sábado, 24 de agosto de 2019

Noites das mil e uma noites, de Naguib Mahfouz



Olá,


As histórias dos bastidores da Academia Sueca contam que em 1988 a disputa final para o Prêmio Nobel recaiu sobre dois autores bastante parecidos, ambos muito representativos das literaturas de seus países, os dois exímios contadores de histórias: o brasileiro Jorge Amado e o egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006). A balança pendeu para Mahfouz porque em "trabalhos ricos em matizes - já vividamente realistas, já evocativamente ambíguos - formou uma narrativa árabe que se aplica a toda a humanidade", tal como se lê no comunicado oficial do comitê que distribui o prêmio. Penso sempre que se substituíssemos a palavra "árabe" por "brasileira", o mesmo poderia ser aplicado aos romances de Jorge Amado - e aí teríamos o primeiro Nobel brasileiro. Desejos nacionalistas à parte, é verdade que a obra de Naguib Mahfouz encanta e revela, evoca e representa o mundo árabe como poucas, sendo acessível a qualquer leitor de qualquer parte do mundo. A cerimônia de entrega do Nobel causou comoção porque, já idoso e receoso de uma viagem extenuante a Estocolmo em pleno inverno, Mahfouz enviou suas duas filhas para recebê-lo das mãos do rei Carl XVI Gustav, numa demonstração de sua visão particular o Islã e do papel da mulher naquela sociedade.

Não tinha lido nenhum livro do autor antes de iniciar este projeto. Inicialmente, escolhi o romance Miramar (1967) como objeto de resenha para o blog. No entanto, acabei seduzido por outra obra de Mahfouz, sobretudo pelo jogo intertextual (tema de minha mais cara preferência) que ela apresenta: Noites das mil e uma noites (1981), conjunto que histórias que formam um romance-mosaico que se pretende como releitura de As mil e uma noites. 


A(s) trama(s) se passa(m) numa cidade não-nomeada em algum lugar dos territórios árabes durante a Idade Média. Como dito, Mahfouz recria a narrativa clássica da literatura árabe e (re)utiliza muitas das personagens originais para (re)colocá-las em situações fantásticas e insólitas, em que sua força ética será testada para além das intenções originais dos contos de Sherazade. No início do romance, encontramos o vizir Dandan, pai da personagem, visitando o sanguinário e implacável sultão Shahriar e este lhe revela aquilo que já sabemos do final de As mil e uma noites: em face da arte narrativa de sua filha e também de sua beleza, ele decide poupar sua vida. Toda a cidade vibra, em profundo regozijo. E é aí que as "noites" que escaparam das histórias da bela jovem começam a acontecer na vida dos moradores do lugar.





Um exemplo é a história que trata dos infortúnios do abastado comerciante Sanaan Al Jimali. Este, ao acordar no meio da noite, pisa inadvertidamente no gênio Kamkam e este, como condição para poupar sua vida, ordena que Sanaan mate Ali Al Saluli, o governador do bairro, subordinado ao sultão. O infeliz comerciante passa a viver atormentado e como estratagema para bular a promessa feita ao gênio, estupra e mata uma pobre garotinha que encontra na rua, no meio da noite, colocando para fora seus instintos mais primitivos:

"Mas, tal como despertou do medo, também despertou a curiosidade da menina. A idade dele p que a fez lembrar-se de seu pai - induziu nela uma espécie de confiança, na qual uma ansiedade desconhecida se mesclava à expectativa de algum sonho extraordinário. Ela deu um grito choroso que cindiu seu impulso humano e fez surgir fantasmas assustadores em sua imaginação tenebrosa. Tapou-lhe rapidamente a boca com a palma trêmula da mão. Uma súbita recuperação dos sentidos foi como um tapa na cara, quando novamente voltou à realidade.

- Não chore. Não tenha medo - sussurrou encarecidamente." (p. 25)

Saanan escapa graças ao auxílio do gênio e, quando o crime é descoberto, o comerciante vive um martírio ainda maior. Cobrando por Kamkam, ele finalmente tem a oportunidade de ficar cara a cara com o governador, a quem finalmente mata. Livre da promessa, ele implora ao gênio que o liberte, mas este lhe dá uma sinistra (e ao mesmo tempo reveladora) lição: ele deve entregar-se e pagar pelos dois crimes, pois seu destino não é escapar, mas sim morrer com a certeza de que a morte do governador pelas suas mãos livrou o bairro de um de seus mais notórios corruptos.

Dentre as figuras que povoam os contos-capítulos do livro, tem destaque Jamsa Al Balti, presente em várias das histórias ali contadas. Inicialmente o encontramos inicialmente como um corrupto e implacável chefe de guarda que, após libertar o gênio Sanjam de uma bola de ferro que pesca no rio da cidade, é desafiado por este a eliminar todos os outros corruptos do lugar. Primeiro relutante, depois decidido, Jamsa acata o desígnio e passa a matar a flechadas, no meio da noite, comerciantes desonestos e políticos e autoridades que vivem de explorar o povo e de roubar dinheiro público. Apanhado, é condenado pelo sultão à morte exemplar por decapitação, porém, na hora da execução, escapa de uma forma fantástica: em seu lugar, o gênio coloca uma cópia e transforma Jamsa em outra pessoa, um novo homem que assume o nome de Abdala, o carregador. Regenerado de seus antigos vícios, ele se reaproxima de sua família caída em desgraça (sem que eles saibam que Abdala é, na verdade, Jamsa Al Balti) e ajuda, por exemplo, a triste história de amor do perfumista Nuredin e a irmã de Sherazade, Duniazade, a ter um final feliz. Mas Abdala faz inimigos, precisa fugir e é novamente transfigurado pelo gênio, sendo agora transformado num velho de barbas e cabelos brancos e longos, apenas intitulado como "O louco", que passa a ser respeitado como um homem sábio, inclusive pelo próprio sultão. É o louco que revela crimes, dá lições, orienta o sultão. Pratica o bem, enfim.

É importante destacar que Mahfouz se vale dos elementos fantásticos (mudanças de corpos, aparições de gênios - do bem e do mal -, sonos profundos e ressurreições) para criticar os vícios e vilezas da cidade e que, compreendida como um microcosmo do mundo árabe, podem ser lidos contemporaneamente como uma crítica à hipocrisia escondida pelos costumes e pela religião em nossos dias. Um exemplo é que, ao longo do romance, os cargos de governador do bairro, chefe da guarda e secretário de governo vão sendo ocupados por diversos homens, todos eles caídos em desgraça e condenados à morte por cederem às tentações do poder e da luxúria. A corrupção, afinal, está enraizada naquela cidade como de fato está na própria natureza humana. 

O que não impede que haja no livro algum tipo de redenção. Como na história "Aladim, de pintas no rosto", em que a mítica figura retirada das narrativas das Mil e uma noites é agora transformada num jovem que, sedento por sabedoria, busca o sheik Abdala Al Balakhi, uma espécie de guru do lugar, de quem toma ensinamentos e se aprimora na contemplação de Alá. Vítima do ciúme do novo chefe da guarda, uma vez que Aladim se casa com a filha do sheik (moça que o policial cobiçava), acaba envolvido numa falsa trama e é condenado à morte por roubo. Al Balakhi assiste a tudo impassível e, quando o infeliz prisioneiro é morto e sua filha lhe questiona por que nada fez para ajudá-lo, o Sheik sentencia: "Nós o salvamos da morte com a morte" (p. 186), indicando que a pureza do coração de Aladim era incompatível com este mundo apodrecido. 

O livro termina com "Os lamentadores", narrativa em que o sultão Shahriar, aparentemente regenerado de seus crimes, resolve abandonar Sherazade e o palácio e viver como errante. Depois de penetrar num portal incrustado numa rocha à beira do rio, ele se vê num reino mágico, habitado apenas por mulheres. Um banho num lago do lugar o faz outra vez jovem e ele é escolhido como esposo da rainha daquele reino feminino. No entanto, há uma porta proibida no palácio em que passam a viver. Shahriar é feliz, mas quer abrir a porta, o que acaba fazendo. Como castigo, torna-se novamente velho, mais velho que era antes, encurvado e abatido. E é o novo chefe da guarda quem lhe diz: 

" - Passo a você as palavras de um homem experiente que disse: 'Uma indicação do zelo da verdade é o fato de que ela não traçou para ninguém uma trilha até ela, e não privou ninguém da esperança de alcançá-la, deixando as pessoas correndo nos desertos da perplexidade e se afogando nos mares da dúvida; e se aquele que pensa que a atingiu, dela se afasta, e aquele que pensa que se afastou dela, perdeu o seu caminho. Portanto, não há como alcançá-la e não há como evitá-la: ela é inescapável." (p. 186)

E é esta a lição (não no sentido meramente edificante) que o livro de Naguib Mahfouz nos transmite em suas muitas, mil histórias: a de que a verdade é algo incontornável. Toda a vaidade, toda a corrupção, toda a vilania sucumbe diante dela, como vemos nas narrativas que vão sendo desfiadas pela maestria do autor egípcio. Se Sherazade contava para escapar da morte, iludindo Shahriar em suas mil e uma noites, Mahfouz faz dessa última noite (a da libertação da astuta narradora) um estratagema não para engambelar o leitor, mas para revelar a ele que, para aquém dos crimes e de seus castigos, há a verdade que reside na alta literatura, no prazer de narrar histórias que, ao fim e ao cabo, permitem revelá-la. Se serve de consolo, Jorge Amado perdeu seu Nobel para um autor que como ele soube criar e recriar tramas inesquecíveis e construir personagens fortes, complexos, fazendo do mundo árabe um lugar tão universal quanto a Bahia de Todos os Santos. Ou de todos os gênios. 

Jorge Verly

Referência da leitura: MAHFOUZ, Naguib. Noites das mil e uma noites. Trad. de Georges Fayez Khouri e Neuza Feif Nabhan. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 


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