terça-feira, 3 de setembro de 2019

Poemas de luz e escuridão, de Harry Martinson



Olá,


Na história dos Prêmios Nobel de Literatura, talvez o caso mais controvertido tenha sido a escolha, em 1974, dos suecos Eyvind Johnson e Harry Martinson (1904-1978). Imediatamente após a eleição dos dois autores - um romancista (Johnson) e um poeta (Martinson) -, a imprensa e os círculos literários do mundo inteiro passaram a acusar a Academia Sueca de parcialidade e de favorecimento, uma vez que ambos eram membros daquela instituição. Deve-se destacar que não foi a primeira vez que um membro do comitê que escolhe o Nobel recebia o prêmio: em 1931, o poeta Erik Axel Karlfeldt, nada menos que ocupante do cargo de secretário-perpétuo da instituição sueca, foi o escolhido. Entretanto, a premiação de Karlfeldt, que havia morrido meses antes da premiação (quando o júri não havia ainda deliberado acerca do escolhido daquele ano), em lugar de causar espanto, soou como uma homenagem ao então considerado o maior poeta da Suécia. O caso de 1974 foi diferente. Além de vivos, a dupla Johnson-Martinson era influente e, conforme bastidores da Academia, tinha sido decisiva na escolha de premiados dos anos anteriores. Nesse sentido, quando seus nomes foram anunciados, a imprensa e a crítica internacional trataram menos de avaliar suas obras e mais de alardear o pretenso "escândalo" que representa aquela escolha. 

O que, na prova dos anos, mostrou-se bastante injusto, sobretudo no caso de Harry Martinson. Escolhido em razão de seus "escritos que capturam a gota de orvalho e refletem o cosmo" (nas palavras do comunicado oficial), o poeta sueco era reputado como um observador sensível da realidade, criando imagens poderosas a partir dela. Bastante influenciado por culturas e lugares que, tendo sido marinheiro na juventude, visitou ao longo da vida - inclusive o Brasil nos anos 1930 - , Martinson construiu uma obra vigorosa, múltipla e, principalmente, acessível. A eleição de seu nome para o Nobel de 1974 causou uma profunda comoção no velho poeta. Mas foi a repercussão negativa desta escolha que selou fatalmente o seu destino. Deprimido e doente, ele acabou cometendo suicídio em um hospital de Estocolmo em fevereiro de 1978, abrindo a barriga com duas tesouras, numa reprodução da tradição milenar do seppuku (o conhecido "haraquiri") japonês. A despeito desse componente grotesco que envolveu sua morte, o ato final de Harry Martinson representa, ao mesmo tempo, o olhar atormentado e sensível em face do mundo e a busca por pautar sua existência (ainda que no instante derradeiro) pelo diapasão da tradição.

Infelizmente, ele não possui livros traduzidos em português. Há apenas uns poucos poemas esparsos publicados em blogues e livros específicos e atualmente esgotados. Para esta postagem, recorri a uma antologia de poemas do autor publicada em espanhol e publicada em 1975 em Barcelona, na esteira de interesse despertada pela prêmio. Como ela abrange praticamente todas as fases de sua obra e traz uma volumosa e bastante completa seleção de poemas, organizados por livros em ordem cronológica de publicação, optei por ler e resenhar um dos últimos volumes de sua produção, justamente o anterior ao Nobel: Poemas sobre luz e escuridão, livro publicado em Estocolmo em 1971 e cujos versos optei por traduzir para esta análise. Nesta obra, encontramos um olhar poético extremamente perspicaz e atento, uma espécie de antena do mundo, sempre pronta a captar seus murmúrios e sinais, para depois codificá-los em versos que se destacam pela precisão com que mimetizam estes mesmos sons e símbolos. Tudo isso tendo como filtro o olhar de um poeta envelhecido e que, exatamente por esta razão, não tem mais pudores em transitar pela decrepitude, mas que busca - ainda sabendo ser esta uma ação irrealizável - uma recuperação de sua juventude (ou do olhar e dos sentimentos que ela evoca) para então intentar um acerto de contas com ela. É esta a temática de um dos primeiros poemas do livro, "Ajuste de contas":

A folhagem vespertina do final do verão se 
     escurece, o vento caminha
com mocassins de nuvens pela ramagem do tempo.
     Aproveites.
Se afugentas a melancolia, o tempo a entrega
     em seu copo de plástico,
um cálice irreconhecível,
nova amargura sem sabor,
um frio desespero que se cola furtivamente
     às tardes de tranquilizantes.

Devia ter ido a um balneário, tu dizes.
Devias ter fugido de ti mesmo a outro
     homem, distinto.
Palavras vãs. Ainda que te apresses e saias 
     rapidamente,
perderás todos os teus trens,
cai o crepúsculo sem encanto, simplesmente
     anoitece.
Por que abandonaste as dores que, no entanto,
     tinham rostos próprios?
Não, querias ter coisas novas de todo 
     jei-to,
também os cadáveres deveriam ser novos,
mortos recém mortos.
Quando agora andas perdido, nem sequer sabes o
      que é andar perdido,
teu vazio pesa
até ao ponto em que o avião tem
dificuldades para decolar.
Tu simplesmente segues perseguindo uma alegria
     que desejas sem sombra.

Mas sem dores não há eixo ao qual ser fiel,
sem dores que lhe deem profundidade não há 
     verdadeiro mar,
só há uma borrifante prolongação até 
     o nada,
onde tu estás fazendo a cama vazia no
     vazio.
Oh, se nos libertássemos de ti, vazio, que sempre
     apareces abrindo caminho às cotoveladas,
de ti, coração do vazio, duro como uma pedra,
que unicamente comes alegria e com alegria
      a consomes,
depois nada mais.
(p. 204-205)


Desde as linhas iniciais do poema, ficamos a par da temática da passagem do tempo e da (im)possibilidade de sua recuperação. O eu-lírico é alguém que, embora envolvido pelas belas imagens que o texto evoca/constrói ("o vento caminha / com mocassins de nuvens pela ramagem do tempo"), vê-se incapaz de estar outra vez no passado, bem como de escapar de sua inexorável passagem ("Devias ter fugido de ti mesmo a outro / homem, distinto. / Palavras vãs."). Há um gosto pela novidade, pela juventude, mas que se revela decrépita pela atual situação de velhice do eu-lírico e que emite suas penas ("também os cadáveres deveriam ser novos, / mortos recém mortos") através do texto. Sendo Martinson um poeta evocativo, capaz de eludir o peso do vazio em imagens do cotidiano, da própria modernidade ("teu vazio pesa / ao ponto em que o avião tem / dificuldades para decolar"), não podemos deixar de notar que é a alegria de estar outra vez (ainda que precariamente) no tempo passado o leitmotiv que impulsiona sua poética para diante, ao ponto de, mesmo contrapondo elementos díspares (a alegria e "depois nada mais"), encontrar algum alento no mero fato de recompor com imagens o tempo passado. Mas nunca plenamente recuperado, como já apontava Proust.




Para além das potentes imagens que são erigidas nos poemas longos do autor sueco, é nos poemas curtos que encontramos a condensação, a síntese de toda uma vida que, assim como na matéria que amalgama a potência (por vezes destrutiva) dos átomos, expõe um olhar sensível e definitivo sobre o mundo, tal como lemos em "Aviso":


Pelo Atlântico Norte viajou  dezessete anos
ondulando uma garrafa
com uma mensagem como passageira.
Frequentemente se assemelhava, em silêncio,
a um gigantesco vapor de Southampton.
Encalhou sem que a houvessem lido e ficou
     congelada
entre as geleiras da Costa do Labrador. (p. 222)


Neste pequeno poema, construído no estilo telegráfico tão caro à estética modernista, o autor encerra a possibilidade comunicativa da poesia num elemento mínimo (a garrafa) a viajar pelas vastidões da própria linguagem, destacando desde seu título que o imperativo de que a mensagem perder-se-ia em na própria ausência de destinatário. Assim é que a o aviso (do qual o leitor jamais saberá o conteúdo, já que "encalhou sem que a houvesse lido") transforma-se na natureza mesma da linguagem poética, ou seja, em sua viagem pelo mar de significados infinitos da palavra escrita. Na equação mar (a linguagem), garrafa (a forma, o poema) e mensagem (o sentido do poema), perde-ganha aquele que nunca chegará plenamente a lê-la, a conhecê-la e tendo, por isso mesmo, infinitas possibilidades de interpretá-la com seu próprio "horizonte de expectativas", como ensina a lição da estética da recepção e que, ao que parece, foi bem aprendida pelo poeta. 

Como apontado na exposição de motivos da Academia Sueca para a atribuição do Nobel a Harry Martinson, sua poesia reflete o mundo no mimetismo que realiza a partir dos elementos da empiria social. É um poeta monadológico por constituição, sendo a forma, o conteúdo e a capacidade de fundição desse elementos a marca distintiva da universalidade de seus textos. Em "A peneira de lembranças" lemos que:

(...)
O homem exige das coisas
mais que elas exigem dele.
Avaro e implacável,
consume seu esplendor. (p. 237)


Os grãos que se acumulam através da mineração daquilo que todos nós peneiramos a partir da(s) experiência(s) vivida(s) constitui o que buscamos em essência: um olor, um rumor, um fragmento que sirva de síntese do que vivemos e que tentamos reviver. Exigimos muito das coisas, mas eles nada podem nos oferecer senão o fato de que existem. Embora melancólica, essa verdade também é capaz de mobilizar os sentidos todos que carregamos, impelindo-nos a continuar examinando o mundo. Navegando seus mares. Peneirando o que passou para, ainda que sem captá-la e compreendê-la totalmente, fazer valer a existência. Ainda que sua poesia não se destaque enquanto exemplo de inovação formal, nos moldes de tantos outros poetas reputados entre os melhores do século XX - Valéry, Eliot, Mallarmé, Pound ou Elýtis, por exemplo -, a intensidade dos escritos de Harry Martinson, monumentos mínimos da pulsação humana, justificam sua eleição para o Nobel. Mas mais que isso: justificam sua inscrição no rol dos grandes poetas do nosso tempo. Cabe ao leitor ultrapassar a barreira imposta pela polêmica em torno de sua escolha para, enfim, encontrar-se refletido em sua luminosa poesia.


Jorge Verly


Referência da leitura: MARTINSON, Harry. Poemas sobre luz y oscuridad. In: Antología poética.  Trad. de Francisco J. Uriz. Barcelona: Plaza & Janes, 1975, p. 201-237.

Um comentário:

  1. Apesar dos escândalos envolvendo sua premiação, Martinson é um grande poeta.

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