terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O outono do patriarca, de Gabriel García Márquez




Olá,


Um dos Prêmios Nobel de Literatura mais festejados foi o concedido ao escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) em 1982, em razão de "seus romances e contos em que o real e o fantástico se combinam num mundo densamente composto pela imaginação, refletindo a vida e os conflitos de um continente". Trata-se de uma referência ao universo latino-americano retratado por Gabo (como era conhecido) em sua vasta, rica e inesgotável e obra. Sem ser o primeiro autor da região a receber o Nobel (antes dele o receberam Gabriela Mistral, chilena, em 1945, e Miguel Ángel Astúrias, guatemalteco, em 1967), foi certamente o mais representativo, ao receber em nome da escola literária conhecida como "realismo mágico" o maior prêmio de literatura do planeta.

Nascido na pequena Aracataca, Gabo foi primeiro jornalista, ofício que lhe permitiu não apenas um exercício rigoroso da arte da escrita narrativa, como lhe possibilitou conhecer e recolher as muitas facetas da identidade latino-americana. Vide seus Diário de um náufrago e História de um sequestro, obras que tematizam os efeitos da opressão política das ditaduras sobre povos e indivíduos da região. Pode-se dizer que seus anos de jornalismo correspondem a uma escola na qual se preparou para a escritura de uma obra que, como poucas, representou tão vivamente as nuances de uma terra expropriada por séculos de domínio estrangeiro (em especial espanhol) e, ao mesmo tempo, front de uma cultura resistente e sempre em exuberante estado de renovação. Seu primeiro romance, O enterro do diabo (rebatizado depois de A revoada) é já um prenúncio do grande (talvez o maior) acontecimento da literatura latino-americana do século XX e que viria a ser, em 1967, a publicação de Cem anos de solidão. Aliando caudilhos, golpes de estado e vidas nos páramos a um trabalho fantástico com os dados da realidade, subvertendo de tal ordem a relação entre verdade, mentira e invenção, este romance, sem inaugurá-lo, inscreveu de vez o realismo mágico no rol das grandes escolas literárias deste século, servindo de modelo a tantos outros narradores do continente e também de fora dele.

No entanto, escolhi escrever sobre outro romance de Gabo, aquele que veio em sequência - mas com uma distância de oito anos - ao seu livro mais famoso e que, para muitos críticos e leitores, é uma continuação poética e melancólica deste. Falo de O outono do patriarca, reputado pelo próprio autor como um triste poema em prosa sobre a nostalgia do poder. Escrito em longos e esparsamente pontuados parágrafos - seis ao todo -, o livro representa um desafio ao leitor, instado desde o princípio a acompanhar esta alargada narrativa em que vozes múltiplas se misturam à do próprio general (o patriarca do título), presidente de um país inominado do Caribe. A impressão que temos ao ler o relato sobre a "vida eterna" do general é a de que é o próprio povo de seu país que, ao mesmo tempo amado e expropriado por seu governante, encarrega-se da narrativa de sua história: por vezes o narrador usa o singular e por vezes usa o plural, por vezes é o próprio general, por vezes é sua mãe (tornada santa por decreto presidencial), por vezes são os soldados que se rebelam (e que são impiedosamente massacrados) contra seu poder, por vezes é uma prostituta vestida de colegial para saciar os apetites selvagens do patriarca. Múltiplos narradores, enfim, a contar essa história tenebrosa, poderosa e humana a respeito do poder solitário de um homem numa ilha caribenha.




No poder há quase dois séculos por meio de um golpe - sua idade é estimada entre 107 e 232 anos -, o patriarca é encontrado, no momento em que se inicia a narrativa, morto em em seu quarto na decrépita casa presidencial, rodeada de urubus e habitada por vacas, pássaros, leprosos, cegos e paralíticos, seres grotescos e indesejáveis e que formam o último séquito do general. Daí em diante a história atravessa diversos tempos e espaços ao (re)contar sua vida prodigiosa. O leitor logo ficará sabendo que esta não é sua primeira morte. Que ele já morreu outra vez, há mais de um século atrás. Para ressuscitar ao terceiro dia (são muitas as analogias entre a vida do patriarca e a de Jesus Cristo, como o fato de sua mãe, Bendición Alvarado, tê-lo gerado sem o auxílio natural de um varão) e espantar seu conselho de ministros (e a nação inteira) com o fulgor de sua eternidade:


"(...) todos juntos em um só engano invocando a união de todos contra o despotismo de séculos para repartir entre todos o butim de sua morte, tão distraídos nos abismos da cobiça que nenhum notou a aparição do presidente insepulto que deu um único golpe com a palma da mão na mesa, e gritou, então!, e não teve que fazer mais nada, pois quando tirou a mão da mesa já havia passado o estampido de pânico e só restavam no salão vazio os cinzeiros abarrotados, as xícaras de café, as cadeiras atiradas no chão, e meu compadre de toda a vida o general Rodrigo de Aguilar em uniforme de campanha, minúsculo, impassível, afastando a fumaça com sua única mão para que se jogasse no chão, meu general, que agora começavam os problemas, e ambos se jogaram ao chão no instante em que começou à frente da casa o júbilo de morte da metralha, a festa carniceira da guarda presidencial que cumpriu com muito prazer e com muita honra meu general sua ordem feroz de que ninguém escapasse com vida do conciliábulo da traição, (...)" (p. 33)


Na verdade, a morte fora a de seu sósia oficial, ocasião aproveitada pelo general para deflagrar uma impiedosa vingança contra aqueles que tramavam contra seu governo. Aliás, essas escaramuças pelo poder se repetirão muitas vezes ao longo do livro, sempre com o general e sua onisciência quase divina desbaratando seu opositores e massacrando-os com impiedosa crueldade: alguns são lançados vivos aos jacarés, outros são assados e servidos em bandejas aos demais conspiradores, outros têm a pele do corpo arrancada e outros são enviados nus e humilhados em barcaças endereçadas aos países vizinhos. O poder do patriarca é inconteste, avoluma-se e envelhece como ele, sem, contudo, perder viço e temor. 

O que não isenta a ilha de sofrer a influência das potências estrangeiras - e aqui Garcia Márquez reconstrói de modo irônico e mordaz o destino das nações latino-americanas, governadas por ditadores sanguinários que entregam suas riquezas em troca de reconhecimento, apoio militar e dependência. São muitas as nações que desejam, por exemplo, surrupiar o mar do país em troca do pagamento da vultuosa dívida externa, o que acaba inevitavelmente acontecendo. Num traço que evoca o realismo mágico característico e predominante no romance anterior de Gabo, o mar é encaixotado e retirado pelas potências estrangeiras: "(...) levaram o Caribe em abril, levaram-no em peças numeradas os engenheiros náuticos do embaixador Ewig para semeá-lo longe dos furacões nas auroras de sangue e de Arizona (...)". O que não abala o poder do bicentenário ditador, provocando-lhe mais uma nostalgia de ver o mar esverdeado do Caribe a agitar-se diante das janelas da casa presidencial.

Muitas são as mulheres que atravessam (e são atravessadas) a (pela) vida do general e muitos (centenas, milhares) são os filhos bastardos gerados por ele. Nenhum, entretanto, recebe do patriarca a graça de ser nomeado seu sucessor, pois a eternidade do poder não permite a ninguém vislumbrar tal sucessão. Com a exceção do filho que tem com Letícia Nazareno, a única mulher a receber dele o predicado de "esposa". O filho em questão, nascido no exato momento do casamento, é agraciado na mesma pia com o batismo e o título de general das forças armadas da nação. Seu nome, claro, é Emanoel.

Letícia, uma freira expulsa do país como todos os religiosos católicos após a negativa do Vaticano em canonizar a mãe do general, cai em suas graças no momento da deportação para a Jamaica, de onde é sequestrada, amarrada, posta numa caixa escrito "Champagne", dopada e, depois do regresso, deitada no leito presidencial para apreciação do patriarca. Letícia, sabendo aproveitar-se dos apetites do governante, retarda em dois anos o momento do ato sexual e, depois disso, passa a ter, nas palavras dos múltiplos narradores, "as chaves do poder" presidencial. É ela quem faz retornarem os religiosos à ilha, é ela quem enfraquece o poder do exército e é ela quem civiliza o general, ensinando-o a ler, a escrever e a comportar-se à mesa. E é evidente que essa proeminência atrai a ira dos antigos (mas sempre renovados) inimigos do poder. Depois de um fracassado atentado à bomba, Letícia e seu filho são comidos vivos por sessenta mastins escoceses em pleno mercado público e à vista do povo da capital do país. O patriarca enfurece-se e caça com virulência os responsáveis pelo bárbaro crime: uma infinidade de cabeças cortadas chega diariamente ao palácio como fatura de sua vingança. Mas nem por isso sua mão se desgruda do poder. Ao contrário, aferra-se ainda mais a ele.

Nas últimas cinquenta páginas que antecedem o fim do romance é que acompanhamos, de fato e em retrospecto (como é a narrativa de modo geral) o verdadeiro "outono do patriarca". A decrepitude da casa presidencial, antevista no início do livro quando o corpo do ditador é encontrado por ocasião de sua segunda morte, é agora a vívida imagem das vacas subindo as escadas, comendo as cortinas de veludo e cagando os corredores e suas passadeiras inglesas. Também vemos o general, em seus últimos fragores sexuais, sendo enganado por falsas meninas de colégio (na verdade prostitutas do porto arranjadas por seus ministros) vestidas com uniformes escolares e arreganhadas para seus apetites. O encontramos assistindo às novelas e filmes na TV e cujos desfechos são inteiramente gravados em segredo por seus assessores para satisfazer seu desejo por finais felizes. Ou então lendo exemplares falsos do diário oficial, com velhas fotografias suas inaugurado obras há muito esquecidas no tempo. Trata-se do retrato de um velho ditador colado ao poder através das imagens de seu "reino de pesadelo", como muitas vezes ele se refere a seu país. 

Encontramos a síntese da solidão do poder quando o patriarca, já enfim e por fim no fim da vida, rememora o instante em que, sabe-se lá se há um ou dois séculos, entrou com sua mãe na casa presidencial para assumir o controle da nação:

"(...) de modo que esta era toda a história, porra, de modo que o poder era aquela casa de náufragos, aquele cheiro humano de cavalo queimado, aquela aurora desolada de outro doze de agosto igual a -todos era a data do poder, mãe, e, que merda nos metemos, padecendo a decepção original, o medo atávico do novo século de trevas que se levantava no mundo sem a sua permissão, cantavam os galos no mar, cantavam os ingleses em inglês recolhendo os mortos do pátio quando a mãe Bendición Alvarado terminou as contas alegres com o saldo de alívio de que não me assustam as coisas de comprar e os trabalhos por fazer, nada disso, filho, o que me assusta é a quantidade de lençóis que a gente terá de lavar nesta casa, e então foi ele quem se apoiou na força de sua desilusão para tentar consolá-la com um durma tranquila, mãe, neste país não há presidente que dure, disse-lhe, vai ver logo como me derrubam em menos de quinze dias, disse-lhe, e não apenas acreditou nele então senão que continou acreditando em cada instante de todas as horas de sua longuíssima vida de déspota sedentário, tanto mais quanto mais o convencia a vida de que os longos anos de poder não trazem dois dias iguais (...)". (p. 239-240)

Não podemos deixar de concluir a leitura sem concordar com a assertiva de seu autor de que o livro é uma poderosa reflexão a respeito da solidão, das agruras, das dores (e também suas antípodas, as delícias) do poder. Sendo arrastada e por vezes exasperante, a narrativa é por isso mesmo um retrato poderoso dos longos anos de comando do patriarca, inominado como seu país sem nome e que, pela pena exata de Gabriel García Márquez, serve tão bem às experiências traumáticas de poder na América Latina. As experiências ditatoriais felizmente acabam, como lemos na última frase do romance. A grande literatura de Gabo, felizmente também, não. 


Jorge Verly


Referência da leitura: MÁRQUEZ, Gabriel García. O outono do patriarca. Trad. de Remy Gorga Filho. 18 ed. Rio de Janeiro: Record,  2012. 

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