quinta-feira, 24 de setembro de 2020

História policial, de Imre Kertész



Olá,


Em 2002, foi a vez da Hungria ser agraciada pela primeira (e até agora única) vez com o Prêmio Nobel de Literatura. O escolhido foi o romancista Imre Kertész (1929-2016), laureado em razão de sua "escrita que apoia a frágil experiência do indivíduo contra a bárbara arbitrariedade da história". Nascido em Budapeste em uma família de origem judaica, Kertész foi sobrevivente do Holocausto, estando preso nos campos de concentração de Auschwitz, Büchenwald e Zeitz durante os anos de 1942-45. Depois de sua libertação, retornou ao país natal, onde exerceu a profissão de jornalista. Foi quando teve que enfrentar um novo regime totalitário, imposto pelas autoridades húngaras em aliança com o stalinismo soviético. Durante a maior parte de sua vida, Kertész foi obrigado a escrever em segredo ou teve muitas de suas obras previamente censuradas pelo regime comunista. Foi nos anos 1970 que sua produção começou a aparecer de modo mais incisivo, mas ainda dentro dos restritos circuitos do bloco socialista, ganhando notoriedade apenas com a queda do regime, até a sua justa escolha para o Prêmio Nobel. Cronista da experiência da Shoah, Kertész escreveu a respeito da sobrevivência daqueles que escaparam da aniquilação imposta pelo regime nazista na Europa, mas que, de certo modo, continuaram a experimentar o vazio da condição de sobrevivente. O exemplo máximo é o romance autobiográfico Sem destino, um relato terrível do Holocausto narrado por um menino de quinze anos que, despido de qualquer sentimentalismo ou revolta, vai contado ao leitor, com um detalhismo exasperado, tudo o que viveu nos três campos de concentração pelos quais passou, sem julgamentos ou autocomiseração, mas apenas com a necessidade de testemunhar aquela experiência.

No Brasil, assim como no restante do mundo, o nome do autor se tornou bastante conhecido pela tradução do pequeno romance História policial, publicado na Hungria em 1977 e tendo como cenário um país inominado da América Latina, governado por um regime golpista e sanguinário - e que tanto pode referir-se ao Brasil, à Argentina, ao Uruguai ou ao Chile, por exemplo. E é este pequeno livro que discutirei nesta postagem.

Escrito em primeira pessoa na forma de um relato do ex-policial Antonio Martens, o livro começa com seu narrador à espera do julgamento já no momento da redemocratização do inominado país ao qual antes servira em seus tempos de ditadura militar. Embora esta informação não seja explícita, esses elementos são percebidos por indícios presentes na narrativa, como o aparato policial preparado para o serviço da Pátria, a presença de subversivos "cabeludos" e o fato de o país ser governado por uma figura referida apenas como O Coronel. Na fictícia apresentação do livro, escrita por um defensor público, encontramos a justificativa de que o relato é potente, a despeito da pouca escolaridade de seu autor. Essa ideia de potência da escrita - e da própria história contada - está relacionada, segundo suas palavras, aos componentes de destino e confissão que atravessam a narrativa. E é o próprio Martens, agora já de posse da voz narrativa que irá conduzir o relato, quem nos diz que irá contar "uma história simples e revoltante" (p. 17). Após dizer que entrara para o Departamento - o órgão de repressão oficial do governo recém-formado após o golpe - menos por convicções ideológicas do que por vislumbrar um meio de melhorar seu ordenado, Martens revela-se um sujeito a-histórico, à margem dos eventos de que participou e dos sentidos por ele produzidos:


"Era uma pergunta difícil de responder. De fato: por quê? Eu não sabia. Nem agora sei. Não mesmo. Para ser sincero, nem me interessava saber. Nunca parei para pensar nos motivos; bastava-me pensar que de um lado existiam os criminosos e do outro, seus perseguidores. Quanto a mim, faço parte dos últimos." (p. 27)


Entretanto, ao longo do relato, embora conserve o tom burocrático de quem descreve a realização de um trabalho como outro qualquer, Martens se verá impelido a um confronto com a falta de sentido dos acontecimentos e, quando da entrada da figura de Enrique Salinas na narrativa, a uma tentativa de compreensão, embora sua conclusão não indique que a tenha atingido. É importante estabelecer um paralelo entre a situação opressiva do país fictício em que a história se passa e a própria condição social da Hungria em que Kertész escreveu sua história. Impossibilitado, como disse, de escrever sobre a perseguição exercida pelos regimes de força sobre os indivíduos - e pela ótica de sua própria experiência de sobrevivente da Shoah -, a transposição da história para a América Latina das ditaduras militares das décadas de 1960 e 1970 constitui-se numa estratégia para escapar da censura e do controle estatal, como o próprio Kertész nos conta no prefácio ao livro. Mas como a História é incontornável, Auschwitz também está situada no centro daquele fictício e igualmente bárbaro lugar: em dado momento do relato, Martens conta que Rodríguez, seu colega policial e perito em sadismo - é ele quem opera com mórbido prazer o "Balanço de Boeger", um instrumento de tortura equivalente ao "pau-de-arara" utilizado pela ditadura civil-militar brasileira - está lendo um livro em inglês em que a palavra Auschwitz aparece e se destaca. Ora, inserir textualmente esta palavra carregada de significação histórica em seu livro, muito mais que apenar tapear a censura estatal húngara, demonstra o quão universal e, reitero, incontornável é a barbárie e como ela, seguindo o pensamento de Walter Benjamin, é sempre a mesma catástrofe.



E no centro da catástrofe está a família Salinas. Federico e María, um rico casal de comerciantes, e seu filho Enrique. Enquanto o desejo dos pais é é proteger o filho das engrenagens da opressão em que ele se verá fatalmente enredado por seu idealismo resultante da forma inconformista com que vê o terrível destino do país, Enrique só almeja agir. Estudante, é justamente o fechamento da universidade pelo regime após o golpe - referido por Martens como Dia da Vitória, numa outra referência ao contexto militar - que detona nele o sentimento antes inominado de vazio diante da vida já planejada que o espera: o casamento, a vida confortável e o controle das empresas da família. É contra esse fado, mais que por conta de uma formulação ideológica clara, que o jovem se insurge. E que começa a querer alterar. Aliás, muito do que descobrimos sobre Enrique e seus sentimentos vem dos diários do jovem que, ao lado do relato cru de Martens, compõem aquilo que vem a ser o romance de Kértesz. De modo escuso, o ex-policial consegue se apoderar dos relatos do jovem. E são eles que o ajudam - e ao leitor - a compor a imagem da rebeldia de Enrique:


"Entrei num café. Desabei no terraço. O ódio, o calor e a inércia me faziam arquejar. Terraço lotado, museu de cera de pequenos-burgueses. Tagarelavam sobre negócios, moda e diversão. Uma mulher dava risadinhas estridentes, sem parar. O perfume das mulheres fundia-se com o cheiro dos corpos balofos engordurados e pegajosos. À minha direita, um sujeito de rosto moreno, cabelos curtos pretos e oleosos penteados para trás à moda americana, rosto carnuda junto ao ouvido, como se estivesse com caxumba, óculos de armação preta. A boca se mexia sem parar e fazia pequenos estalidos, como se ele falasse sozinho ou chupasse uma bala. Mas depois percebi que tentava chegar a um acordo com a dentadura um tanto grande, encontrar um modos vivendi. Mais tarde, juntaram-se a eles um sujeito careca com esposa e um rapaz sem cor, sem dúvida filho do careca. Fiquei a ouvi-los descaradamente (...). Concordaram que, conforme a situação econômica se consolidava, a vida ia melhorando. Constataram com prazer que o comércio estava se recuperando. Na opinião do careca, as condições estavam melhorando. O ambiente tornou-se confiante. Pediram mais refrigerantes. Tive vontade de atirar uma bomba no meio deles." (p. 39-41)


Este trecho do diário de Enrique transcrito por Martens em seu relato denota a revolta com a apatia dos demais em face da realidade opressora do país, cuja única preocupação é a recuperação econômica e a manutenção de suas vidas tranquilas. É ainda uma revolta em estágio embrionário e que será, como se percebe à medida em que o livro avança, canalizada contra o regime em si. O que, por sua vez, não chega a se realizar, pois a Enrique é interditado o ingresso nos grupos de resistência justamente por conta da condição econômica de sua família e pelo fato, como ele mesmo assinala, de seu sobrenome ser Salinas. E nesse entrevero da existência sufocada do jovem - ainda amparada na reiteração que Martens faz de seus diários -, entra em cena a figura de Estella Jill, uma moça por quem Enrique se apaixona de modo impetuoso - como forma de canalização de seu ódio - e com quem faz planos de um futuro que, ao contrário do que seus sentimentos vinham desenhando até então, encaixam-se na ideia de uma vida tranquila como a daqueles que o jovem execra. Mas logo o caso é desfeito, em parte por conta da aparente "alienação" de Jill, em parte pela ideia, cada vez mais clara para Enrique, de que "ser feliz e mais nada... não passa de canalhice" (p. 60)

Daí em diante, a obstinação do jovem passa a ser a adesão, custe o que custar, aos movimentos revolucionários. É então que seu pai intervém e, num longa e exasperada conversa transcrita por Martens mais uma vez dos diários, acena ao filho com a possibilidade de resistir ao regime com sua ajuda. Desse trecho em diante, o ex-tira deixa de citar os diários e passa a descrever, de modo ainda mais cru e exasperado que antes, os eventos repressivos que tomam de roldão a vida da família Salinas. Sucedem-se prisões, torturas, culpa e condenação. E tal como Eichmann descreve de modo burocrático a maneira irrepreensível com que desempenhara as funções a ele designadas pelos nazistas, Martens descreve os métodos utilizados nos interrogatórios - é reticente quando trata das torturas, das quais não chega a participar diretamente - e a lógica que orientam todo o processo, uma lógica que deixa de pertencer ao escopo da lei e que passa a seguir a própria dinâmica do poder num regime de força e de exceção:


"(...) Entendi que nessa hora abrimos mão de tudo o que ainda nos ligava às leis dos homens, entendi que dali para a frente não poderíamos confiar em mais ninguém a não ser em nós mesmos. Bem... e no destino, nessa engrenagem insaciável, ávida e eternamente faminta. Ainda éramos nós que a fazíamos girar? Ou era ela que girava a nós? Agora já tanto faz. Achamos - como digo - que sabemos tirar proveito dos acontecimentos, mas depois queremos apenas saber para que diabo de lugar eles estão nos arrastando a todo o galope." (p. 104)


Sua leitura da atuação do grupo repressivo do qual faz parte e que está encarregado de tratar do caso Salinas, ainda que perplexa, é a de alguém que desempenha uma tarefa resultante do próprio estado de coisas, um trabalho que independe de sentimentos como humanidade, compaixão, redenção. O relato, feito da prisão e às vésperas de um veredito do qual já se sabe culpado, não é a narrativa de alguém que busca justificar seus atos ou comover seus julgadores. É a escrita dura de alguém que, em dado momento da roda dos acontecimentos, foi levado por ela, sem qualquer possibilidade de fuga.

História policial é um exemplo daquilo que a Academia Sueca destacou para justificar a escolha de Imre Kértesz para o Prêmio Nobel: é o relato de um sujeito esmagado pela arbitrariedade da história. Dos sujeitos, melhor dizendo, pois tanto Martens, como Salinas pai e Salinas filho são exemplos da impotência humana face ao horror. Nesse jogo bárbaro entre poder e resistência a ele, pouco importa quem está do lado do poder ou quem está contra ele. Resta a única possibilidade de seguir, esmagado ou esmagando. Nisto reside a grandeza da escrita de Kértesz. Enquanto sobrevivente da Shoah, não lhe coube discutir as razões da sobrevivência, o porquê de ter sido poupado. Seu éthos se constituiu na tarefa de narrar a catástrofe de modo não-sentimental, nu de artifícios e duro como o próprio real. Um dever para com os seus semelhantes, mulheres e homens de tempos sombrios. Podemos concluir que Kertész foi uma espécie de Atlas de nosso tempo, sustentando nos ombros - na escrita - o mundo em estado de danificação. 


Jorge Verly


Referência da leitura: KERTÉSZ, Imre. História policial. Trad. de Gabor Aranyi. São Paulo: Tordsilhas, 2014.


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