, a presença de subversivos "cabeludos" e o fato de o país ser governado por uma figura referida apenas como O Coronel. Na fictícia apresentação do livro, escrita por um defensor público, encontramos a justificativa de que o relato é potente, a despeito da pouca escolaridade de seu autor. Essa ideia de potência da escrita - e da própria história contada - está relacionada, segundo suas palavras, aos componentes de destino e confissão que atravessam a narrativa. E é o próprio Martens, agora já de posse da voz narrativa que irá conduzir o relato, quem nos diz que irá contar "uma história simples e revoltante" (p. 17). Após dizer que entrara para o Departamento - o órgão de repressão oficial do governo recém-formado após o golpe - menos por convicções ideológicas do que por vislumbrar um meio de melhorar seu ordenado, Martens revela-se um sujeito a-histórico, à margem dos eventos de que participou e dos sentidos por ele produzidos:


"Era uma pergunta difícil de responder. De fato: por quê? Eu não sabia. Nem agora sei. Não mesmo. Para ser sincero, nem me interessava saber. Nunca parei para pensar nos motivos; bastava-me pensar que de um lado existiam os criminosos e do outro, seus perseguidores. Quanto a mim, faço parte dos últimos." (p. 27)


Entretanto, ao longo do relato, embora conserve o tom burocrático de quem descreve a realização de um trabalho como outro qualquer, Martens se verá impelido a um confronto com a falta de sentido dos acontecimentos e, quando da entrada da figura de Enrique Salinas na narrativa, a uma tentativa de compreensão, embora sua conclusão não indique que a tenha atingido. É importante estabelecer um paralelo entre a situação opressiva do país fictício em que a história se passa e a própria condição social da Hungria em que Kertész escreveu sua história. Impossibilitado, como disse, de escrever sobre a perseguição exercida pelos regimes de força sobre os indivíduos - e pela ótica de sua própria experiência de sobrevivente da Shoah -, a transposição da história para a América Latina das ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970 constitui-se numa estratégia para escapar da censura e do controle estatal, como o próprio Kertész nos conta no prefácio ao livro. Mas como a História é incontornável, Auschwitz também está situada no centro daquele fictício e igualmente bárbaro lugar: em dado momento do relato, Martens conta que Rodríguez, seu colega policial e perito em sadismo - é ele quem opera com mórbido prazer o "Balanço de Boeger", um instrumento de tortura equivalente ao "pau-de-arara" utilizado pela ditadura civil-militar brasileira - está lendo um livro em inglês em que a palavra Auschwitz aparece e se destaca. Ora, inserir textualmente esta palavra carregada de significação histórica em seu livro, muito mais que apenar tapear a censura estatal húngara, demonstra o quão universal e, reitero, incontornável é a barbárie e como ela, seguindo o pensamento de Walter Benjamin, é sempre a mesma catástrofe.



E no centro da catástrofe está a família Salinas. Federico e María, um rico casal de comerciantes, e seu filho Enrique. Enquanto o desejo dos pais é é proteger o filho das engrenagens da opressão em que ele se verá fatalmente enredado por seu idealismo resultante da forma inconformista com que vê o terrível destino do país, Enrique só almeja agir. Estudante, é justamente o fechamento da universidade pelo regime após o golpe - referido por Martens como Dia da Vitória, numa outra referência ao contexto militar - que detona nele o sentimento antes inominado de vazio diante da vida já planejada que o espera: o casamento, a vida confortável e o controle das empresas da família. É contra esse fado, mais que por conta de uma formulação ideológica clara, que o jovem se insurge. E que começa a querer alterar. Aliás, muito do que descobrimos sobre Enrique e seus sentimentos vem dos diários do jovem que, ao lado do relato cru de Martens, compõem aquilo que vem a ser o romance de Kértesz. De modo escuso, o ex-policial consegue se apoderar dos relatos do jovem. E são eles que o ajudam - e ao leitor - a compor a imagem da rebeldia de Enrique:


"Entrei num café. Desabei no terraço. O ódio, o calor e a inércia me faziam arquejar. Terraço lotado, museu de cera de pequenos-burgueses. Tagarelavam sobre negócios, moda e diversão. Uma mulher dava risadinhas estridentes, sem parar. O perfume das mulheres fundia-se com o cheiro dos corpos balofos engordurados e pegajosos. À minha direita, um sujeito de rosto moreno, cabelos curtos pretos e oleosos penteados para trás à moda americana, rosto carnuda junto ao ouvido, como se estivesse com caxumba, óculos de armação preta. A boca se mexia sem parar e fazia pequenos estalidos, como se ele falasse sozinho ou chupasse uma bala. Mas depois percebi que tentava chegar a um acordo com a dentadura um tanto grande, encontrar um modos vivendi. Mais tarde, juntaram-se a eles um sujeito careca com esposa e um rapaz sem cor, sem dúvida filho do careca. Fiquei a ouvi-los descaradamente (...). Concordaram que, conforme a situação econômica se consolidava, a vida ia melhorando. Constataram com prazer que o comércio estava se recuperando. Na opinião do careca, as condições estavam melhorando. O ambiente tornou-se confiante. Pediram mais refrigerantes. Tive vontade de atirar uma bomba no meio deles." (p. 39-41)


Este trecho do diário de Enrique transcrito por Martens em seu relato denota a revolta com a apatia dos demais em face da realidade opressora do país, cuja única preocupação é a recuperação econômica e a manutenção de suas vidas tranquilas. É ainda uma revolta em estágio embrionário e que será, como se percebe à medida em que o livro avança, canalizada contra o regime em si. O que, por sua vez, não chega a se realizar, pois a Enrique é interditado o ingresso nos grupos de resistência justamente por conta da condição econômica de sua família e pelo fato, como ele mesmo assinala, de seu sobrenome ser Salinas. E nesse entrevero da existência sufocada do jovem - ainda amparada na reiteração que Martens faz de seus diários -, entra em cena a figura de Estella Jill, uma moça por quem Enrique se apaixona de modo impetuoso - como forma de canalização de seu ódio - e com quem faz planos de um futuro que, ao contrário do que seus sentimentos vinham desenhando até então, encaixam-se na ideia de uma vida tranquila como a daqueles que o jovem execra. Mas logo o caso é desfeito, em parte por conta da aparente "alienação" de Jill, em parte pela ideia, cada vez mais clara para Enrique, de que "ser feliz e mais nada... não passa de canalhice" (p. 60)

Daí em diante, a obstinação do jovem passa a ser a adesão, custe o que custar, aos movimentos revolucionários. É então que seu pai intervém e, num longa e exasperada conversa transcrita por Martens mais uma vez dos diários, acena ao filho com a possibilidade de resistir ao regime com sua ajuda. Desse trecho em diante, o ex-tira deixa de citar os diários e passa a descrever, de modo ainda mais cru e exasperado que antes, os eventos repressivos que tomam de roldão a vida da família Salinas. Sucedem-se prisões, torturas, culpa e condenação. E tal como Eichmann descreve de modo burocrático a maneira irrepreensível com que desempenhara as funções a ele designadas pelos nazistas, Martens descreve os métodos utilizados nos interrogatórios - é reticente quando trata das torturas, das quais não chega a participar diretamente - e a lógica que orientam todo o processo, uma lógica que deixa de pertencer ao escopo da lei e que passa a seguir a própria dinâmica do poder num regime de força e de exceção:


"(...) Entendi que nessa hora abrimos mão de tudo o que ainda nos ligava às leis dos homens, entendi que dali para a frente não poderíamos confiar em mais ninguém a não ser em nós mesmos. Bem... e no destino, nessa engrenagem insaciável, ávida e eternamente faminta. Ainda éramos nós que a fazíamos girar? Ou era ela que girava a nós? Agora já tanto faz. Achamos - como digo - que sabemos tirar proveito dos acontecimentos, mas depois queremos apenas saber para que diabo de lugar eles estão nos arrastando a todo o galope." (p. 104)


Sua leitura da atuação do grupo repressivo do qual faz parte e que está encarregado de tratar do caso Salinas, ainda que perplexa, é a de alguém que desempenha uma tarefa resultante do próprio estado de coisas, um trabalho que independe de sentimentos como humanidade, compaixão, redenção. O relato, feito da prisão e às vésperas de um veredito do qual já se sabe culpado, não é a narrativa de alguém que busca justificar seus atos ou comover seus julgadores. É a escrita dura de alguém que, em dado momento da roda dos acontecimentos, foi levado por ela, sem qualquer possibilidade de fuga.

História policial é um exemplo daquilo que a Academia Sueca destacou para justificar a escolha de Imre Kértesz para o Prêmio Nobel: é o relato de um sujeito esmagado pela arbitrariedade da história. Dos sujeitos, melhor dizendo, pois tanto Martens, como Salinas pai e Salinas filho são exemplos da impotência humana face ao horror. Nesse jogo bárbaro entre poder e resistência a ele, pouco importa quem está do lado do poder ou quem está contra ele. Resta a única possibilidade de seguir, esmagado ou esmagando. Nisto reside a grandeza da escrita de Kértesz. Enquanto sobrevivente da Shoah, não lhe coube discutir as razões da sobrevivência, o porquê de ter sido poupado. Seu éthos se constituiu na tarefa de narrar a catástrofe de modo não-sentimental, nu de artifícios e duro como o próprio real. Um dever para com os seus semelhantes, mulheres e homens de tempos sombrios. Podemos concluir que Kertész foi uma espécie de Atlas de nosso tempo, sustentando nos ombros - na escrita - o mundo em estado de danificação. 


Jorge Verly


Referência da leitura: KERTÉSZ, Imre. História policial. Trad. de Gabor Aranyi. São Paulo: Tordsilhas, 2014.


terça-feira, 1 de setembro de 2020

Os peixes também sabem cantar, de Halldór Laxness


 


Olá!


Para muita gente, a Islândia só é conhecida pelas citações nas aulas de Geografia ou pelos programas sobre as terras exóticas exibidos pela televisão. Menos gente ainda conhece o nome de Halldór Kiljan Laxness (1902-1998), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1955, em virtude de "seu épico vívido e poderoso que renovou a grande arte narrativa da Islândia" - nas palavras do comitê responsável pela atribuição da honraria. De fato, a terra gelada do sol da meia-noite e dos pescados comercializados no mundo inteiro tem em Laxness um de seus maiores - se não o maior - orgulhos. Autor prolífico e longevo, Laxness escreveu um dos grandes clássicos contemporâneos, A estação atômica, seu romance mais conhecido e que tematiza as conturbadas relações entre sua ilha natal e os Estados Unidos, em disputa pela construção de uma base nucelar na região. Mas a obra de Laxness, claro, é muito maior que isso. Provenientes de uma tradição que remonta à Edda, um compilado de sagas islandesas e obra-matriz da literatura daquele país (e das narrativas nórdicas em geral), seus livros se espraiam para temas que cobrem as relações entre os islandeses e o mundo, as tradições ancestrais do país, as mudanças trazidas pela modernização que o rico empreendimento pesqueiro proporcionou quando de sua inserção no sistema capitalista em meados do século XIX, chegando à abordagens de uma Islândia já inserida no contexto contemporâneo. Mas, sobretudo, a literatura de Halldór Laxness trata do homem em seu eterno conflito com a natureza e a história, mediatizados pelo sentimento telúrico de um país que, aos poucos, perde seus feições quase medievais para mergulhar de forma abrupta do turbilhão do século XX. 

Nessa linha, escolhi como tema da postagem sobre o autor o romance Os peixes também sabem cantar, o primeiro escrito por ele após o Nobel. Disponível apenas em tradução portuguesa, trata-se de um dos pontos altíssimos da carreira de Laxness, seja pelo modo como descreve paisagens, seres e lugares e sua terra natal, seja pelo candente conflito entre o homem simples e a fama mundial que é a temática central da história.

O livro é narrado em primeira pessoa por Álfgrímur - um dos grandes desafios da leitura de Laxness são os substantivos próprios provenientes da língua islandesa -, a quem acompanhamos em retrospecto, desde o nascimento até o momento em que deixa a Islândia para seguir seu caminho. "Órfão" (o pai é desconhecido e a mãe após o abandona logo após nascimento), é adotado por Björn de Brekkokut, um velho pescador, e por sua cunhada, a quem chama de avó e avó. Embora se refira a vários locais da ainda ignota Islândia da virada do século XIX para o XX, o centro da narrativa é Brekkokut, a propriedade de Björn e que está localizada nos arredores de Reikjavík, a capital do país. O local é uma espécie de estalagem, por onde passam tipos diversos em trânsito pela cidade e onde também vivem residentes permanentes. Ninguém, no entanto, paga qualquer quantia por esse acolhimento, pois é regra em Brekkokut acolher bem aqueles que precisam de um canto para repousar, breve ou permanentemente. 




O olhar de Álfgrímur é vasto e seu relato eivado de observações que buscam uma interpretação e uma compreensão simbólica para aquilo que vê e experimenta. Também são filtradas por esse olhar as tradições e crenças milenares daquela terra em embate com uma inescapável modernidade. É assim que ele tenta decodificar a relação entre o avô, que vende seus peixes pescados de modo tradicional em um pequeno e obsoleto barco, e o comerciante Gudmúnssen, dono de loja e exportador de pescado. O narrador também descreve seu aprendizado das primeiras letras - iniciado em casa pela avó, personagem que permanecerá inominada durante todo o livro, mas que será determinante para o rumo que sua vida, afinal, tomará - e seu dilema entre permanecer em Brekkokut como pescador de peixes-lapa ou seguir alguma carreira. Em suma, a visão de Álfgrímur é marcada por um olhar dicotômico acerca do mundo, onde a baliza é ele próprio, num exercício de afirmação do sujeito em face do real que o delimita, como nas observações que faz a respeito da recusa de seu avô em aumentar o preço do peixe, como fazem os outros pescadores assim que a Islândia começa a entrar nas engrenagens do capitalismo tardio:

"Mas o que é que um homem merece, perguntarão as pessoas. Quanto é que um homem merece ganhar? Quanto é que um pescador deveria aceitar? Apenas o diabo poderia dizê-lo. Presentemente, alguém que rejeitasse a avaliação dos bancos teria de resolver sozinho quebra-cabeças morais complicados, várias vezes por dia. Mas esses problemas nunca pareceram desconcertar meu avô, nem causar-lhe ansiedade. Dificuldades que aos olhos da maioria das pessoas teriam conduzido a complicações infindáveis eram despachadas pelo meu avô quase sem pensar, com a segurança fácil de um sonâmbulo que se encontra a meio do caminho ao longo da borda de um precipício com dezenas de metros de profundidade. Sim, estou tentado a dizer que agia com o mesmo desprezo pelas leis da natureza com que um fantasma passara através de portas pechadas à chave." (p. 21)

Mas há no livro uma figura que serve como "inspiração" para o jovem e que, no contexto de romance, é um modelo também para toda a Islândia: Gardar Hólm. Reputado como o maior cantor lírico do mundo, Hólm é um orgulho nacional. Aparentado de Álfgrímur - ele é filho de uma irmã de sua avó -, fora empregado do comerciante Gudmúnssen na adolescência e recebeu deste uma bolsa para estudar canto na Dinamarca, de onde partiu para tornar-se mundialmente famoso. É bem verdade que esta fama é esquiva e dela chegam apenas ecos à pequena Islândia, fazendo com o leitor se pergunte muitas vezes até que ponto ela é real ou inventada pelos islandeses como forma de demarcar seu lugar na história da cultura ocidental. Assim é que chegam notícias fantásticas de concertos dados por ele em presença do papa, dos sultões árabes, dos príncipes europeus e dos magnatas americanos, notícias que são recebidas por seus conterrâneos como a afirmação de que eles existem para além dos peixes que exportam para o mundo inteiro. Daí vem o sentido do título do romance: Gardar Hólm é a prova de que os peixes islandeses também são capazes de cantar. 

De acordo com o relado de Álfgrímur, o famoso cantor regressa à Islândia por três vezes em sua vida. E em todas todas elas, a relação conturbada de Hólm com a fama que adquiriu em seu país natal é marcada por um sentimento esquivo, praticamente de fuga. Recusando praticamente todas as honrarias que lhe são oferecidas pelos poderosos, prefere dormir no estábulo da casa de sua mãe ou numa banco do adro da Catedral de Reikjavík a hospedar-se no luxuoso Hotel d'Islande. Não comparece a jantares que lhe são oferecidos e falta sempre aos locais em que é convidado a cantar. O fato é que ninguém na Islândia ainda ouviu sua voz, emissora da chamada "nota pura" que, na visão do Pastor Jóhann e seu primeiro mentor (como o será também de Álfgrímur), é a marca distintiva dos homens especiais. O curioso é que seu jovem parente assumirá aos poucos seu papel: descobre que também é capaz de cantar ao ser convocado pelo pastor para entoar uma canção no enterro de um indigente. Álfgrímur então começa a ter aulas de música e, tal como Gardar, deseja encontrar a nota pura. Talvez o ponto alto do livro sejam as longas e profundas conversas entre eles, na clave do colóquio entre um mestre e seu aprendiz. Porém, longe de representar uma relação de aprendizado natural entre aquele que detém um saber (o canto) e aquele que almeja aprendê-lo, essas conversas são marcadas pelo modo amargo com que cantor vê a fama, a projeção que seus compatriotas fazem a respeito de sua figura e, sobretudo, como a arte pura está acima de tudo isso. É reveladora e também cruel a última conversa entre eles, ocorrida no adro da igreja, aos pés de um túmulo ornado com uma estátua do arcanjo Gabriel - o romance é repleto de simbolismo -, na qual Gardar traça o "futuro" da vida de Álfgrímur, mostrando-lhe a semelhança entre a fama e o ridículo, quando a sucumbe ante a primeira. É esse o ideal, o da nota pura contra a celebração e o reconhecimento, enfim, que o jovem aspirante a cantor deve seguir. E que seguirá.

Quase ao final do livro, é oferecido (mais um) um jantar  em homenagem a Gardar, dessa vez em casa de seu mecenas Gudmúnssen, ao qual o cantor acaba por comparecer. É nele que, quase involuntariamente, canta algumas notas. E o que é ouvido provoca uma reação ambígua na audiência: o canto não se parece de modo algum com aquilo que é por eles idealizado como símbolo da beleza vocal. É algo estranho, quase constrangedor. Mas ainda assim o comerciante tece um pomposo discurso em honra do filho ilustre da terra. A incompreensão é disfarçada com uma louvação vazia. No dia seguinte, Gardar dá um concerto na catedral apenas para "seus convidados": não os poderosos de Reikjavík que esperam ouvi-lo cantar naquela mesma noite no Jubileu da Loja Gudmúnssen - ao qual, como imaginamos, ele não comparecerá -, mas para os seus, incluindo sua mãe que, espantosamente, nunca o ouvira cantar. Álfgrímur, que a esta altura tem um conhecimento significativo de música, irá acompanhá-lo ao harmônio. E o que se ouve no concerto da catedral o deixa extático:


"(...) Aquele cântico era tão autêntico que fazia com que todos os demais soassem artificiais e afectados, transformando, por conseguinte, os outros cantores em fraudes; e não apenas os outros cantores, mas também a mim próprio, juntamente com o restante de todos nós. E aquele som afectou-me tão profundamente que me levou a puxar a velha sucata que era o harmónio, com todas as minhas forças, coração e alma, de maneira a afogar o canto, ou pelo menos a desafiá-lo, sempre na esperança de conseguir sobreviver.

'O que é que ele cantou?', perguntaram-me as pessoas. Eu costumo responder 'Será que isso interessa para alguma coisa?' Não, não existia nenhum programa impresso. Quais foram as canções? Talvez tivessem sido aquelas canções que se inserem num estilo novo, as quais obterão reconhecimento mesmo se o mundo continuar a andar para trás em direcção à origem e a comunicação se tonar mais simples que no presente, de maneira que as pessoas passem a contentar-se a gritar a vogal 'a' para exprimir os seus sentimentos acerca de tudo, em vez de articularem verbos e nomes; também é bem possível que o que ali se cantou tenha sido o que o asno e o boi cantaram aos anjos na Véspera de Natal." (p. 288)

Gardar desaparece ao final do concerto - corre o boato de que deixou novamente a Islândia - e Álfgrímur, ainda aturdido, é convocado a substituí-lo na festa do Jubileu. Canta e ali sela-se seu destino de natural "substituto" do parente ilustre, o responsável por levar adiante a fama nacional, uma vez que o nome de Hólm se apagará, por razões que não interessa aqui narrar para não revelar o desfecho do livro. A história termina, como disse, com Álfgrímur partindo para a Dinamarca para estudar canto, repetindo a história de Gardar e que, doravante, passa a ser também a sua. 

Não podemos deixar de encontrar um paralelo entre a personagem Gardar Hólm e a figura de Halldór Laxness. Também ele, alçado ao posto de islandês mais ilustre do mundo após o Nobel de 1955, sentiu o peso de carregar um país inteiro com sua arte que, ao fim e ao cabo, não refletia exatamente as tradições locais em estado puro, mas já filtradas pelas lentes da modernidade narrativa. Penso que Os peixes também sabem cantar seja um acerto de contas do escritor com seu povo. Formado por aquela cultura, tendo ouvido as histórias ancestrais e lido a Edda, sua sensibilidade artística construiu algo para além delas, provando ser também ele um peixe capaz de cantar e não apenas portador de um valor de mercado e responsável pela riqueza monetária nacional. Não se trata de uma negação da Islândia, de sua história e de sua inserção no mundo contemporâneo, mas a afirmação de que é a partir dela que Laxness construiu seu estilo e um "valor" narrativo próprios, responsáveis não apenas pela consagração trazida pelo Prêmio Nobel de Literatura, mas também pela revitalização de toda uma cultura, tal como justificado pelos suecos para concessão do prêmio. E comprovado por seus gratos leitores.


Jorge Verly


Referência da leitura: LAXNESS, Halldór. Os peixes também sabem cantar. Trad. de Mário Cruz e João Cruz. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2010.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Santuário, de William Faulkner

Olá,






William Faulkner (1897-1962) recebeu em 1950 o Prêmio Nobel de Literatura referente ao ano de 1949 (a premiação foi adiada por um ano, por falta de consenso) em razão de "sua contribuição forte e artisticamente incomparável para o moderno romance americano". Quarto autor norte-americano agraciado com o Nobel, a notícia de sua premiação foi acolhida com uma sensação de merecimento e de justiça, salvo alguns manifestações de pouco entusiasmo, grande parte delas provenientes de seu país natal, em face do pretenso hermetismo de sua obra e do sombrio retrato do sul dos Estados Unidos construído pelo autor. O escritor, a despeito de sua conhecida timidez, fez questão de viajar a Estocolmo para receber pessoalmente o diploma, a medalha e o milhão de coroas suecas atrelados ao Nobel. No entanto, nos anos seguintes, a narrativa de Faulkner acabou "eclipsada" por outro autor americano, Ernest Hemingway, também ele vencedor do Nobel quatro anos depois e muito mais conhecido que seu compatriota. De fato, os estilos de Hemingway e Faulkner não poderiam ser mais díspares: enquanto o primeiro era dono de uma prosa quase telegráfica, direta e roteirizada, seu colega era afeito aos recursos da modernidade em consórcio com um estilo impressionista, do qual resultavam frases e períodos longos e tortuosos, além de um enfoque nos dados psicológicos em detrimento da trama (quase inexistente) na maioria de seus contos e romances. Herdeiro e renovador do fluxo de consciência e das inovações formais da narrativa (seu romance Enquanto agonizo possui nada menos que quinze narradores), sua literatura é frequentemente comparada a de outros mestres como James Joyce, Marcel Proust e Virginia Woolf. 

Da vasta obra de William Faulkner escolhi para esta resenha aquele que é seu romance mais "acessível". Frequentemente considerado um autor de difícil leitura, em 1931 ele publicou Santuário, seu primeiro grande sucesso de crítica e de público. O próprio autor dizia ter escrito este romance de uma maneira mais tradicional visando atingir um maior número de leitores, o que, numa primeira mirada, contribuiu para uma avaliação da obra como "menor" no universo de um criador que produziu obras seminais do século XX, como O som e a fúria, Absalão! Absalão! e Uma fábula, para darmos apenas três exemplos. No entanto, uma leitura atenta do livro nos mostra um Faulkner em pleno domínio tanto da narrativa tradicional, como das liberdades modernistas, o que faz de Santuário uma formidável porta-de-entrada em seu universo ficcional. 

A história se passa no condado fictício de Yoknapatawpha e em sua capital, Jefferson. Encravado no Mississipi, no sul dos Estados Unidos (Faulkner chegou a publicar um mapa da falsa região, chamando-a de "meu condado apócrifo"), Yoknapatawpha tornou-se cenário da maioria de seus livros a partir então. Localizando sua narrativa em 1929, no período dos estertores da famigerada Lei Seca americana, o livro tem como pano de fundo o contrabando de bebidas e o universo criminoso gerado em torno dele, além de discutir as tensões raciais e sociais peculiares ao sul norte-americano, bem como a decadência de valores da sociedade local. Um dos poucos livros do autor narrados em terceira pessoa, a história gira em torno de seis personagens centrais: Horace Benbow, um advogado residente em Kinston (Mississipi) e que abandona a mulher e retorna a sua Jefferson natal; Lee Goodwin, um contrabandista de bebidas que vive num casarão deteriorado (o santuário ao qual o título ironicamente se refere, como veremos) cercado de personagens marginalizados socialmente; Rubby Lamar, mulher de Lee, ex-garçonete e vítima de frequentes abusos e violência doméstica; Temple Drake, uma estudante da Universidade do Mississipi, filha de um juiz e dona de uma beleza e de uma frivolidade que serão durante transformadas ao longo do livro; Narcisa Sartoris, irmã de Benbow e viúva de um rico proprietário de terras, um retrato da falsa moralidade da decadente elite branca sulista; e o negro Popeye, personagem amoral e misto de bandido e de dândi, de contrabandista cruel e de sujeito de modos refinados. Ao lado deles, temos outras personagens não menos interessantes, peças fundamentais do rico mosaico de uma sociedade deteriorada (como o santuário do título) e em vias de desintegração: Miss Reba, a dona do bordel em que Popeye esconde Rubby após raptá-la; Gowan Stevens, o jovem que antes corteja Narcisa, mas que acaba levando Temple à perdição no casarão; Miss Jenny, a tia inválida do falecido marido de Narcisa e que funciona como uma espécie de consciência acusatória das vilezas e insensibilidades da sobrinha; o inescrupuloso senador Clarence Snopes, chantagista e arrivista social; e Tommy, funcionário de Lee e cujo assassinato desencadeará a tragédia posterior aos eventos ocorridos na fatídica noite de um sábado de junho de 1929.




A seu modo, a história de Santuário pode ser classificada como policial, embora não haja nem sombra do "quem matou?" característicos das narrativas do gênero. O responsável pelo assassinato de Tommy é "esclarecido" no meio do livro a partir de uma conversa que Temple tem com Miss Reba e Benbow, encarregado da defesa do homem injustamente acusado pelo crime. O que interessa  a Faulkner revelar não é a identidade do criminoso, mas sim o contexto moralmente corrompido em que o crime ocorre. De fato, é apenas no último capítulo, quando o verdadeiro criminoso é enforcado - por um crime não cometido, mas assumido como uma postura de concordância e de indiferença com o castigo, ainda que enviesado -, que seu passado de menino rejeitado pelo pai, doente, quase morto num incêndio provocado pela avó e criado por uma mãe amalucada, resultam em sua personalidade sádica, fria e irrefreável na satisfação de seus apetites e desejos. Não que com isso Faulkner deseje justificar o horror do livro. Pelo contrário, a leitura revela justamente que esses fatos estão em conexão com a podridão moral sulista de que a história é poderosa denúncia e da qual o casarão com o qual o maioria das personagens têm algum tipo de ligação é síntese:

"Segundos mais tarde, acima de um negro e recortado grupo de árvores, viram erguer-se a casa, vulto quadrado e rígido contra o céu desfalecente.
A casa era uma feia ruína, erguendo-se numa e esquálida no meio de um bosquete de cedros não podados. Era um marco, e conhecida como Casa do Velho Francês; fora construída antes da Guerra Civil. Casa de plantadores, no meio de um pedaço de terra, cercada de algodoais, jardins e gramados, que de muito se tinham asselvajado e que o pessoal da vizinhança durante cinquenta anos vinha aos poucos derrubando, para tirar lenha. Também ali cavavam de vez em quando, com secreto e esporádico otimismo, na esperança de encontrar o ouro que se dizia oculto nalgum ponto, enterrado pelo construtor, quando Grant atravessara a região na sua campanha de Vicksburg (p. 10-11)

E é nessa ruína, localizada nos arredores da fictícia Jefferson, que o desolado Benbow vai parar logo no início do romance, vindo de um casamento estéril e do qual fugirá. É lá também que Rubby é frequentemente seviciada pelo marido e onde serve como escrava ao bando de marginais que o adulam. É onde o infeliz Tommy, ao ver a desolação e os crimes perpetrados, repete desconsoladamente "Malditos sujeitos, malditos sujeitos!". É onde vive Pap, um velho cego e surdo e que não se sabe bem de onde vem, mas que é "conservado" como um retrato funesto daquele mundo em decomposição. É onde Popeye exerce seu mistério e impõe sua violência sádica. E é onde vão parar Gowan e Temple depois de um acidente, ele se embebedando e apanhando do bando, ela sexualmente ameaçada e vilmente estuprada pelas mãos (a expressão só fará sentido a quem ler o livro) de um daqueles homens. O santuário impuro de um sul igualmente dessacralizado e posto a nu, em seu horror e sua hipocrisia. 




Cada uma dessas pessoas é, dali até o final do livro, afetada de uma forma irreversível por aquela noite de sábado. Enquanto Benbow se aferra à defesa do acusado, que ele sabe ser inocente, como uma forma de dar sentido a sua árida existência, Gowan literalmente foge ao dar-se conta do que aconteceu (em parte por sua responsabilidade) naquele lugar. Rubby aproveita a experiência para recontar sua triste vida, numa (fracassada) tentativa de redenção pela palavra. Mas, de fato, a pessoa mais atingida pelo lugar e pela experiência é Temple. Dragada de sua vida confortável, ela é arrastada ao bordel de Miss Reba por Popeye e mergulha num permanente desespero, provocado pelo estupro anterior e também pelas vicissitudes pelas quais passará dali em diante. Ao descobrir seu paradeiro e visitá-la, na tentativa de convencê-la a depor a favor do acusado, inocentando-o do assassinato, Benbow ouve dela um discurso alucinatório e irreal ao rememorar os eventos daquela noite:

"O engraçado foi isto, porque eu aí não estava respirando. Fazia tempo que eu não respirava. De modo que julguei que estivesse morta. Aconteceu, então, uma coisa engraçada. Vi-me no caixão. Eu estava um amor, sabe?, toda de branco. Tinha um véu parecido com um véu de noiva, e me vi chorando, porque estava morta ou porque estava um amor, ou coisa parecida. Não, era pelo fato de terem posto palha no caixão, onde eu estava morta. E o tempo todo eu sentia meu nariz ficar frio e quente, e frio e quente, e podia ver todas as pessoas sentadas à volta do caixão, dizendo: 'Ela não está mesmo um amor? Ela não está mesmo um amor'." (p. 179)

Transformar o terror da violação (Temple era então virgem) na dupla experiência de morte (caixão) e casamento (o véu de noiva) é apenas um indicativo do estágio de irrealidade em que a moça vive, na defesa como negação. É como se ela houvesse morrido naquela noite (e Benbow chega dizer a Miss Reba que o melhor era que realmente tivesse sido assim) e os eventos seguintes fossem vividos não por ela, mas por seu fantasma. E é um fantasma que, no dia do julgamento, entra no Tribunal e narra detalhadamente o que aconteceu naquela noite, confirmando a falsa acusação contra o homem inocente. Sem que o narrador expresse o fato, o leitor intui que o depoimento é fruto de num acordo entre o promotor inescrupuloso, Narcisa Sartoris e o pai da moça, o Juiz Drake. Os três a induzem a mentir, cada qual com sua razão: Narcisa quer afastar o irmão de um caso que considera sórdido, o promotor quer derrotar Benbow e o pai quer acabar logo com aquilo e retomar o controle sobre a filha. Mas para ela, tudo isso era indiferente em face da letargia, da desesperança e da ausência de reação que passaram a ser o diapasão de sua vida. Morta que estava para a realidade, o culpado não lhe importava. Tanto que, nas últimas linhas do livro, quando aparentemente tudo termina - o inocente linchado e incendiado pela população da cidade, o assassino enforcado por um outro crime -, encontramos a jovem sentada calmamente nos Jardins de Luxemburgo (o pai a levara a Paris para fazê-la esquecer o horror que vivera) a fitar um dos tanques d'água do lugar: 

"Ali, a sombrios intervalos, cismavam as tranquilas rainhas mortas, representadas por mármore manchado e envelhecido. Mais tristonho ainda, o olhar continuou, indo perder-se lá adiante, no céu prostrado e vencido no amplexo da estação de chuva e morte." (p. 257)


Santuário é um livro sombrio como sombria é a obra de William Faulkner. É também um livro inesquecível como inesquecíveis são as narrativas deste cronista por excelência do decante sul dos Estados Unidos. Se a trama pode ser absorvida pelo leitor ao final do livro (ao contrário de outras obras de Faulkner, como dito), também o sentimento de desolação o acompanhará após concluída a leitura. Descrença, impotência - reitero a importância deste conceito para a compreensão do livro -, falha do aspecto comunitário do humano são exemplos dos aspectos explorados  pelo autor norte-americano nesta narrativa que se inscreve entre as maiores do século XX. Um livro que tanto resenha os sentidos da produção faulkneriana posterior, como justifica o Prêmio Nobel de Literatura que lhe foi concedido. Santuário é síntese de seu estilo e é convite à leitura de uma obra nunca menos que irretocável.


Jorge Verly

Referência da leitura: FAULKNER, William. Santuário. Tradução de Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 




sábado, 11 de abril de 2020

Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk




Olá,


É preciso ressaltar que o Prêmio Nobel de Literatura deixou de ser concedido algumas vezes. Nos casos mais célebres, a razão foi a eclosão e o desenrolar das duas guerras mundiais (1914, 1918, 1940, 1941, 1942 e 1943). Outra foi a falta de consenso sobre o nome do escolhido (1935), optando-se por não premiar ninguém. E em duas ocasiões a decisão foi adiada para o ano seguinte: o prêmio de 1949 só foi anunciado em 1950 e do de 2018 foi concedido em 2019. No primeiro caso o escolhido foi o norte-americano William Faulkner, em virtude de não ter sido possível reunir maioria no ano anterior - a Academia Sueca é composta por dezoito membros, o que pode ensejar empates. Já o segundo caso foi o resultado de um escândalo financeiro e sexual, envolvendo Jean-Claude Arnault, esposo da poeta e acadêmica Katarina Frostenson. Arnault foi acusado (e condenado) de estupro, assédio sexual, uso indevido (com favorecimento monetário) das dependências da Academia Sueca e de vazamento do nome dos possíveis vencedores para as casas de apostas. O resultado deste imbróglio foi o adiamento do Prêmio Nobel de Literatura de 2018 e a renúncia de vários membros da instituição, acusados de conivência com os crimes de Arnault. Portanto, em 2019 a agremiação tinha a difícil missão de se redimir na mácula do ano anterior. 

E o resultado foi, consenso geral, bastante satisfatório, sobretudo no plano simbólico da escolha: Olga Tokarczuk (1962), escritora polonesa, premiada em razão de sua "imaginação narrativa que, com paixão enciclopédica, representa o cruzamento das fronteiras como uma forma de vida", conforme lemos na exposição de motivos da Academia Sueca. Além da escolha de uma mulher representar uma mea culpa dos suecos em face dos hediondos crimes de Jean-Claude Arnault, a escrita de Tokarczuk representou um sopro de criatividade e de novidade no rol dos laureados com o Nobel de Literatura, uma vez que sua obra, ainda que eivada de elementos de erudição, tem um aporte grande na cultura pop e debruça-se sobre questões e temáticas candentes dos nosso tempo, ainda na pauta do dia nestes tempos tão sombrios: feminismo, direitos das minorias, situação dos marginalizados e ascensão da extrema direita no cenário político mundial. Seus poemas, ensaios, peças de teatro e, sobretudo, romances versam sobre a situação dos sujeitos num mundo, para usar uma expressão do filósofo alemão Theodor W. Adorno, em franco processo de danificação. 

A obra de Olga Tokarczuk era praticamente desconhecida do leitor brasileiro à ocasião do anúncio de que havia vencido o Nobel de 2018. Havia apenas um livro publicado entre nós, o romance-mosaico Os vagantes, lançado aqui em 2014 pela pequena editora Tinta Negra e que passou praticamente despercebido pela crítica e pelo público. Curiosamente, em 2019, semanas antes do anúncio do prêmio, a publicação do romance Sobre os ossos dos mortos havia sido anunciada pela Todavia. O livro chegou, portanto, no exato momento em que os círculos literários nacionais começavam a ouvir falar de Tokarczuk. Muitos leitores chegaram a ela através deste livro, objeto, naturalmente, da resenha que aqui será feita. O romance pode ser classificado como algo próximo do gênero filosófico-policial. Destrinchar e recontar a obra - como tenho feito com os livros analisados no blog - seria entregar ao leitor o desfecho da narrativa, anunciado o nome do assassino (porque há um, revelado ao final do livro) e suas motivações. Por esta razão, farei comentários mais gerais sobre o enredo, apontando algumas características da narrativa e suas temáticas centrais que, penso, são marcas distintivas da ficção da autora polonesa.

O romance é narrado em primeira pessoa por Janina Dusheiko, uma professora de inglês aposentada, na casa dos sessenta nos e que vive no Vale do Kłodzko, região limítrofe entre a Polônia e a República Tcheca. A Sra. Dusheiko passa os dias ocupada em cuidar das casas dos vizinhos que visitam a região nos fins de semana e feriados - mas nunca no rigoroso inverno que assola o vale, período em que se passa a maior parte da ação -, em estudar astrologia e em traduzir, junto com o jovem amigo Dísio (Dionísio), poemas do metafísico inglês William Blake, de cujos versos foi retirado o título do romance (além de vários títulos de capítulos do livro). Feminista (não-teórica), ela é também uma ferrenha defensora dos animais, o que faz todo o sentido no contexto da narrativa: a região de Kłodzko é um "paraíso" de caçadores de animais que a povoam: javalis, corsas, cervos e raposas. Vegetariana, Dusheiko trava embates constantes com os abatedores de animais, incluindo o poderoso dono de uma "fazenda" de raposas e o padre local, a quem chama de Farfalhar, assim nomeado pelas vestes esvoaçantes. Denuncia a morte de animais às autoridades locais - que nada fazem, tomando-a por louca - e se insurge contra a instalação de torres de observação nos limites do floresta, locais em que os caçadores podem mirar e atirar mais precisamente nas pobres e indefesas presas. Solitária, conta apenas com a companhia de duas cachorras - que carinhosamente chama de "minhas meninas" - e que desaparecem misteriosamente antes mesmo de a história propriamente dita começar. Janina vive uma espécie de luto e, em sua busca pelas cadelas - espalha cartazes e indaga freneticamente os moradores -, é ridicularizada por praticamente todos.





É nesse contexto que uma noite, logo na abertura do livro, Janina é acordada por seu vizinho Esquisito - é pródiga sua forma de nomear as pessoas conforme suas características físicas ou comportamentais, como vimos em relação ao padre e como se vai observar ao longo da narrativa do livro - e que a informa que um outro vizinho, Pé Grande, um caçador cruel e misantropo com quem Janina já havia se desentendido muitas vezes, está morto em sua cabana. Os dois atravessam a paisagem gelada e, no caminho, são "vigiados" por uma família de corças, imóveis e de olhares atentos, como se percebessem o que realmente se passava na noite gélida daquele perdido canto polonês. Ao entrar, deparam-se com a mixórdia da casa de Pé Grande, que jaz roto e maltrapilho no chão da sala, provavelmente engasgado com o osso de uma corça que tinha acabado de caçar e comer. Enquanto Esquisito tenta telefonar para a polícia, Janina vê algumas fotografias sobre uma cômoda velha e, atraída por uma delas em particular, parece compreender algo que há muito a atormentava. Essa foto será crucial para que o leitor, ao final, compreenda - como ela naquele momento entendeu - todo o sentido da história de crimes e mortes que assolarão o Kłodzko dali em diante. 

No entanto, não se engane o leitor ao imaginar que o livro será um thriller no sentido pedestre que a crítica (muitas vezes de forma preconceituosa) atribuiu ao termo. Embora haja, sim, toques de mistério e suspense envolvendo os eventos da narrativa, as mortes em si são um fator secundário. O que interessa na escrita de Olga Tokarcuzk é justamente a(s) reflexão(ões) acerca do(s) contexto(s) que cerca(m) aquele lugar e os eventos que passam a ocorrer ali. Um exemplo ocorre quando a agora dublê de detetive, ao encontrar junto com Dísio o segundo corpo, o do comandante local de polícia,  morto por uma pancada na cabeça e cujo cadáver estava rodeado de pegadas feitas por patas de corça, lança a inicialmente incrível teoria de que os autores dos crimes são os animais:

"- Jesus, Jesus - Dísio soluçava - É o comandante, eu o vi o rosto dele, era ele.
Sempre me importei muito com Dísio e não queria que ele me tomasse por louca. Ele não. Quando estávamos chegando à casa do Esquisito, tomei coragem e decidi lhe contar o que estava pensando.
- Dísio - disse. - Esses animais estão se vingando das pessoas.
Dísio sempre confiou em mim, mas dessa vez nem me ouvia. 
- Não é tão estranho quando parece - continuei. - Os animais são fortes e sábios. Nós não temos noção do quanto. Houve um tempo em que os animais eram postos diante do tribunal. E inclusive condenados.
- O que você está dizendo? O que você está dizendo? - balbuciava inconscientemente.
- Eu li uma vez sobre ratazanas que foram condenadas pelo tribunal porque provocaram muitos danos. O caso era adiado porque elas não compareciam às audiências. Finalmente, o tribunal lhes designou um advogado.
- Meu Deus, o que você está dizendo?
- Acho que foi na França, no século XVI - continuei. - Não sei como o caso terminou e se elas foram condenadas.
De repente, ele parou, agarrou meus braços com força e chacoalhou.
- Você está em choque. O que você está dizendo?
Eu sabia bem o que estava dizendo. Decidi checar as informações quando surgisse uma oportunidade." (p. 75-76)

Portanto, para ela, muito mais importante do que encontrar os culpados (que ela intui já saber a partir da observação das duas cenas do crime e das quais foi uma das primeiras chegar), é justificar e defender a atitude dos animais. Não apenas neste, mas em muitos outros momentos do livro, sua defesa se baseia justamente no direito dos bichos em empreender aquela santa vingança contra os humanos que praticam contra ele as maiores atrocidades. Tanto as duas primeiras, quanto as três outras vítimas são caçadores inveterados, que se comprazem pelo prazer de trucidar os animais da região. Um deles, Víscero, o dono de uma fazenda de raposas, é especialista em torturar e arrancar suas pelagens para a confecção de casacos. 

Além de Dísio e de Esquisito, Janina compartilha suas teorias com Boas Novas, Capa Negra e Boros. A primeira é a vendedora de um brechó de quem a velha professora compra um casaco vermelho e a quem se afeiçoa ao ouvir a triste história de vida. O segundo é o promotor local, encarregado das investigações e que vem a ser o filho de Esquisito. Cético, ele duvida de que os animais sejam os autores dos crimes, julgando não passar esta teoria dos delírios de uma velha amalucada. O terceiro é um entomologista que vai parar naquelas bandas em busca de um besouro raro e altamente venenoso. Janina o acolhe e vive um rápido idílio amoroso (e sexual). É cômica e também comovente a passagem em que os dois, na companhia de Esquisito, jantam, acendem uma fogueira e fumam um baseado ao som de "Riders on the storm", da banda de rock The Doors, momentaneamente esquecidos do horror dos acontecimentos que pairam no vale, confortados pelo ainda potente sentido de convivência humana e da importância de se compreender - e aceitar - seu lugar nas engrenagens do mundo.

E esse sentido é uma das temáticas que atravessam o livro. Além da questão da defesa dos direitos dos animais e seu constante apregoar contra as crueldades praticadas pelos humanos contra eles, a Sra. Dusheiko reflete constantemente - sempre mediada por sua crença na astrologia e nas questões metafísicas, que beiram o sentido ontológico - a respeito da nossa existência e de sua insignificância face ao mistério e plenitude do universo, conforme podemos ler nesta sua divagação dela a respeito do caráter monadológico da vida:

"Está claro que o grande está contido no pequeno. Não há dúvidas quanto a isso. Enquanto escrevo, existe uma configuração planetária sobre a mesa, o universo inteiro, se você preferir. Um termômetro, uma moeda, uma colher de alumínio e uma xícara de porcelana. Uma chave, um celular, caneta e papel. E meu cabelo branco, cujos átomos preservam a memória dos primórdios da vida, da catástrofe cósmica que deu início ao mundo" (p. 138)

Plena de beleza, a prosa do livro (que é, em suma, o relato de Janina sobre a vida a partir dos acontecimentos misteriosos do Vale do Kłodzko) reflete essa visão de mundo, no qual cada ser, vivo ou inanimado, tem sua função primordial na configuração cósmica desde a origem dos tempos. É sobre isso, enfim, que escreve Olga Tokarckuk pelas mãos de sua personagem. 

Por esta e outras razões, como vimos, a visão geral que a comunidade local tem de Janina é a de uma velha excêntrica. E iracunda, o que não deixa de ser verdade - uma ira, como ela mesma chama, de santa. Uma passagem bastante interessante, já próxima do desfecho do livro, é a missa em homenagem ao padroeiro dos caçadores, Santo Huberto. Convidada pelas crianças da escola em que, voluntariamente ainda dá aulas de inglês - os métodos pedagógicos de Janina são um capítulo à parte da narrativa! -, ela observa irada a hipocrisia do padre Farfalhar em louvar a memória do Huberto de Liège, tornado santo pela Igreja Católica para apadrinhar caçadores impiedosos. Enfarada pelas crescentes loas ao santo e aos caçadores locais, ela se levanta de seu assento e, para espanto de todos, pede para que o padre desça do altar e pare de dizer aquelas barbaridades:

"Consegui sair da fileira. Fui andando sobre pernas estranhamento rígidas até chegar quase ao próprio púlpito.
- Ei, você, saia daí - eu disse. - Basta.
Pairou um silêncio e ouvi com satisfação minha voz ecoar, rebatida pela abóboda e pelas naves, tornando-se cada vez mais forte.; era por isso que aqui a própria fala impressionava tanto.
- Estou falando com você. Não está ouvindo? Desça daí!
Farfalhar me encarava com olhos assustados, bem abertos, e seus lábios tremiam, como se, completamente surpreso, tentasse achar uma palavra adequada para essa situação. Mas não conseguia.
- Pois é, pois é - repetia, nem impotente, nem provocativamente.
- Desça desse púlpito, já! E caia fora! - gritei.
Foi então que senti no ombro a mão de alguém e vi um dos homens de uniforme [os caçadores que iriam ser abençoados durante a missa] atrás de mim. Sacudi-me e nessa hora chegou correndo outro. Ambos agarram meus braços com força.
- Assassinos - disse." (p. 224-225)

Posta para fora, ela observa algumas pegas, pássaros que tudo carregam para seus ninhos no teto das casas e que poderiam, com isso, provocar um incêndio. E é justamente num incêndio que, naquele mesmo dia, morre a última vítima. Mais uma prova, no contexto da teoria da Sra. Dusheiko, da vingança dos bichos contra seus algozes. Já o desfecho do livro, quando o criminoso e suas razões são finalmente reveladas, não pode ser descrito sem estragar a surpresa. Tampouco o destino de Janina poder ser contado. O que posso dizer é que ela não morre. Isso porque, como dito pela própria narradora em dado momento do livro, os horóscopos, que se baseiam na data de nascimento de uma pessoa, se bem estudados também contém a data de sua morte. E essa ela conhece bem, não será agora.

O romance de Olga Tokarczuk - grande merecedora do Nobel que lhe foi concedido - é um livro policial, é um libelo contra a crueldade animal, é um tratado das relações entre vida e astrologia, é um livro sobre a poesia de Blake e seus mistérios, é um estudo sobre as relações humanas (em especial a amizade) e é também muitas outras coisas. Escrito numa prosa límpida e repleta de referências, cumpre a dupla missão de entreter e instigar. Entretém pela história narrada e que o leitor acompanha com cada vez maior interesse, dados as reviravoltas e eventos que se sucedem. E instiga pela questões que traz e que ensejam no leitor uma reflexão sobre o sentido da existência humana num mundo que baila na toada da crueldade, do horror e da morte. Estúpidas todas elas, as dos animais e também as dos homens - ainda que Janina Dusheiko encare estas últimas como rebelião e vingança, conforme vimos. E enquanto tudo acontece, o mundo gira. O verão sucede o inverno, o gelo dá lugar às flores e o sol brilha sempre, mostrando que tudo ainda funciona, a despeito de nós e de nossa cruel intervenção. 

Jorge Verly

Referência da leitura: TOKARCZUK, Olga. Sobre os ossos dos mortos. Tradução de Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, 2019. 





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