segunda-feira, 25 de maio de 2020

Santuário, de William Faulkner

Olá,






William Faulkner (1897-1962) recebeu em 1950 o Prêmio Nobel de Literatura referente ao ano de 1949 (a premiação foi adiada por um ano, por falta de consenso) em razão de "sua contribuição forte e artisticamente incomparável para o moderno romance americano". Quarto autor norte-americano agraciado com o Nobel, a notícia de sua premiação foi acolhida com uma sensação de merecimento e de justiça, salvo alguns manifestações de pouco entusiasmo, grande parte delas provenientes de seu país natal, em face do pretenso hermetismo de sua obra e do sombrio retrato do sul dos Estados Unidos construído pelo autor. O escritor, a despeito de sua conhecida timidez, fez questão de viajar a Estocolmo para receber pessoalmente o diploma, a medalha e o milhão de coroas suecas atrelados ao Nobel. No entanto, nos anos seguintes, a narrativa de Faulkner acabou "eclipsada" por outro autor americano, Ernest Hemingway, também ele vencedor do Nobel quatro anos depois e muito mais conhecido que seu compatriota. De fato, os estilos de Hemingway e Faulkner não poderiam ser mais díspares: enquanto o primeiro era dono de uma prosa quase telegráfica, direta e roteirizada, seu colega era afeito aos recursos da modernidade em consórcio com um estilo impressionista, do qual resultavam frases e períodos longos e tortuosos, além de um enfoque nos dados psicológicos em detrimento da trama (quase inexistente) na maioria de seus contos e romances. Herdeiro e renovador do fluxo de consciência e das inovações formais da narrativa (seu romance Enquanto agonizo possui nada menos que quinze narradores), sua literatura é frequentemente comparada a de outros mestres como James Joyce, Marcel Proust e Virginia Woolf. 

Da vasta obra de William Faulkner escolhi para esta resenha aquele que é seu romance mais "acessível". Frequentemente considerado um autor de difícil leitura, em 1931 ele publicou Santuário, seu primeiro grande sucesso de crítica e de público. O próprio autor dizia ter escrito este romance de uma maneira mais tradicional visando atingir um maior número de leitores, o que, numa primeira mirada, contribuiu para uma avaliação da obra como "menor" no universo de um criador que produziu obras seminais do século XX, como O som e a fúria, Absalão! Absalão! e Uma fábula, para darmos apenas três exemplos. No entanto, uma leitura atenta do livro nos mostra um Faulkner em pleno domínio tanto da narrativa tradicional, como das liberdades modernistas, o que faz de Santuário uma formidável porta-de-entrada em seu universo ficcional. 

A história se passa no condado fictício de Yoknapatawpha e em sua capital, Jefferson. Encravado no Mississipi, no sul dos Estados Unidos (Faulkner chegou a publicar um mapa da falsa região, chamando-a de "meu condado apócrifo"), Yoknapatawpha tornou-se cenário da maioria de seus livros a partir então. Localizando sua narrativa em 1929, no período dos estertores da famigerada Lei Seca americana, o livro tem como pano de fundo o contrabando de bebidas e o universo criminoso gerado em torno dele, além de discutir as tensões raciais e sociais peculiares ao sul norte-americano, bem como a decadência de valores da sociedade local. Um dos poucos livros do autor narrados em terceira pessoa, a história gira em torno de seis personagens centrais: Horace Benbow, um advogado residente em Kinston (Mississipi) e que abandona a mulher e retorna a sua Jefferson natal; Lee Goodwin, um contrabandista de bebidas que vive num casarão deteriorado (o santuário ao qual o título ironicamente se refere, como veremos) cercado de personagens marginalizados socialmente; Rubby Lamar, mulher de Lee, ex-garçonete e vítima de frequentes abusos e violência doméstica; Temple Drake, uma estudante da Universidade do Mississipi, filha de um juiz e dona de uma beleza e de uma frivolidade que serão durante transformadas ao longo do livro; Narcisa Sartoris, irmã de Benbow e viúva de um rico proprietário de terras, um retrato da falsa moralidade da decadente elite branca sulista; e o negro Popeye, personagem amoral e misto de bandido e de dândi, de contrabandista cruel e de sujeito de modos refinados. Ao lado deles, temos outras personagens não menos interessantes, peças fundamentais do rico mosaico de uma sociedade deteriorada (como o santuário do título) e em vias de desintegração: Miss Reba, a dona do bordel em que Popeye esconde Rubby após raptá-la; Gowan Stevens, o jovem que antes corteja Narcisa, mas que acaba levando Temple à perdição no casarão; Miss Jenny, a tia inválida do falecido marido de Narcisa e que funciona como uma espécie de consciência acusatória das vilezas e insensibilidades da sobrinha; o inescrupuloso senador Clarence Snopes, chantagista e arrivista social; e Tommy, funcionário de Lee e cujo assassinato desencadeará a tragédia posterior aos eventos ocorridos na fatídica noite de um sábado de junho de 1929.




A seu modo, a história de Santuário pode ser classificada como policial, embora não haja nem sombra do "quem matou?" característicos das narrativas do gênero. O responsável pelo assassinato de Tommy é "esclarecido" no meio do livro a partir de uma conversa que Temple tem com Miss Reba e Benbow, encarregado da defesa do homem injustamente acusado pelo crime. O que interessa  a Faulkner revelar não é a identidade do criminoso, mas sim o contexto moralmente corrompido em que o crime ocorre. De fato, é apenas no último capítulo, quando o verdadeiro criminoso é enforcado - por um crime não cometido, mas assumido como uma postura de concordância e de indiferença com o castigo, ainda que enviesado -, que seu passado de menino rejeitado pelo pai, doente, quase morto num incêndio provocado pela avó e criado por uma mãe amalucada, resultam em sua personalidade sádica, fria e irrefreável na satisfação de seus apetites e desejos. Não que com isso Faulkner deseje justificar o horror do livro. Pelo contrário, a leitura revela justamente que esses fatos estão em conexão com a podridão moral sulista de que a história é poderosa denúncia e da qual o casarão com o qual o maioria das personagens têm algum tipo de ligação é síntese:

"Segundos mais tarde, acima de um negro e recortado grupo de árvores, viram erguer-se a casa, vulto quadrado e rígido contra o céu desfalecente.
A casa era uma feia ruína, erguendo-se numa e esquálida no meio de um bosquete de cedros não podados. Era um marco, e conhecida como Casa do Velho Francês; fora construída antes da Guerra Civil. Casa de plantadores, no meio de um pedaço de terra, cercada de algodoais, jardins e gramados, que de muito se tinham asselvajado e que o pessoal da vizinhança durante cinquenta anos vinha aos poucos derrubando, para tirar lenha. Também ali cavavam de vez em quando, com secreto e esporádico otimismo, na esperança de encontrar o ouro que se dizia oculto nalgum ponto, enterrado pelo construtor, quando Grant atravessara a região na sua campanha de Vicksburg (p. 10-11)

E é nessa ruína, localizada nos arredores da fictícia Jefferson, que o desolado Benbow vai parar logo no início do romance, vindo de um casamento estéril e do qual fugirá. É lá também que Rubby é frequentemente seviciada pelo marido e onde serve como escrava ao bando de marginais que o adulam. É onde o infeliz Tommy, ao ver a desolação e os crimes perpetrados, repete desconsoladamente "Malditos sujeitos, malditos sujeitos!". É onde vive Pap, um velho cego e surdo e que não se sabe bem de onde vem, mas que é "conservado" como um retrato funesto daquele mundo em decomposição. É onde Popeye exerce seu mistério e impõe sua violência sádica. E é onde vão parar Gowan e Temple depois de um acidente, ele se embebedando e apanhando do bando, ela sexualmente ameaçada e vilmente estuprada pelas mãos (a expressão só fará sentido a quem ler o livro) de um daqueles homens. O santuário impuro de um sul igualmente dessacralizado e posto a nu, em seu horror e sua hipocrisia. 




Cada uma dessas pessoas é, dali até o final do livro, afetada de uma forma irreversível por aquela noite de sábado. Enquanto Benbow se aferra à defesa do acusado, que ele sabe ser inocente, como uma forma de dar sentido a sua árida existência, Gowan literalmente foge ao dar-se conta do que aconteceu (em parte por sua responsabilidade) naquele lugar. Rubby aproveita a experiência para recontar sua triste vida, numa (fracassada) tentativa de redenção pela palavra. Mas, de fato, a pessoa mais atingida pelo lugar e pela experiência é Temple. Dragada de sua vida confortável, ela é arrastada ao bordel de Miss Reba por Popeye e mergulha num permanente desespero, provocado pelo estupro anterior e também pelas vicissitudes pelas quais passará dali em diante. Ao descobrir seu paradeiro e visitá-la, na tentativa de convencê-la a depor a favor do acusado, inocentando-o do assassinato, Benbow ouve dela um discurso alucinatório e irreal ao rememorar os eventos daquela noite:

"O engraçado foi isto, porque eu aí não estava respirando. Fazia tempo que eu não respirava. De modo que julguei que estivesse morta. Aconteceu, então, uma coisa engraçada. Vi-me no caixão. Eu estava um amor, sabe?, toda de branco. Tinha um véu parecido com um véu de noiva, e me vi chorando, porque estava morta ou porque estava um amor, ou coisa parecida. Não, era pelo fato de terem posto palha no caixão, onde eu estava morta. E o tempo todo eu sentia meu nariz ficar frio e quente, e frio e quente, e podia ver todas as pessoas sentadas à volta do caixão, dizendo: 'Ela não está mesmo um amor? Ela não está mesmo um amor'." (p. 179)

Transformar o terror da violação (Temple era então virgem) na dupla experiência de morte (caixão) e casamento (o véu de noiva) é apenas um indicativo do estágio de irrealidade em que a moça vive, na defesa como negação. É como se ela houvesse morrido naquela noite (e Benbow chega dizer a Miss Reba que o melhor era que realmente tivesse sido assim) e os eventos seguintes fossem vividos não por ela, mas por seu fantasma. E é um fantasma que, no dia do julgamento, entra no Tribunal e narra detalhadamente o que aconteceu naquela noite, confirmando a falsa acusação contra o homem inocente. Sem que o narrador expresse o fato, o leitor intui que o depoimento é fruto de num acordo entre o promotor inescrupuloso, Narcisa Sartoris e o pai da moça, o Juiz Drake. Os três a induzem a mentir, cada qual com sua razão: Narcisa quer afastar o irmão de um caso que considera sórdido, o promotor quer derrotar Benbow e o pai quer acabar logo com aquilo e retomar o controle sobre a filha. Mas para ela, tudo isso era indiferente em face da letargia, da desesperança e da ausência de reação que passaram a ser o diapasão de sua vida. Morta que estava para a realidade, o culpado não lhe importava. Tanto que, nas últimas linhas do livro, quando aparentemente tudo termina - o inocente linchado e incendiado pela população da cidade, o assassino enforcado por um outro crime -, encontramos a jovem sentada calmamente nos Jardins de Luxemburgo (o pai a levara a Paris para fazê-la esquecer o horror que vivera) a fitar um dos tanques d'água do lugar: 

"Ali, a sombrios intervalos, cismavam as tranquilas rainhas mortas, representadas por mármore manchado e envelhecido. Mais tristonho ainda, o olhar continuou, indo perder-se lá adiante, no céu prostrado e vencido no amplexo da estação de chuva e morte." (p. 257)


Santuário é um livro sombrio como sombria é a obra de William Faulkner. É também um livro inesquecível como inesquecíveis são as narrativas deste cronista por excelência do decante sul dos Estados Unidos. Se a trama pode ser absorvida pelo leitor ao final do livro (ao contrário de outras obras de Faulkner, como dito), também o sentimento de desolação o acompanhará após concluída a leitura. Descrença, impotência - reitero a importância deste conceito para a compreensão do livro -, falha do aspecto comunitário do humano são exemplos dos aspectos explorados  pelo autor norte-americano nesta narrativa que se inscreve entre as maiores do século XX. Um livro que tanto resenha os sentidos da produção faulkneriana posterior, como justifica o Prêmio Nobel de Literatura que lhe foi concedido. Santuário é síntese de seu estilo e é convite à leitura de uma obra nunca menos que irretocável.


Jorge Verly

Referência da leitura: FAULKNER, William. Santuário. Tradução de Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 




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