terça-feira, 1 de setembro de 2020

Os peixes também sabem cantar, de Halldór Laxness


 


Olá!


Para muita gente, a Islândia só é conhecida pelas citações nas aulas de Geografia ou pelos programas sobre as terras exóticas exibidos pela televisão. Menos gente ainda conhece o nome de Halldór Kiljan Laxness (1902-1998), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1955, em virtude de "seu épico vívido e poderoso que renovou a grande arte narrativa da Islândia" - nas palavras do comitê responsável pela atribuição da honraria. De fato, a terra gelada do sol da meia-noite e dos pescados comercializados no mundo inteiro tem em Laxness um de seus maiores - se não o maior - orgulhos. Autor prolífico e longevo, Laxness escreveu um dos grandes clássicos contemporâneos, A estação atômica, seu romance mais conhecido e que tematiza as conturbadas relações entre sua ilha natal e os Estados Unidos, em disputa pela construção de uma base nucelar na região. Mas a obra de Laxness, claro, é muito maior que isso. Provenientes de uma tradição que remonta à Edda, um compilado de sagas islandesas e obra-matriz da literatura daquele país (e das narrativas nórdicas em geral), seus livros se espraiam para temas que cobrem as relações entre os islandeses e o mundo, as tradições ancestrais do país, as mudanças trazidas pela modernização que o rico empreendimento pesqueiro proporcionou quando de sua inserção no sistema capitalista em meados do século XIX, chegando à abordagens de uma Islândia já inserida no contexto contemporâneo. Mas, sobretudo, a literatura de Halldór Laxness trata do homem em seu eterno conflito com a natureza e a história, mediatizados pelo sentimento telúrico de um país que, aos poucos, perde seus feições quase medievais para mergulhar de forma abrupta do turbilhão do século XX. 

Nessa linha, escolhi como tema da postagem sobre o autor o romance Os peixes também sabem cantar, o primeiro escrito por ele após o Nobel. Disponível apenas em tradução portuguesa, trata-se de um dos pontos altíssimos da carreira de Laxness, seja pelo modo como descreve paisagens, seres e lugares e sua terra natal, seja pelo candente conflito entre o homem simples e a fama mundial que é a temática central da história.

O livro é narrado em primeira pessoa por Álfgrímur - um dos grandes desafios da leitura de Laxness são os substantivos próprios provenientes da língua islandesa -, a quem acompanhamos em retrospecto, desde o nascimento até o momento em que deixa a Islândia para seguir seu caminho. "Órfão" (o pai é desconhecido e a mãe após o abandona logo após nascimento), é adotado por Björn de Brekkokut, um velho pescador, e por sua cunhada, a quem chama de avó e avó. Embora se refira a vários locais da ainda ignota Islândia da virada do século XIX para o XX, o centro da narrativa é Brekkokut, a propriedade de Björn e que está localizada nos arredores de Reikjavík, a capital do país. O local é uma espécie de estalagem, por onde passam tipos diversos em trânsito pela cidade e onde também vivem residentes permanentes. Ninguém, no entanto, paga qualquer quantia por esse acolhimento, pois é regra em Brekkokut acolher bem aqueles que precisam de um canto para repousar, breve ou permanentemente. 




O olhar de Álfgrímur é vasto e seu relato eivado de observações que buscam uma interpretação e uma compreensão simbólica para aquilo que vê e experimenta. Também são filtradas por esse olhar as tradições e crenças milenares daquela terra em embate com uma inescapável modernidade. É assim que ele tenta decodificar a relação entre o avô, que vende seus peixes pescados de modo tradicional em um pequeno e obsoleto barco, e o comerciante Gudmúnssen, dono de loja e exportador de pescado. O narrador também descreve seu aprendizado das primeiras letras - iniciado em casa pela avó, personagem que permanecerá inominada durante todo o livro, mas que será determinante para o rumo que sua vida, afinal, tomará - e seu dilema entre permanecer em Brekkokut como pescador de peixes-lapa ou seguir alguma carreira. Em suma, a visão de Álfgrímur é marcada por um olhar dicotômico acerca do mundo, onde a baliza é ele próprio, num exercício de afirmação do sujeito em face do real que o delimita, como nas observações que faz a respeito da recusa de seu avô em aumentar o preço do peixe, como fazem os outros pescadores assim que a Islândia começa a entrar nas engrenagens do capitalismo tardio:

"Mas o que é que um homem merece, perguntarão as pessoas. Quanto é que um homem merece ganhar? Quanto é que um pescador deveria aceitar? Apenas o diabo poderia dizê-lo. Presentemente, alguém que rejeitasse a avaliação dos bancos teria de resolver sozinho quebra-cabeças morais complicados, várias vezes por dia. Mas esses problemas nunca pareceram desconcertar meu avô, nem causar-lhe ansiedade. Dificuldades que aos olhos da maioria das pessoas teriam conduzido a complicações infindáveis eram despachadas pelo meu avô quase sem pensar, com a segurança fácil de um sonâmbulo que se encontra a meio do caminho ao longo da borda de um precipício com dezenas de metros de profundidade. Sim, estou tentado a dizer que agia com o mesmo desprezo pelas leis da natureza com que um fantasma passara através de portas pechadas à chave." (p. 21)

Mas há no livro uma figura que serve como "inspiração" para o jovem e que, no contexto de romance, é um modelo também para toda a Islândia: Gardar Hólm. Reputado como o maior cantor lírico do mundo, Hólm é um orgulho nacional. Aparentado de Álfgrímur - ele é filho de uma irmã de sua avó -, fora empregado do comerciante Gudmúnssen na adolescência e recebeu deste uma bolsa para estudar canto na Dinamarca, de onde partiu para tornar-se mundialmente famoso. É bem verdade que esta fama é esquiva e dela chegam apenas ecos à pequena Islândia, fazendo com o leitor se pergunte muitas vezes até que ponto ela é real ou inventada pelos islandeses como forma de demarcar seu lugar na história da cultura ocidental. Assim é que chegam notícias fantásticas de concertos dados por ele em presença do papa, dos sultões árabes, dos príncipes europeus e dos magnatas americanos, notícias que são recebidas por seus conterrâneos como a afirmação de que eles existem para além dos peixes que exportam para o mundo inteiro. Daí vem o sentido do título do romance: Gardar Hólm é a prova de que os peixes islandeses também são capazes de cantar. 

De acordo com o relado de Álfgrímur, o famoso cantor regressa à Islândia por três vezes em sua vida. E em todas todas elas, a relação conturbada de Hólm com a fama que adquiriu em seu país natal é marcada por um sentimento esquivo, praticamente de fuga. Recusando praticamente todas as honrarias que lhe são oferecidas pelos poderosos, prefere dormir no estábulo da casa de sua mãe ou numa banco do adro da Catedral de Reikjavík a hospedar-se no luxuoso Hotel d'Islande. Não comparece a jantares que lhe são oferecidos e falta sempre aos locais em que é convidado a cantar. O fato é que ninguém na Islândia ainda ouviu sua voz, emissora da chamada "nota pura" que, na visão do Pastor Jóhann e seu primeiro mentor (como o será também de Álfgrímur), é a marca distintiva dos homens especiais. O curioso é que seu jovem parente assumirá aos poucos seu papel: descobre que também é capaz de cantar ao ser convocado pelo pastor para entoar uma canção no enterro de um indigente. Álfgrímur então começa a ter aulas de música e, tal como Gardar, deseja encontrar a nota pura. Talvez o ponto alto do livro sejam as longas e profundas conversas entre eles, na clave do colóquio entre um mestre e seu aprendiz. Porém, longe de representar uma relação de aprendizado natural entre aquele que detém um saber (o canto) e aquele que almeja aprendê-lo, essas conversas são marcadas pelo modo amargo com que cantor vê a fama, a projeção que seus compatriotas fazem a respeito de sua figura e, sobretudo, como a arte pura está acima de tudo isso. É reveladora e também cruel a última conversa entre eles, ocorrida no adro da igreja, aos pés de um túmulo ornado com uma estátua do arcanjo Gabriel - o romance é repleto de simbolismo -, na qual Gardar traça o "futuro" da vida de Álfgrímur, mostrando-lhe a semelhança entre a fama e o ridículo, quando a sucumbe ante a primeira. É esse o ideal, o da nota pura contra a celebração e o reconhecimento, enfim, que o jovem aspirante a cantor deve seguir. E que seguirá.

Quase ao final do livro, é oferecido (mais um) um jantar  em homenagem a Gardar, dessa vez em casa de seu mecenas Gudmúnssen, ao qual o cantor acaba por comparecer. É nele que, quase involuntariamente, canta algumas notas. E o que é ouvido provoca uma reação ambígua na audiência: o canto não se parece de modo algum com aquilo que é por eles idealizado como símbolo da beleza vocal. É algo estranho, quase constrangedor. Mas ainda assim o comerciante tece um pomposo discurso em honra do filho ilustre da terra. A incompreensão é disfarçada com uma louvação vazia. No dia seguinte, Gardar dá um concerto na catedral apenas para "seus convidados": não os poderosos de Reikjavík que esperam ouvi-lo cantar naquela mesma noite no Jubileu da Loja Gudmúnssen - ao qual, como imaginamos, ele não comparecerá -, mas para os seus, incluindo sua mãe que, espantosamente, nunca o ouvira cantar. Álfgrímur, que a esta altura tem um conhecimento significativo de música, irá acompanhá-lo ao harmônio. E o que se ouve no concerto da catedral o deixa extático:


"(...) Aquele cântico era tão autêntico que fazia com que todos os demais soassem artificiais e afectados, transformando, por conseguinte, os outros cantores em fraudes; e não apenas os outros cantores, mas também a mim próprio, juntamente com o restante de todos nós. E aquele som afectou-me tão profundamente que me levou a puxar a velha sucata que era o harmónio, com todas as minhas forças, coração e alma, de maneira a afogar o canto, ou pelo menos a desafiá-lo, sempre na esperança de conseguir sobreviver.

'O que é que ele cantou?', perguntaram-me as pessoas. Eu costumo responder 'Será que isso interessa para alguma coisa?' Não, não existia nenhum programa impresso. Quais foram as canções? Talvez tivessem sido aquelas canções que se inserem num estilo novo, as quais obterão reconhecimento mesmo se o mundo continuar a andar para trás em direcção à origem e a comunicação se tonar mais simples que no presente, de maneira que as pessoas passem a contentar-se a gritar a vogal 'a' para exprimir os seus sentimentos acerca de tudo, em vez de articularem verbos e nomes; também é bem possível que o que ali se cantou tenha sido o que o asno e o boi cantaram aos anjos na Véspera de Natal." (p. 288)

Gardar desaparece ao final do concerto - corre o boato de que deixou novamente a Islândia - e Álfgrímur, ainda aturdido, é convocado a substituí-lo na festa do Jubileu. Canta e ali sela-se seu destino de natural "substituto" do parente ilustre, o responsável por levar adiante a fama nacional, uma vez que o nome de Hólm se apagará, por razões que não interessa aqui narrar para não revelar o desfecho do livro. A história termina, como disse, com Álfgrímur partindo para a Dinamarca para estudar canto, repetindo a história de Gardar e que, doravante, passa a ser também a sua. 

Não podemos deixar de encontrar um paralelo entre a personagem Gardar Hólm e a figura de Halldór Laxness. Também ele, alçado ao posto de islandês mais ilustre do mundo após o Nobel de 1955, sentiu o peso de carregar um país inteiro com sua arte que, ao fim e ao cabo, não refletia exatamente as tradições locais em estado puro, mas já filtradas pelas lentes da modernidade narrativa. Penso que Os peixes também sabem cantar seja um acerto de contas do escritor com seu povo. Formado por aquela cultura, tendo ouvido as histórias ancestrais e lido a Edda, sua sensibilidade artística construiu algo para além delas, provando ser também ele um peixe capaz de cantar e não apenas portador de um valor de mercado e responsável pela riqueza monetária nacional. Não se trata de uma negação da Islândia, de sua história e de sua inserção no mundo contemporâneo, mas a afirmação de que é a partir dela que Laxness construiu seu estilo e um "valor" narrativo próprios, responsáveis não apenas pela consagração trazida pelo Prêmio Nobel de Literatura, mas também pela revitalização de toda uma cultura, tal como justificado pelos suecos para concessão do prêmio. E comprovado por seus gratos leitores.


Jorge Verly


Referência da leitura: LAXNESS, Halldór. Os peixes também sabem cantar. Trad. de Mário Cruz e João Cruz. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2010.

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