domingo, 18 de agosto de 2019

À espera dos bárbaros, de J. M. Coetzee




Olá,


Pertencendo ao pequeno grupo dos laureados com o Prêmio Nobel de Literatura ainda vivos, o australiano J. M. Coetzee o recebeu no ano de 2003 em razão de sua escrita "que, com inúmeros disfarces, retrata o envolvimento surpreendente do forasteiro". E é justamente o epíteto de forasteiro que define, em linhas gerais, a vida e a literatura deste autor nascido na África do Sul em 1940 e que, desde meados da década de 1960, viveu na Inglaterra, Estados Unidos (onde escreveu uma tese de doutorado sobre Beckett, outro Prêmio Nobel, e lecionou na Universidade de Nova York) e, depois de três décadas de volta à Africa (dando aulas de língua e literatura inglesas na Universidade da Cidade do Cabo), emigrou para a Austrália, onde vive atualmente, atuando como professor da Universidade de Adelaide, escrevendo e publicando regularmente ensaios literários e romances de grande impacto, sempre tendo como mote a situação dos desgarrados, dos outsiders, dos sujeitos inadaptados e pertencentes ao lugar-algum.

É a temática do degredo, por exemplo, que mobiliza seu romance mais conhecido, Desonra, publicado em 1999 e já adaptado para o cinema, no qual narra a história de um professor universitário branco que, caído em desgraça por conta do envolvimento sexual com uma aluna, perde o posto e a honra, indo refugiar-se na propriedade rural de sua filha, onde mergulha vertiginosamente nas contradições sociais de uma África do Sul mal saída do apartheid. Para esta postagem, no entanto, elegi um outro romance de Coetzee, À espera dos bárbaros, não tão conhecido no Brasil, mas que prenuncia já desde a data de sua publicação (1980) a escrita reflexiva, elegante e potente desde autor, habilitando-o para o Nobel que lhe seria concedido vinte e três anos depois. 

O romance se passa em uma vila fronteiriça de um império indeterminado, nomeado apenas como "o Império" e é narrado em primeira pessoa por uma personagem também sem nome, referida por si mesma e pelos outros como "o Magistrado", em razão das funções públicas que exerce na localidade e que consistem basicamente em aplicar a lei, julgar as dissidências, aplicar condenações, organizar e contabilizar a cobrança de tributos e manter a ordem local em consonância com as diretrizes governamentais que vem de longe, muito longe, mais precisamente da capital do Império, também inominada e que o narrador não visita há já não sabe quanto tempo. Sobre a vila (e sobre todo o Império) paira a ameça da invasão dos povos bárbaros, que vivem em suas cercanias. No entanto, há muitos e muitos anos nada acontece e o magistrado parece ter-se habituado à presença deles que, nos períodos de verão, aparecem e postam-se nas muralhas fortificadas, onde trocam produtos e mantém relações mais ou menos pacíficas com os moradores, numa mútua e habituada convivência. É então que essa aparente capa de paz é rompida com a chegada de soldados da temida Terceira Divisão do Império, especializada em ataques aos povos bárbaros e comandada pelo Coronel Joll, com quem o narrador imediatamente antipatiza. A passagem dele e de seus homens tem consequências terríveis na vida de todos, pois sua presença desregula o equilíbrio da balança que até então pautava as relações entre os aldeões e os bárbaros.






Joll é sanguinário e suas incursões ao deserto resultam na captura de bárbaros, homens, velhos, mulheres e crianças que são torturados (alguns até à morte) na vã esperança de confessar e delatar os supostos planos de invasão que seu povo intenta contra o Império. E tão ruidosamente como chegou, a Terceira Divisão parte, deixando sequelas nos bárbaros e na aldeia. Os primeiros fogem de volta para o deserto, mas deixam para trás uma moça que, terrivelmente torturada, teve os dois pés quebrados, além de ter o pai assassinado nas sessões de interrogatório. Esta moça, cujo nome nunca saberemos, é acolhida pelo magistrado, que com ela inicia uma conturbada relação de culpa e expiação. Inicialmente assexuados, os contados entre eles consistem em dormirem juntos e em longas sessões de unção corporal e massagens que o velho funcionário aplica na moça bárbara:

"Está deitada de costas, com as mãos placidamente pousadas sobre os seios. Fico a seu lado, falando carinhosamente. Este é o momento em que sempre vem a ruptura. Este é o momento em que minha mão, acariciando-lhe o ventre, parece mais desajeitada que uma lagosta. O impulso erótico, se é que posso chamá-lo assim, se anula; vejo-me agarrado a essa mulher, incapaz e me lembrar do que me despertou o desejo nela, com raiva de mim mesmo por querê-la e não querê-la. (...) Não a penetrei. Desde o começo, meu desejo não tomou essa direção. Alojar meu membro de velho nesse ninho ardente como o sangue faz-me pensar em ácido no leite, em cinza no mel, em pedra no pão." (p. 46-47)

Chega o inverno e o magistrado demonstra em sua narrativa um olhar ainda mais condescendente para com os bárbaros, temendo inclusive por eles em seu abandono em meio ao frio do deserto. É claro que este olhar é mediado pelo estreitamente de suas relações com a moça e com algum tipo de culpa que, em face do que foi violentamente praticado pelo Coronel Joll, ele carrega em relação àquele povo. É então que resolve empreender uma difícil viagem pelas terras bárbaras para desculpar-se com seus chefes e também devolver a moça a seu povo, desejo demonstrado por ela e percebido no esfriamento de sua relação. A separação entre o magistrado e a moça, quando enfim eles atingem o território bárbaro e travam contato com um grupo de doze deles, é melancólica, um prenúncio das coisas terríveis que estão por vir.

No retorno dele e de sua pequena comitiva de três soldados-guias, a aldeia encontra-se em um profundo estado de agitação. Não só lá está de volta a Terceira Divisão, agora mais numerosa, como também um novo personagem: Mandel, sub-oficial de Joll e mais sanguinário que ele. O magistrado é preso, acusado de alta traição por ter ido juntar-se aos bárbaros. Em sua cela, ele sente um misto de medo e de liberdade: medo pelo destino dos bárbaros, a quem aprendeu a olhar não como inimigos, mas sim como diferença; e liberdade por ter sido enfim despojado de suas penosas obrigações e da hipócrita fidelidade para com os ideais do Império:

"Tenho consciência da causa da minha satisfação: minha aliança com os guardiães do Império se rompeu, sou um homem livre! Quem não sorriria? Mas que alegria perigosa! Não devia ser tão fácil obter a redenção. E será que há algum princípio por trás da minha oposição? Não terei simplesmente reagido a uma provocação, ao ver um dos novos bárbaros usurpar-me a escrivaninha e vasculhar os meus papéis? Que estarei jogando fora em troca dessa liberdade, que valor tem ela para mim? Terei realmente aproveitado a ilimitada liberdade deste último ano, durante o qual, mais que nunca, minha vida me pertenceu, para renunciar a ela como estou fazendo?" (p. 101-102)

E é em meio a estas invectivas que o magistrado lança a si mesmo que retorna o Coronel Joll trazendo doze bárbaros atados pelas bochechas por um fio de suplício, iniciando um grotesco espetáculo de tortura e execução pública. O magistrado, tendo obtido secretamente a chave da cela em uma escapadela à cozinha, sai da prisão e junta-se à multidão na praça. Vencendo a auto-vigilância, ele irrompe ante os condenados e passa defendê-los e a atacar o Joll, Mandel e a Terceira Divisão como sendo os verdadeiros bárbaros. Surrado, é novamente encarcerado e passa a sofrer múltiplas, vexatórias e dolorosas torturas. No entanto, essas barbaridades são descritas por ele, sim, com horror, mas também com estoicismo, uma vez que está destinado a lutar ao lado do que considera o Bem e a combater os oficiais do Império, a denunciar seus crimes e sua brutalidade. 

Já perto do final do romance, o magistrado é solto a passa a viver como mendigo. Aos poucos é aceito novamente pela população (que pela influência de Joll e Mandel havia sido visto como um vil traidor). Nesse contexto, também observamos por sua narrativa uma exacerbação do comportamento "bárbaro" dos membros da Terceira Divisão, a frouxidão da vigilância das fronteiras, os saques constantes e os insultos aos moradores da aldeia que decidiram fugir em busca de segurança às cidades maiores do Império. O clima de medo se instala e, finalmente, os bárbaros se prenunciam no horizonte: dois soldados, um morto e outro ferido, retornam ao povoado atados a seus cavalos, um claro aviso de que a invasão é iminente. Todos se preparam para o pior. O exército parte aterrorizado, primeiro Mandel, depois Joll, que é quase apedrejado pelos habitantes da cidade em sua fuga covarde. 

Num anticlímax, o povoado, embora ainda atemorizado por uma possível invasão bárbara, tenta voltar ao seu estado anterior de calma. Aos poucos, os lavradores começam novamente a plantar, o comércio renasce e o magistrado, ainda que extraoficialmente, retoma seu posto e sua antiga influência:

"Tomei a liderança na execução de todas as medidas destinadas a nossa preservação. Ninguém me desafiou. Minha barba está aparada, visto roupas limpas e, de fato, reassumi a administração interrompida há um ano com a chegada da Guarda Civil. 

Devíamos estar cortando e armazenando lenha; não se pode encontrar, todavia, quem se aventure nas florestas queimadas ao longo do rio, onde os pescadores juram ter visto sinais de recentes acampamentos bárbaros." (p. 180)

Assim como começou, o livro termina com este horizonte de expectativas, i. e., de uma invasão que, ao fim e ao cabo, não se realiza nunca. E este não realizar-se confere o caráter de alegoria ao romance de Coetzee: ser sua possibilidade uma frágil justificativa para o exercício da intolerância e do exercício da mais bruta violência, representada pelas torturas perpetradas contra os diferentes (os bárbaros) ou contra aqueles que se mostram relativistas em relação a ela (o magistrado). Não podemos deixar de apontar também que o romance, optando pela indefinição de tempos, lugares e personagens, traz ecos de todas as barbáries cometidas contra grupos considerados indesejáveis socialmente, como no caso de apartheid sul-africano à época em que o o autor escreveu e publicou sua obra. Como na exposição de motivos da Academia Sueca para a concessão do Nobel a J. M. Coetzee, é o forasteiro que pode voz e vez, não para tomar lugares ou impor sua visão e sua força, mas unicamente pelo desejo de ser avaliado com justiça e, quem sabe, compreendido em sua própria dinâmica de vida. Em sua humanidade. Algo que a literatura deste notável escritor certamente contribuiu para promover.

Jorge Verly

Referência da leitura: COETZEE, J. M. À espera dos bárbaros. Trad. de Luiz Araújo. São Paulo: Best Seller,  1983.


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