terça-feira, 24 de setembro de 2019

O faroleiro, de Henryk Sienkiewicz





Olá,



Na primeira década do século XX, a Academia Sueca ainda estava buscando o "tom" das escolhas do Prêmio Nobel de Literatura. A tarefa legada pelo testamento de Alfred Nobel e que consistia na escolha anual de um autor cuja obra fosse representativa da humanidade e de seu caráter universalizante havia sido aceita quatro anos antes pela instituição, que premiara na ocasião o "desconhecido" poeta francês Sully Prudhomme, ignorando o maior autor vivo à época, o russo Tolstói. Para alguns, tratou-se de um verdadeiro escândalo e que mostrava a incapacidade da academia de um pequeno país nórdico relativamente isolado em premiar os verdadeiros gênios literários. E foi em parte como uma resposta a esta acusação que, em 1905, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido ao escritor polonês Henryk Sienkiewciz (1846-1916), uma verdadeira celebridade literária de então, sobejamente famoso no mundo inteiro por seu romance Quo Vadis? (1895). 

Mas a escolha de um autor best-seller - segundo dados da época, precários pela própria natureza da ciência estatística de então, o mais conhecido romance de Sienkiewicz tinha vendido 800 mil exemplares na Europa e nos Estados Unidos - não foi isenta de críticas. Muitos apontaram esta escolha como um aceno à popularidade em detrimento da qualidade literária, acusando os suecos de abandonarem uma das premissas estabelecidas pelo testamento do criador do Nobel. Criticaram inclusive a justificativa da Academia ao atribuir o prêmio ao narrador polonês: para muitos, ao premiá-lo "por causa de seus notáveis méritos como escritor épico", estava-se relacionando o galardão diretamente ao sucesso do livro que esquadrinhava os embates entre romanos e cristãos no tempo de Nero, temática central de Quo vadis? O tempo, no entanto, acabou provando o equívoco destas invectivas contra a literatura de Sienkiewicz e seu Prêmio Nobel. O interesse despertado pela escolha de seu nome fez leitores e críticos literários voltarem-se a outras de suas obras, revelando não apenas o autor de  um famoso épico sobre dos primórdios da cristandade, mas também um sensível cultor da linguagem e um narrador das tradições e da alma polonesa. É o caso de "O faroleiro" (1881), conto breve, porém repleto de qualidades que bem ilustram o estilo e as escolhas narrativas deste autor. 

A história se passa na segunda metade do século XIX e começa com o sumiço, um tanto misterioso, do faroleiro de Aspinwall, ilha incrustada na boca do golfo do Panamá, cujo farol era essencial para a organização do tráfego marítimo naquela movimentada região. Cabe ao cônsul dos Estados Unidos, responsável pela administração do farol, encontrar-lhe imediatamente um substituto. É então que entra em cena Skawinski, um velho polonês que, tendo participado como soldado dos principais conflitos do século (como a Guerra Franco-Prussiana e Guerra de Secessão Americana), apresenta-se ao cônsul como candidato ao cargo de faroleiro. Este duvida que o velho combalido seja capaz, com seus mais de 70 anos, de vencer os 400 degraus do farol e a rotina estafante de colocá-lo em funcionamento noite após noite. Mas os argumentos e as narrativas da vida aventureira do velho, bem como aparente fibra por ele adquirida em seus anos de exílio, convencem o diplomata. O cargo é dado a ele que, no mesmo dia, parte para seu novo posto no farol.



Na primeira noite de seu novo trabalho, vamos encontrá-lo mergulhado num estado de tensão excitada e também de alegria. Por fim, ele havia encontrado um porto. Repassando suas desventuras, inclusive com um breve estágio pelas selvas brasileiras, sempre embarcando em empreendimentos que, numa primeira mirada, pareciam auspiciosos, mas que se revelaram verdadeiros fracassos, Skawinski sente que o fado, embora nunca tenha sido particularmente generoso consigo, estava agora lhe oferecendo uma trégua, a ele que, na espera pela fortuna a todos os homens prometida, envelhecera de tanto esperar:

"Por fim, fora dar com os ossos em Aspinwall. Ali, por certo, a falta de sorte que sempre o perseguira, teria um fim. Que poderia atingi-lo ali, naquele rochedo solitário? Nem enchente, nem incêndio, nem homem. Para dizer a verdade, a humanidade não lhe fora propriamente hostil. Encontrara mesmo muito mais gente generosa que ruim. (...) Por fim, um único pensamento o dominou: descansar. Esse desejo tornou-se tão absorvente que apagou tudo o mais. O eterno vagabundo não podia imaginar nada mais sedutor, nada mais precioso que um cantinho seu onde pudesse descansar e aguardar o fim." (p. 66-67)

E por detrás desse sentimento de abrigo e pertencimento, o que embala os sentimentos do velho é a saudade de sua Polônia natal, terra que ele obrigara a abandonar desde cedo em busca da tal Boa Fortuna prometida (por quem?) e a errar pelo mundo em projetos quase sempre fracassados. A nostalgia polonesa será, aliás, um dos motes da narrativas, um sentimento que a todo o tempo invadirá o velho faroleiro, sua medida ao contemplar o mundo e as evocações por ele provocadas em sua alma de exilado. E será, conforme veremos, o elemento-chave para o melancólico desfecho da narrativa.

O tempo passa e o Skawinski experimenta um verdadeiro mimetismo com a ilha e seu farol, como se seu corpo fizesse parte daqueles dois elementos. É de lá que ele vê, através de binóculos - instrumento ao mesmo tempo aproximativo e redutor da realidade -, as movimentações na baía e no porto de Aspinwall, "pinturas em movimento" vistas de seu refúgio insular. Mesmo indo todos os domingos até lá para frequentar a missa e buscar jornais para se informar sobre os acontecimentos do mundo (em especial da Europa e de sua Polônia), é na ilha que ele se isola, sentindo-se cada vez mais em comunhão com as rochas, a vegetação parca e rasteira e os pássaros que, diuturnamente, vem comer as migalhas de seu jantar. 

Mas é aí que veremos a sorte de Skawinski retornar à roda de perdas. É que ele recebe um pacote contendo livros, enviados por uma sociedade de exilados poloneses nos Estados Unidos, para quem ele havia doado integralmente seu primeiro salário como forma de gratidão pela descanso enfim alcançado. Comovido por este regalo, ele apanha o primeiro exemplar da caixa, uma coletânea de poemas célebres em língua polonesa, um idioma a tanto tempo ausente de suas conversações com os poucos seres humanos com os quais travara contato naquela parte esquecida do mundo. Depara-se com Pan Tadeusz, poema épico da literatura polaca escrito por Mickiewicz, talvez a obra mais representava da nacionalidade polonesa em todos os tempos. O faroleiro se lança avidamente à (re)leitura da obra e, enquanto avança, algo extraordinário acontece a seu corpo, ao seu próprio ser: é como se ele saísse de sua carne velha e macilenta, deixasse aquela ilha e seu farol - afinal, abrigos precários para sua alma nostálgica - e retornasse espiritualmente à Polônia, percorrendo os mesmos lugares descritos no poema, participando da vida local, acompanhando amor impossível entre Tadeusz e Sozia, motes da obra:

"A onda que subia pela garganta explodiu. O velho soltou um grito. Caiu ao solo. Seus cabelos brancos misturavam-se ao dourado da areia. Há quarenta anos estava longe e só Deus sabia havia quantos não ouvia a fala materna. Mas, mesmo assim a língua pátria lhe soara natural como se a ouvisse sempre. Tinha atravessado oceanos, tinha vivido como um exilado em outro hemisfério, oh língua tão bela, tão amada!

Soluçava, mas não de tristeza. Era como se tivesse despertado diante de algo tão sobrenaturalmente belo que tudo o mais lhe parecia trivial. O pranto convulsivo era uma espécie de pedido de perdão à pátria distante, perdão por ter envelhecido, por ter-se ligado tão completamente àquele rochedo solitário que até a saudade de sua terra se havia desvanecido. E agora, era como se voltasse por um milagre e seu coração se despedaçava" (p. 76)

E em meio a esta catarse em que Skawinski expia seu pecado pelo esquecimento da pátria agora reencontrada, o velho se esquece de acender o farol. Na verdade, mal percebe que a noite caiu sobre a baía de Aspinwall e que um dos navios, sem a essencial orientação do facho de luz, despedaça-se contra um rochedo. O velho faroleiro está alheio a tudo isso e só se dá conta do ocorrido algum tempo depois, quando John, o vigia do porto, chega à ilha para descobrir o que havia acontecido e encontra o faroleiro ainda em estado de transe. Depois de trazê-lo à realidade e de contar-lhe que, embora ninguém tenha morrido, o estrago tinha sido grande, John lhe diz que precisa levá-lo à terra firme imediatamente: o faroleiro precisa encarar as autoridades, além de estar, claro, sumariamente demitido. Alguns tempo depois, vamos encontrar Skawinski a bordo de um navio que se dirige a Nova York, onde terá que reiniciar sua cansativa luta pela sobrevivência no exílio. O velho, entretanto, traz o livro de Mickiewicz junto ao peito, aquele livro que representara a sua sorte e também a sua perdição, pois a pátria inesperadamente reencontrada em suas páginas era agora, outra vez, uma lembrança. Fora através daqueles versos que ele se vira em sua amada Polônia e fora também por causa deles que era agora obrigado a errar novamente longe dela.

Mesmo curta, a narrativa de Henryk Sienkiewicz nos apresenta qualidades essenciais de sua prosa e que vão além daquelas apontadas quando da concessão do Nobel. Embora encontremos traços do epicista (a cena de reencontro do velho faroleiro com sua terra natal através da leitura de Pan Tadeusz é um exemplo), o que transparece no conto é a um tom introspectivo e que busca esquadrinhar o espírito de Skawinski em sua busca por abrigo em meio às tribulações do mundo, sentimento que é comum a todos os seres humanos e não apenas àqueles envolvidos em situações heroicas como as narradas em Quo Vadis?. A singela história aqui contada diz muito de quem somos, daquilo que buscamos e das pequenas recompensas cotidianas que a vida é capaz de dar a cada um de nós. O farol de Aspinwall, recanto que simboliza o mundo, emula a universalidade pretendida por seu autor e que, em 1905, fez com que ele fosse recompensado com o Nobel de Literatura, embora talvez nem mesmo o próprio comitê de premiação a tenha percebido quando da atribuição da honraria. As distâncias narrativas - que tenho evocado em relação a alguns autores cujo tempo aparentemente envelheceu - são aqui facilmente vencidas e dão ao leitor um prazer que, embora curto, é forte e vívido, posto que capaz de confrontá-lo com o que de mais verdadeiro há dentro de si: o seu dado humano, mesmo que com traços melancólicos como os que encontramos ao final do texto. Justiça, pois, seja feita a Henryk Sinkiewicz. 


Jorge Verly


Referência da leitura: O faroleiro. IN: O faroleiro e outros contos. Trad. de Lúcia Benedetti. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p. 5-79.


sábado, 21 de setembro de 2019

Paraíso, de Toni Morrison




Olá,



A escolha de Toni Morrison (1931-2019) para o Prêmio Nobel de Literatura de 1993 causou comoção no mundo literário. Não isenta de críticas (houve quem acusasse a Academia Sueca de preocupar-se muito mais com o politicamente correto do que com a qualidade literária), sua eleição foi saudada como o reconhecimento de uma obra comprometida com as ressonâncias raciais na multifacetada sociedade americana. Cobrindo com maestria a história dos negros nos EUA, desde as vicissitudes por eles sofridas no período escravocrata até as dificuldades de inserção social em nossos tempos, a escrita de Morrison, elegante e repleta de poderosas metáforas sobre condição do homem e da mulher negros, sempre foi marcada por um compromisso com a origem desta autora, desde a infância pobre no estado de Ohio até sua consagração como professora e autora laureada, uma escrita que, na justificativa do Comitê Nobel, "dá vida a aspectos essenciais da vida americana". 

E é essa a tônica do romance Paraíso (1997), primeira obra publicada por Toni Morrison depois do recebimento do Nobel e que escolhi para resenhar nesta postagem. Cercada de expectativas desde sua concepção, esta narrativa é representativa do poder criativo da autora, tanto na engenhosidade do enredo, que mescla valores religiosos, morais e raciais, como na concepção das personagens que atravessam a trágica história de um Convento encetado na fictícia Ruby, a mais racial das cidades americanas, com sua população de pouco mais de 300 habitantes, todos negros. A história se passa no ano de 1973 e, ao longo da narrativa, retrocede até os anos iniciais do século XX, quando os chamados "patriarcas", um grupo de afrodescendentes já libertos das amarradas da escravidão nos EUA, buscam um lugar em que viver de acordo com suas próprias regras morais, políticas e religiosas, ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade americana e dos conflitos raciais que a marcaram desde então. Antes de viver em Ruby, o grupo tinha fundado Haven, uma outra cidade idealizada como o Paraíso Terrestre, nos moldes bíblicos, onde os negros poderiam viver em paz, longe da perseguição racial impostas por movimentos supremacistas como a Ku Klux Klan. Mas Haven foi conspurcada e, por isso, os patriarcas partiram em busca de outro lugar. Daí, no meio do estado de Oklahoma, nasceu Ruby.




Toni Morrison já indica, na primeira frase do romance, que a história será contada de trás para frente, i. e., partindo do clímax central da narrativa e que é o massacre sofrido por cinco mulheres, as atuais habitantes do Convento, uma delas branca. E é a partir desse trágico episódio que a história será contada: "Eles atiram na branca primeiro", começa o narrador, sintetizando o que será narrado ao longo das mais de trezentas páginas do romance. Os homens valorosos de Ruby, protetores da pureza moral que emana da cidade, decidem chacinar as habitantes do Convento - fundado há tempos antes e que funciona na antiga mansão que pertenceu a um gângster dos anos 1920 - por considerá-lo uma mácula em sua pura comunidade. Desde o princípio o leitor é levado a perceber que, na concepção idealista que perpassa a vida dos moradores de Ruby, é este lugar pecaminoso a origem dos males que começam a atingir a cidade:

"Vizinhas estranhas, quase todo mundo dizia, mas inofensivas. Mais que inofensivas, até colaboradoras às vezes. Recebiam gente perdida ou que precisava descansar. As primeiras notícias era de gentileza e comida muito boa. Mas agora todo mundo sabia que aquilo era mentira, uma fachada, um disfarce cuidadosamente planejado para que o que acontecia de fato. Quando ficou claro que se tratava de uma emergência, representantes das três igrejas se encontram no Forno, porque não conseguiam resolver em qual das igrejas, se é que em alguma delas, se devia convocar a reunião para decidir o que fazer, agora que as mulheres tinham ignorado todos os avisos". (p. 20)

Atribuída à presença do Convento e de suas ocupantes não-religiosas (a última delas foi a Madre, que agonizava quando Mavis chegou e que morreu após o aparecimento de Gigi), as inquietações que tomam Ruby na virada dos anos 1960 para os 1970 tem, na realidade, relação com o cenário de turbulência social vivido na América e que ganha ressonância principalmente nos jovens da cidade que, influenciados pelo movimento pelos direitos civis, pela pregação de Martin Luther King e pela desobediência civil defendida por Malcolm X, não querem mais seguir as tradições impostas pelos antigos moradores da cidade. E é no Forno, uma espécie de altar da cidade, que aparece certa manhã um punho negro desenhado, numa referência ao movimento dos Panteras Negras. Este lugar, desmontado e trazido de Haven para ser reconstruído em Ruby, antes o centro de unidade daquela comunidade, é agora seu pomo de discórdia: os jovens não só discordam da existência do Forno, como divergem da frase incompleta nela incrustada desde Haven: para os velhos, a frase correta é "Temei a ruga de Sua testa", um claro aviso pela obediência das leis divinas; já os jovens a interpretam como "Sede a ruga de Sua testa", imersos que estavam na ideia de que, investidos pelo poder divino, cabia a eles mudar as regras e construírem seu próprio destino. Nesse sentido, Ruby é um microcosmo da própria sociedade americana nos anos 1970, cujas forças em litígio estavam atravessadas pela questão racial.

Quanto ao Convento, sua simbologia está ligada ao precário oferecimento de abrigo àqueles que, neste turbilhão social, encontravam-se marginalizados. Ou melhores, marginalizadas, pois, conforme assinalado antes, suas ocupantes eram todas mulheres, inadaptadas ou vítimas do desajuste social ou familiar. Primeiro temos Connie, a última remanescente dos tempos das religiosas, uma velha excêntrica e que prepara deliciosas pimentas que, nos tempos pacíficos, eram apreciadas pelos habitantes da cidade. Depois chegou Mavis, mentalmente perturbada após a morte de seus filhos gêmeos no Cadillac da família (eles foram esquecidos por ela enquanto fazia compras para o marido violento, morrendo asfixiadas), no qual fugiu em direção à Califórnia, mas que acabou parando em Ruby e foi acolhida por Connie e a Madre agonizante. Em seguida veio Gigi, uma jovem fugindo de um relacionamento abusivo com um presidiário e que buscava uma energia de natureza sexual (representada por uma árvores entrelaçada que, segundo lhe contaram, ficava em Ruby) que serenasse sua alma aflita. Depois veio Sêneca, abandona pela irmã que a criara e que, depois de ser rejeitada em seu último lar adotivo, tomou um ônibus e, chegando à cidade, foi acolhida pelas outras mulheres. E por último a adolescente Pallas que, depois de descobrir que seu namorado estava tendo um caso com sua mãe, acaba fugindo e, de carona num caminhão repleto de índios, vai parar em Ruby, onde lhe indicam que, para buscar abrigo, é necessário ir ao Convento. E é justamente o que a menina encontra ali:

"Mavis, ainda sorrindo, serviu café e cortou o pudim de pão. Serviu Pallas e sentou-se ao lado dela, soprando o café. Pallas ficou brincando com a terceira porção de sobremesa.
'Mostre a marca dos dentes', Mavis disse.
Pallas virou a cabeça e puxou a gola da camiseta, exibindo o ombro.
'Iiihh', Mavis gemeu.
'Aqui é assim todo dia?', Pallas perguntou.
'Ah, não", Mavis acariciou o queixo machucado. 'Aqui é o lugar mais tranquilo do mundo'." (p. 211)

Enquanto vai avançando, o leitor se questiona: quem seria a mulher branca, aquela que é referida no início da narrativa como sendo a que primeiro foi alvejada quando os homens de Ruby invadiram o Convento? Mas esta resposta não será dada mesmo após a conclusão do romance. Toni Morrison, à época, escreveu que optara por deixar a questão em aberto para indicar que, enquanto a cor era um fator predominante no seio da comunidade fanática da cidade, no Convento era um fator secundário. Para aquelas mulheres destroçadas de algum modo pela vida, importava muito mais o sentido de convivência, de abrigo, de pertencimento a algum lugar. Assim é também que o Convento funciona, na dinâmica da história contada por Morrison, como um Paraíso paralelo, diverso daquele desejado pelos moradores de Ruby. E é por esta razão que eles o destroem de forma violenta. 

O livro segue com os acontecimentos posteriores ao massacre, a começar pela destruição do Forno pelas violentas chuvas e inundações que tomam conta da cidade, uma espécie de vingança na natureza contra o terrível pecado ali cometido. Além disso, quando alguns moradores mais esclarecidos da cidade, como o reverendo Misner e a comerciante Anna Flood, descobrem o horror que ocorrera no Convento, resolvem ir até lá, não encontram mais os corpos das mulheres. A autora conclui sua história com toques do fantástico - elemento presente também em seu livro mais conhecido, Amada (1987) -, simbolizado pelo retorno das cinco mulheres que, como que ressuscitadas, reencontram suas famílias e amores, reconciliando-se de alguma forma com eles. Há, pois, uma nova abertura à existência de um Paraíso, palavra, aliás, que fecha o livro. 

Toni Morrison escreveu essencialmente romances sobre a questão da identidade negra numa América marcada por segregações e desigualdades, conforme vimos. Mas em Paraíso, a questão foi ampliada para abarcar também as dicotomias e desajustes no seio de uma comunidade negra que se pretendia racialmente pura e que, pela impossibilidade de realização desta utopia, viu-se confrontada com a diversidade, reagindo a ela com violência e intolerância. O olhar arguto desta romancista, como poucos autores americanos de sua geração - Cormac McCarthy, Philip Roth, Don Delillo e Joyce Carol Oates -, soube radiografar de maneira certeira a realidade americana. Mas, diferente deles, cujo olhar é por vezes marcado por uma crueza e por uma melancolia incontornáveis, Toni Morrison voltou para a América um olhar de piedade e compaixão, um olhar que vai além do reconhecimento. Uma visada de, por que não dizer, esperança. 

Jorge Verly


Referência da leitura: MORRISON, Toni. Paraíso. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 

domingo, 15 de setembro de 2019

O urso polar, de Henrik Pontoppidan




Olá,


As duas guerras mundiais provocaram, além de estragos físicos e materiais, grandes crises diplomáticas entre as nações envolvidas, direta ou indiretamente, nos conflitos. No caso dos Prêmios Nobel de Literatura, a honraria deixou de ser atribuída entre os anos de 1940-43, período crucial da Segunda Guerra. Já no interstício 1914-18, período da Primeira, o prêmio foi atribuído a escritores de nações neutras (a exceção foi 1915, quando o laureado foi o francês Romain Rolland), com o intuito de não melindrar os países contendores ou sugerir algum pendor a um dos lados combatentes. Foi assim que em 1917 a Academia Sueca optou por premiar uma dupla de autores dinamarqueses: o poeta Karl Gjellerup e o romancista Henrik Pontoppidan (1857-1943), escolhido "por suas descrições autênticas da vida de hoje na Dinamarca". 

Considerado (injustamente) datado e meramente uma curiosidade literária nos dias de hoje - mesmo na própria Dinamarca -, há poucos leitores e traduções da obra de Pontoppidan pelo mundo afora. Algum interesse sobre seus romances foi despertado em 2018 com a adaptação cinematográfica (com a chancela da gigante do streaming Netflix) de um de seus mais conhecidos romances, Lykke-Per (1904) e que aqui se chamou Um homem de sorte. No Brasil, encontramos apenas um volume de novelas publicado pela Delta em 1963 - em primorosa tradução do romancista pernambucano Osman Lins -, do qual escolhi para ler "O urso polar", publicada em 1887. 

A novela pode ser considera um bildungsroman às avessas, seja pela sua forma curta (são pouco mais de quarenta páginas), seja pela abordagem irônica da formação de um sujeito, temática tão cara aos romances de Goethe, percursor do gênero, e que é subvertida pela escrita por vezes divertida de Pontoppidan. A narrativa acompanha a trajetória do pastor luterano Thorkild Müller, natural da Jutlândia e que, no início da história, encontramos já velho e responsável pelas paróquias de Soeby e Sovard, nos confins da península. A descrição inicial que o narrador faz da figura de Thorkild é antológica ao compor a persona descomunal, bonachona e grotesca do pastor:

"Imagine o leitor uma grande face rubicunda, com uma barba hirsuta que nem sempre constitui um espetáculo atraente, considerando que esconde, entre seus pelos rudes, pedacinhos de couve, fragmentos de pão ou fios de tabaco marrom claro. Ponha em cima disso um crânio reluzente, cheio de bossas, com a nuca guarnecida por uma franja de cabelos crespos que pendem sobre a gole do sobretudo; acrescente um par de pequenas orelhas espessas e peludas, sobrancelhas algodoadas, um enorme nariz ligeiramente violáceo entre dois olhos azul-claros, que miram vagamente as coisas. Ponha enfim nesse rosto uma sucessão ininterrupta de jogos fisionômicos inconscientes - um frequente sorriso causado por uma evocação, um franzir de espessas sobrancelhas, que de súbito se movem, para cima e para baixo -, tudo isso acompanhado de movimentos de braços ou dos ombros, e terá então a imagem daquele que era o espantalho de toda a região, o terror de seus colegas, um motivo de indignação para os professores e o desespero do bispo". (p. 87)

Essa pequena amostra revela o tom inicial da narrativa, que penderá para o dado humorístico e mesmo caricatural. Além da descrição grotesca, seus hábitos excêntricos (em especial a desordem da casa paroquial que habita) e a misantropia característica de sua pessoa indicam ao leitor que o Urso Polar ao qual se refere o narrador e que titula a novela não é ninguém menos que o próprio pastor. Neste primeiro momento também ficamos sabendo que Thorkild divide a casa com Rusggard, reverendo auxiliar e aspirante à bispo, figura que será chave (mas de um modo negativo) em seu processo de formação, como veremos.

É então que a estrutura tradicional do romance de formação, ao qual aludi antes, é retomada, mas de forma enviesada, revelando a "deformação" do religioso. A narrativa retrocede à infância e adolescência de Müller, onde o encontramos na condição de órfão de pai e de máximo desgosto da mãe, por sua figura grotesca já enquanto bebê: ao lançar certo dia um olhar furtivo ao filho, ela suspira e ora por ele, "cujo jugo Nosso Senhor jogou sobre seus ombros". Sua família é pobre e como maneira de vencer a pobreza,  Thorkild, já jovem, decide estudar teologia. Contudo, é incapaz de decorar os ritos e de aprender as matérias, causando riso nos colegas de seminário e sendo frequentemente alvo de pilhérias por parte deles. Aos trancos e barrancos, ele vai avançando no curso e, como parte de uma tradição da Igreja Luterana na Dinamarca, vê-se obrigado a cumprir um "estágio" pastoral na Groenlândia. Na última hora, Thorkild bola um estratagema para escapar deste fado e que consiste em ficar mudo durante os exames orais. Mas até nisso ele falha: incapaz de conter a necessidade de falar, é aprovado, ordenado e "enviado à paróquia mais setentrional daquele vasto mundo" (p. 98)






E é na gélida, inóspita, desolada (mas de uma beleza incrível) Groenlândia que sua formação começa de fato a ocorrer. Deve-se destacar, dentre as qualidades estético-narrativas da prosa de Pontoppidan, as impressionantes descrições do ermo fiorde em que o agora pastor passa a viver, desde a chegada do inverno, época do ano em que os moradores retornam para, enfurnados em pequenas cavernas protegidas do frio, passarem em comunidade esta época do ano, até a o milagre que representa o reaparecimento do sol (e o degelo por ele provocado), trazendo consigo vida e alento àquela vastidão branca. Retornando à temática do romance de formação e abandonando, de certo modo, o tom irônico-humorístico inicial, encontramos Thorkild tomado pela dúvida entre a fé a que foi obrigado a abraçar (o narrador descreve sua absoluta incapacidade de se concentrar nas leituras sacras e nos textos clássicos de teologia, essenciais para o exercício do pastorado) e a vida mundana, mesmo a escassa vida em torno do fiorde. Contribui bastante para a decisão por esta última a aparição do velho Ephrain e de sua bela filha Rebecca, no último dia de migração da pequena comunidade em direção das montanhas após o prenúncio do verão. A despeito dos nomes bíblicos, os dois possibilitam a ele uma fuga das obrigações religiosas e um mergulho na cultura e na vida selvagem locais. Ele decide acompanhá-los e, envolvido amorosa e sexualmente por Rebecca, o pastor passa o verão em caçadas às renas e focas, come as exóticas comidas nativas, enfurna-se nas cavernas, aprende a esquiar e a guiar os trenós puxados pelos cães; experimenta, enfim, uma espécie de renascimento:

"Tornara-se um homem novo... como recriado. Sentira as novas fontes de vida que brotavam de seu ser, enquanto se movia de um lado a outro, sobre os platôs, sem jamais saber onde nem com quem,. Hoje numa equipe, amanhã noutra, aprendera, agora que conhecia as pessoas e a língua que falavam, a pescar como elas o salmão ao longo dos rios ou a caçar sobre o gelo deslumbrante dos planaltos. Um dia, aventura-se mesmo a perseguir na companhia de Ephrain e de seus filhos, um casal de renas, do qual haviam descoberto o rastro. E quando os esquimós compreenderam em que madeira seu pastor fora talhado, passaram a considerá-lo como sendo um dos seus." (p. 108)

Thorkild casa-se com Rebecca, tem filhos com ela e, plenamente adaptado, resolve permanecer para sempre na Groenlândia: ele envelhece no Pólo Norte, tornando-se, de fato, o Urso Polar. Mas o rumo dos acontecimentos faz renascer nele um secreto desejo de retorno: Rebecca morre algum tempo depois e a nostalgia da Dinamarca aos poucos se apossa do pastor. O sentimento é tão insuportável que ele cede, escreve Ministério dos Cultos e, deixando os filhos e amigos para trás, regressa à Jutlândia, sendo enviado às paróquias de Soeby e Sovard em que o encontramos no início da narrativa. Sua figura exótica, como vimos, causa espanto e repulsa, mas ele, ingênuo, pensa tratar-se de reverência a seu passado aventureiro e suas extraordinárias aventuras vividas na Groenlândia. Mas aos poucos essa repulsa se transforma em curiosidade e, depois, em respeito. Isso porque o pastor traz àquela comunidade uma forma pouco ortodoxa de relacionar-se com a religião, em parte por sua visão particular da vida (talhada pelas experiências no gelo insular), em parte por sua simplicidade e  pela franqueza com que dá conselhos, faz exortações, conduz os cultos, dirige, enfim, seu rebanho.

Mas é evidente que essa proeminência lhe causa problemas. O reverendo Rusggard, que encontramos no início da narrativa e que aspira aos altos cargos, trama com as autoridades eclesiásticas e, após uma nada ortodoxa extrema-unção proferida por Thorkild - ele prometera ao moribundo que no céu haveria mulheres, bebida, fumo e festas!, tudo com o singelo objetivo de confortá-lo em sua passagem final -, consegue que o bispo visite as paróquias. Rusggard consegue colocar a comunidade contra seu pastor e, no clímax da narrativa, uma cerimônia é preparada para a chegada do bispo, onde todos esperam que a máxima culpa recaia sobre Thorkild. O próprio Rusggard exulta de satisfação ante à derrota de seu oponente, mas todas essas expectativas são frustradas pelo velho e experimentado Urso Popular: em vez de comparecer ao seu altar de sacrifício e de execração pública, ele desaparece. Ao tentar buscá-lo em casa, encontram apenas uma mensagem dizendo que a comunidade tinha os tiranos que mereciam. É claro que ele retornara ao Pólo Norte. O livro termina afirmando que ninguém nunca mais se soube nada dele. Pouco importa: sua formação está, enfim, completa.

Procurei traçar um panorama da narrativa, pois julgo que, para apresentar a complexidade da personagem central da novela de Pontoppidan, seja necessário acompanhar seus impasses iniciais, a transformação ocorrida na Groenlândia, a inadaptação em seu retorno, as intrigas que o cercaram e, por fim, seu retorno ao lugar que de fato lhe pertencia no mundo. Ainda que a resenha entregue o enredo e seu final, penso não invalidar um estímulo à leitura desta pequena joia da literatura dinamarquesa. E se a aspiração do Prêmio Nobel é, como venho reiterando neste blog, o reconhecimento de autores e textos que falem do universal a partir de suas realidades locais, a novela de Henrik Pontoppidan cumpre essa missão de modo irrepreensível: guardando as devidas distâncias temporais que, claro, envelhecem um pouco as escolhas narrativas (sem, contudo, envelhecer sua mensagem), ela dá conta de traçar a formação de um sujeito não pelas tintas ilustradas da cultura ocidental, mas pelo amor à vida simples e aventureira experimentada por Thorkild Müller na Groenlândia e que poderia ser a experimentada por qualquer um em qualquer parte do mundo.


Jorge Verly


Referência da leitura: PONTOPPIDAN, Henrik. O urso polar. IN: _______. O urso polar e outras novelas. Trad. de Osman Lins. Rio de Janeiro: Delta, 1963, p. 85-132.






sábado, 7 de setembro de 2019

As rãs, de Mo Yan



Olá,


O primeiro Prêmio Nobel de Literatura oficialmente concedido à China foi dado ao escritor Mo Yan em 2012. Digo oficialmente porque antes dele Gao Xingjian recebeu o laurel em 2000, porém representando a França, para onde emigrara nos anos 1990 por motivos políticos. A escolha de Yan foi amparada em sua escrita "que, com realismo alucinatório, funde contos populares, história e contemporaneidade", nas palavras da Academia Sueca. Nascido em 1955 na província de Shandong numa família camponesa, o autor começou a publicar nos anos 1980. Em chinês, o nome de Mo Yan significa "não fale". O escritor sempre justificou a escolha desse pseudônimo - aliás, é muito comum entre os chineses escolhê-los - como um conselho dos pais para evitar emitir opiniões pessoais num regime altamente persecutório como é o de seu país. 

Quando o nome de Yan foi anunciado como o vencedor, muitos escritores, entre eles alguns ex-laureados, como Herta Müller, criticaram duramente a escolha, acusando o autor de ser conivente com a ditadura chinesa, usando como exemplo o seu silêncio no caso da prisão no Prêmio Nobel da Paz, Li Xiabo, e da perseguição ao multi-artista Ai Weiwei. O que é veemente desmentido por sua obra: a literatura de Mo Yan é representativa de uma China obrigada a conviver com o peso da tradição e as novas demandas da modernidade, tudo visto pelo diapasão do regime comunista, nem sempre de uma forma condescendente como apontam seus críticos. Um exemplo é o romance Peito grande, ancas largas (1995), uma desafiadora reflexão sobre o papel da mulher na sociedade chinesa tendo como amparo não a luta de classes consagrada como norma narrativa do Partido Comunista, mas sim a visão particular da condição feminina, fato que desagradou as autoridades do país, levando a obra a ser proibida e retirada de circulação. Mo Yan foi, inclusive, sentenciado a escrever e divulgar uma autocrítica sobre o livro. 

Há apenas dois livros do autor disponíveis no Brasil. Mudança (2007) é um volume de memórias publicado pela extinta Cosac & Naify. Já As rãs (2009) é um romance de contornos épicos sobre a política do filho único adotada pelo governo chinês a partir da década de 1960. Foi a obra que elegi para ler e resenhar, em parte por ser a mais acessível e em parte por ser um exemplo bem acabado da "prosa alucinada" tão cara ao autor chinês. 

Narrada em primeira pessoa por Girino (ou Corre Corre, como é chamado pelos amigos e parentes), a história começa como um carta escrita por ele a um certo professor Sugitani (que, como descobriremos ao longo do romance, tem relação direta com a história de sua família), na qual informa o desejo de escrever uma peça sobre sua tia, Wan Coração, a primeira obstetra da província da Gaomi, onde está localizada sua aldeia. Segundo Girino/Corre Corre, ela se formou em medicina nas condições precárias que envolviam o exercício desta profissão na China recém convertida ao comunismo e, entre 1953 e 2001, período em que esteve em atividade, trouxe ao mundo mais de dez mil crianças. Já no início do livro, o estilo picaresco adotado pelo narrador fica patente, seja pelas voltas e reviravoltas frenéticas que ditam o ritmo dos acontecimentos que povoam a história - sempre como um pitada de realismo mágico, razão pela qual são frequentes as comparações entre Mo Yan e Gabriel Garcia Márquez -, seja pelo olhar irônico e divertido com que aquela China perdida entre a tradição secular e os novos paradigmas de uma sociedade que se queria fazer uniformizada. Cito como exemplo a forma divertida com que Girino explica a tradição que têm os aldeães em batizar seus filhos com nomes que evocam as partes do corpo (Fígado, Vesícula, Bochecha, Coração) de acordo com as características físicas e/ou comportamentais apresentadas pelas crianças e por seus pais. Corre Corre, explica ele, é um nome que advém de suas enormes e finas pernas de atleta e de sua habilidade se esgueirar rapidamente em meio à multidão.




Um dos episódios mais impactantes da história é a cena em que as crianças da escola primária da aldeia comem carvão para driblar a fome, quase uma onipresença na sociedade chinesa daquele período inicial do comunismo, os anos de 1950, década de nascimento tanto do narrador, como do próprio Mo Yan. Encantados diante de um carregamento do produto que chega para abastecer a cantina da escola - usada não para alimentar as crianças, mas sim os dirigentes do Partido Comunista local e os funcionários públicos, os únicos que tinham direito a comer o "grão comercial", i. e., comida de graça -, as crianças se postam diante dele, absolutamente mesmerizadas:

"Ficamos debruçados sobre o monte de carvão, parecendo geólogos amadores diante de uma nova descoberta; farejávamos como cães à procura de comida em meio ao entulho. Antes de continuar, é preciso agradecer a Chen Nariz e também a Wang Vesícula. Foi Chen quem primeiro pegou um pedaço de carvão, colocou-o diante do nariz e cheirou. Franziu a testa como quem reflete sobre alguma questão profunda. Tinha um nariz enorme, do qual adorávamos caçoar. Depois de refletir por um momento, ele arremessou contra uma pedra maior o carvão que tinha na mão. O carvão se partiu com um ruído e exalou aquele cheiro. Catou uma lasquinha, seguido de Wang Vesícula, provou com a ponta da língua, virou os olhos e voltou-se para nós. Vesícula fez o mesmo: lambeu o carvão e olhou para nós. Depois se entreolharam, sorrindo, com muito cuidado e, em fortuita sincronia, mordiscaram um pedacinho, mastigaram, depois morderam mais um pedaço e mastigaram com força. Seus rostos transbordavam de excitação". (p. 15)

Este trecho diz muito da maestria narrativa que transparece na narrativa de Mo Yan. Tratando de um tema bastante candente à história chinesa que é a grave crise de fome que acometeu o país nos anos 1950 - ainda durante o processo de reorganização econômica do governo de Mao Tsé Tung - com cores irônicas, o autor exerce uma poderosa crítica àquele mesmo sistema, na contramão das acusações de parcialidade e de silenciamento que sua obra sempre sofreu.

Não há dúvidas de que a grande personagem do romance é a tia do narrador. Girino/Corre Corre faz questão de situá-la nos momentos-chave da história chinesa, contrapondo sua inabalável fé no comunismo e nos programas de natalidade por ele impostos à vilania do regime que ela, por conta dessa visão aferrada a seus princípios, é incapaz de reconhecer. É assim, por exemplo, que em seu primeiro parto - justamente o de Chen Nariz, amigo do narrador -, vamos encontrá-la em confronto com uma das "vovós bruxas" (como eram chamadas as antigas parteiras da China Imperial) trepada sobre a barriga da agonizante parturiente. Wan Coração a expulsa à pontapés e socos, numa clara mensagem de que na Nova China não há mais lugar para velhas técnicas e ultrapassadas crendices. Noutro momento, ele nos conta de sua desafortunada ligação com Wan Xiaoti, seu noivo e que, sendo piloto da Força Aérea Chinesa, acaba desertando e fugindo para Taiwan, com avião e tudo, trazendo vergonha e desgraça à reputação de sua tia. No entanto, em lugar de sofrer de amor, ela não exita em enfrentar uma colega obstetra do posto de saúde da aldeia que lhe acusara conivência com o noivo e simpatia ao ocidente e, depois de surrá-la, corta os pulsos e escreve com o próprio sangue "Odeio Wang Xiaoti! Sou do Partido enquanto viver! Serei do Partido depois de morrer!" (p. 78). 

Pouco depois, vamos encontrá-la mergulhada de corpo e de alma na defesa das recentes políticas de natalidade do governo do presidente Mao, a despeito da desconfiança dos mais velhos e da própria família. Adiante, na Revolução Cultural, a obstetra é humilhada publicamente, como era comum a todos os funcionários públicos mais velhos, considerados parasitas e inimigos do comunismo:

"A guarda vermelha deu um salto e agarrou minha tia pelos cabelos, puxava-a para baixo com força. Minha tia forçou a cabeça para cima e ficou num cabo de guerra com a moça. 'Tia, abaixe a cabeça senão ela vai arrancar seu cabelo junto com o couro! Essa gorda tem pelo menos cinquenta quilos e já está pendurada no seu pescoço, agarrada ao seu cabelo'. Minha tia sacudiu a cabeça bruscamente, como um cavalo bravo que balança a crina - a moça caiu no chão com duas mechas de cabelo nas mãos. O sangue escorria pela cabeça de minha tia - ainda hoje dá para ver duas cicatrizes do tamanho de uma moeda - até a testa e as orelhas. Mas seu corpo se manteve ereto. A plateia estava em total silêncio, um burro que puxava uma carroça esticou o pescoço e zurrou bem alto." (p. 113)


Wan Coração não se curva, não se dobra. Porque sabe que será útil depois. Como de fato ocorre: reabilitada, ela volta a praticar a medicina e, já na vigência da rígida política do filho único, é ferrenha defensora da medida e pratica, sem dó, abortos nas mulheres da região que se recusam a cumprir a norma do governo. É daí que vem, aliás, a ironia presente no título do romance: na língua chinesa, rã ("wa") significa tanto rã quanto criança. São muitas as rãs que não chegam a vingar por conta da atuação de Wan Coração. Não que ela tenha consciência de sua maldade. Como dito, a visão estreita da médica e sua visão utilitarista das demandas do Partido a isentam de culpa. E mais: contribuem para a crítica que a narrativa de Mo Yan, pela voz/escrita de Girino - que termina o livro escrevendo, de fato, a peça sobre sua tia, um livro dentro do livro - pretende empreender. 

As rãs é uma narrativa epicista na medida em que a atravessa a história recente da China, história que tem implicações diretas na vida e nas ações das dezenas que personagens que povoam o livro. É também um livro picaresco porque o surpreendente e o heroico são contados como sendo dados naturais da vida, sucedem como tem de suceder todas as coisas. Mas, para além dessas camadas meio óbvias de leitura da obra, está a poderosa visão não alinhada de Mo Yan. Mesmo pertencendo ao Sindicado Chinês de Escritores, mesmo tendo sido autorizado a receber o Nobel sem sanções ou reprimendas do governo, não podemos deixar de considerá-lo um escritor independente. Pois, como ele mesmo apontou numa entrevista, há os que escolhem as ruas como lugar de protesto e há aqueles que prefiram a solidão de um quarto ou a solidão da escrita. É através dela que Mo Yan vem construindo uma China paralela. Sua literatura revela um país alucinado e frenético e também, para quem sabe ler através dessa loucura e desse frenesi, um país também perverso e opressor. 

Jorge Verly 

Referência da leitura: YAN, Mo. As rãs. Trad. de Amilton Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Poemas de luz e escuridão, de Harry Martinson



Olá,


Na história dos Prêmios Nobel de Literatura, talvez o caso mais controvertido tenha sido a escolha, em 1974, dos suecos Eyvind Johnson e Harry Martinson (1904-1978). Imediatamente após a eleição dos dois autores - um romancista (Johnson) e um poeta (Martinson) -, a imprensa e os círculos literários do mundo inteiro passaram a acusar a Academia Sueca de parcialidade e de favorecimento, uma vez que ambos eram membros daquela instituição. Deve-se destacar que não foi a primeira vez que um membro do comitê que escolhe o Nobel recebia o prêmio: em 1931, o poeta Erik Axel Karlfeldt, nada menos que ocupante do cargo de secretário-perpétuo da instituição sueca, foi o escolhido. Entretanto, a premiação de Karlfeldt, que havia morrido meses antes da premiação (quando o júri não havia ainda deliberado acerca do escolhido daquele ano), em lugar de causar espanto, soou como uma homenagem ao então considerado o maior poeta da Suécia. O caso de 1974 foi diferente. Além de vivos, a dupla Johnson-Martinson era influente e, conforme bastidores da Academia, tinha sido decisiva na escolha de premiados dos anos anteriores. Nesse sentido, quando seus nomes foram anunciados, a imprensa e a crítica internacional trataram menos de avaliar suas obras e mais de alardear o pretenso "escândalo" que representa aquela escolha. 

O que, na prova dos anos, mostrou-se bastante injusto, sobretudo no caso de Harry Martinson. Escolhido em razão de seus "escritos que capturam a gota de orvalho e refletem o cosmo" (nas palavras do comunicado oficial), o poeta sueco era reputado como um observador sensível da realidade, criando imagens poderosas a partir dela. Bastante influenciado por culturas e lugares que, tendo sido marinheiro na juventude, visitou ao longo da vida - inclusive o Brasil nos anos 1930 - , Martinson construiu uma obra vigorosa, múltipla e, principalmente, acessível. A eleição de seu nome para o Nobel de 1974 causou uma profunda comoção no velho poeta. Mas foi a repercussão negativa desta escolha que selou fatalmente o seu destino. Deprimido e doente, ele acabou cometendo suicídio em um hospital de Estocolmo em fevereiro de 1978, abrindo a barriga com duas tesouras, numa reprodução da tradição milenar do seppuku (o conhecido "haraquiri") japonês. A despeito desse componente grotesco que envolveu sua morte, o ato final de Harry Martinson representa, ao mesmo tempo, o olhar atormentado e sensível em face do mundo e a busca por pautar sua existência (ainda que no instante derradeiro) pelo diapasão da tradição.

Infelizmente, ele não possui livros traduzidos em português. Há apenas uns poucos poemas esparsos publicados em blogues e livros específicos e atualmente esgotados. Para esta postagem, recorri a uma antologia de poemas do autor publicada em espanhol e publicada em 1975 em Barcelona, na esteira de interesse despertada pela prêmio. Como ela abrange praticamente todas as fases de sua obra e traz uma volumosa e bastante completa seleção de poemas, organizados por livros em ordem cronológica de publicação, optei por ler e resenhar um dos últimos volumes de sua produção, justamente o anterior ao Nobel: Poemas sobre luz e escuridão, livro publicado em Estocolmo em 1971 e cujos versos optei por traduzir para esta análise. Nesta obra, encontramos um olhar poético extremamente perspicaz e atento, uma espécie de antena do mundo, sempre pronta a captar seus murmúrios e sinais, para depois codificá-los em versos que se destacam pela precisão com que mimetizam estes mesmos sons e símbolos. Tudo isso tendo como filtro o olhar de um poeta envelhecido e que, exatamente por esta razão, não tem mais pudores em transitar pela decrepitude, mas que busca - ainda sabendo ser esta uma ação irrealizável - uma recuperação de sua juventude (ou do olhar e dos sentimentos que ela evoca) para então intentar um acerto de contas com ela. É esta a temática de um dos primeiros poemas do livro, "Ajuste de contas":

A folhagem vespertina do final do verão se 
     escurece, o vento caminha
com mocassins de nuvens pela ramagem do tempo.
     Aproveites.
Se afugentas a melancolia, o tempo a entrega
     em seu copo de plástico,
um cálice irreconhecível,
nova amargura sem sabor,
um frio desespero que se cola furtivamente
     às tardes de tranquilizantes.

Devia ter ido a um balneário, tu dizes.
Devias ter fugido de ti mesmo a outro
     homem, distinto.
Palavras vãs. Ainda que te apresses e saias 
     rapidamente,
perderás todos os teus trens,
cai o crepúsculo sem encanto, simplesmente
     anoitece.
Por que abandonaste as dores que, no entanto,
     tinham rostos próprios?
Não, querias ter coisas novas de todo 
     jei-to,
também os cadáveres deveriam ser novos,
mortos recém mortos.
Quando agora andas perdido, nem sequer sabes o
      que é andar perdido,
teu vazio pesa
até ao ponto em que o avião tem
dificuldades para decolar.
Tu simplesmente segues perseguindo uma alegria
     que desejas sem sombra.

Mas sem dores não há eixo ao qual ser fiel,
sem dores que lhe deem profundidade não há 
     verdadeiro mar,
só há uma borrifante prolongação até 
     o nada,
onde tu estás fazendo a cama vazia no
     vazio.
Oh, se nos libertássemos de ti, vazio, que sempre
     apareces abrindo caminho às cotoveladas,
de ti, coração do vazio, duro como uma pedra,
que unicamente comes alegria e com alegria
      a consomes,
depois nada mais.
(p. 204-205)


Desde as linhas iniciais do poema, ficamos a par da temática da passagem do tempo e da (im)possibilidade de sua recuperação. O eu-lírico é alguém que, embora envolvido pelas belas imagens que o texto evoca/constrói ("o vento caminha / com mocassins de nuvens pela ramagem do tempo"), vê-se incapaz de estar outra vez no passado, bem como de escapar de sua inexorável passagem ("Devias ter fugido de ti mesmo a outro / homem, distinto. / Palavras vãs."). Há um gosto pela novidade, pela juventude, mas que se revela decrépita pela atual situação de velhice do eu-lírico e que emite suas penas ("também os cadáveres deveriam ser novos, / mortos recém mortos") através do texto. Sendo Martinson um poeta evocativo, capaz de eludir o peso do vazio em imagens do cotidiano, da própria modernidade ("teu vazio pesa / ao ponto em que o avião tem / dificuldades para decolar"), não podemos deixar de notar que é a alegria de estar outra vez (ainda que precariamente) no tempo passado o leitmotiv que impulsiona sua poética para diante, ao ponto de, mesmo contrapondo elementos díspares (a alegria e "depois nada mais"), encontrar algum alento no mero fato de recompor com imagens o tempo passado. Mas nunca plenamente recuperado, como já apontava Proust.




Para além das potentes imagens que são erigidas nos poemas longos do autor sueco, é nos poemas curtos que encontramos a condensação, a síntese de toda uma vida que, assim como na matéria que amalgama a potência (por vezes destrutiva) dos átomos, expõe um olhar sensível e definitivo sobre o mundo, tal como lemos em "Aviso":


Pelo Atlântico Norte viajou  dezessete anos
ondulando uma garrafa
com uma mensagem como passageira.
Frequentemente se assemelhava, em silêncio,
a um gigantesco vapor de Southampton.
Encalhou sem que a houvessem lido e ficou
     congelada
entre as geleiras da Costa do Labrador. (p. 222)


Neste pequeno poema, construído no estilo telegráfico tão caro à estética modernista, o autor encerra a possibilidade comunicativa da poesia num elemento mínimo (a garrafa) a viajar pelas vastidões da própria linguagem, destacando desde seu título que o imperativo de que a mensagem perder-se-ia em na própria ausência de destinatário. Assim é que a o aviso (do qual o leitor jamais saberá o conteúdo, já que "encalhou sem que a houvesse lido") transforma-se na natureza mesma da linguagem poética, ou seja, em sua viagem pelo mar de significados infinitos da palavra escrita. Na equação mar (a linguagem), garrafa (a forma, o poema) e mensagem (o sentido do poema), perde-ganha aquele que nunca chegará plenamente a lê-la, a conhecê-la e tendo, por isso mesmo, infinitas possibilidades de interpretá-la com seu próprio "horizonte de expectativas", como ensina a lição da estética da recepção e que, ao que parece, foi bem aprendida pelo poeta. 

Como apontado na exposição de motivos da Academia Sueca para a atribuição do Nobel a Harry Martinson, sua poesia reflete o mundo no mimetismo que realiza a partir dos elementos da empiria social. É um poeta monadológico por constituição, sendo a forma, o conteúdo e a capacidade de fundição desse elementos a marca distintiva da universalidade de seus textos. Em "A peneira de lembranças" lemos que:

(...)
O homem exige das coisas
mais que elas exigem dele.
Avaro e implacável,
consume seu esplendor. (p. 237)


Os grãos que se acumulam através da mineração daquilo que todos nós peneiramos a partir da(s) experiência(s) vivida(s) constitui o que buscamos em essência: um olor, um rumor, um fragmento que sirva de síntese do que vivemos e que tentamos reviver. Exigimos muito das coisas, mas eles nada podem nos oferecer senão o fato de que existem. Embora melancólica, essa verdade também é capaz de mobilizar os sentidos todos que carregamos, impelindo-nos a continuar examinando o mundo. Navegando seus mares. Peneirando o que passou para, ainda que sem captá-la e compreendê-la totalmente, fazer valer a existência. Ainda que sua poesia não se destaque enquanto exemplo de inovação formal, nos moldes de tantos outros poetas reputados entre os melhores do século XX - Valéry, Eliot, Mallarmé, Pound ou Elýtis, por exemplo -, a intensidade dos escritos de Harry Martinson, monumentos mínimos da pulsação humana, justificam sua eleição para o Nobel. Mas mais que isso: justificam sua inscrição no rol dos grandes poetas do nosso tempo. Cabe ao leitor ultrapassar a barreira imposta pela polêmica em torno de sua escolha para, enfim, encontrar-se refletido em sua luminosa poesia.


Jorge Verly


Referência da leitura: MARTINSON, Harry. Poemas sobre luz y oscuridad. In: Antología poética.  Trad. de Francisco J. Uriz. Barcelona: Plaza & Janes, 1975, p. 201-237.

Noche cerrada, de Vicente Aleixandre

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