O Prêmio Nobel de Literatura de 1933 foi concedido a um escritor apátrida. Ao menos, ele assim foi predicado pela Academia Sueca quando seu nome foi anunciado como vencedor da honraria, embora pessoalmente se considerasse um russo exilado na França: falo de Ivan Bunin (1870-1953), para quem o Nobel foi outorgado em razão da "habilidade artística precisa com que deu continuidade às tradições clássicas russas na prosa". No entanto, mesmo sendo considerador por Tchekhov "um igual" e - desde a publicação de A aldeia, uma de suas mais conhecidas obras - tenha figurado entre os grandes nomes da moderna prosa daquele país, as autoridades soviéticas praticamente extirparam as narrativas de Bunin da vida literária russa após a Revolução de 1917, razão pelo qual seu nome era praticamente ignorado na União Soviética quando o prêmio lhe foi concedido. A antipatia do regime comunista em relação aos romances e contos do autor tinha razão menos nas questões temáticas e mais no fato de o escritor ter emigrado para a França logo após a eclosão da revolução de outubro e da guerra civil que veio em seguida para, desde então, tornar-se um crítico do regime.
Querelas à parte, passemos a um exame da obra de Ivan Bunin. Escolhi como leitura a novela O processo do Tenente Ieláguin, publicada na França em 1931. A despeito da data de publicação e de seu contexto, a narrativa está recuada para a segunda metade do século XIX, ainda no tempo do Império. Entretanto, não há na narrativa nenhuma referência aos elementos políticos e às particularidades do czarismo que, algumas décadas depois, resultariam na tomada do poder pelos bolcheviques. Aliás, podemos dizer a "história" de O processo do Tenente Ieláguin é a-política, a-histórica, a-militar e, por que não dizer, amoral: tudo o que nela ocorre (inclusive a política, a história, as questões militares e a própria moral) é dragado pelo trágico destino do tenente Aleksandr Ieláguin e sua amante, a atriz Mária Sosnóvskaia.
A estrutura do texto é fragmentária. Seus 14 pequenos capítulos apresentam uma multiplicidade de narradores, tempos e vozes narrativas. A história começa como se contada por um periódico local que, utilizando um adjetivo de sentido geral e de fácil compreensão e apelo ("horrível"), quisesse universalizar e dar cores dramáticas ao crime de que será objeto a narrativa:
"É um caso horrível - estranho, enigmático, insolúvel. Se, por um lado, é muito simples, por outros é bem complexo, assemelhando-se a um romance em folhetim (aliás, era assim que todos se referiam a ele em nossa cidade) e, ao mesmo tempo, poderia servir de assunto para uma das obras de arte das mais profundas" (p. 155)
O crime complexo, simples, banal, profundo, desinteressante, mesmerizante a que se refere o narrador impessoal que começa a contar a história é o assassinato de Sosnovskáia pelo Tenente Ieláguin. Certa manhã ele irrompe no apartamento de seu comandante de regimento, o capitão Likhariev, e confessa ter matado a amante. Likhariev, que àquela hora da manhã se encontra ainda sonolento e meio bêbado, duvida de Ieláguin, pensando tratar-se de uma brincadeira do militar. No entanto, ante as insistências do infeliz, o capitão ordena a seus subordinados que procurem o chefe de polícia e, com ele, partam ao local indicado por Ieláguin, onde descobrem o corpo da atriz. Daí em diante, o leitor é levado pelas muitas vozes que compõem a novela a vislumbrar os eventos da tumultuada relação que resultou na morte da bela mulher. Digo vislumbrar porque nada é certo ou claro no texto. Na verdade, a estratégia fragmentária escolhida por Bunin para contar a vida do casal concorre justamente para reforçar a dubiedade que é característica da obra. Aliás, tanto Sosnóvskaia quanto Ieláguin são retratados como personagens dúplices e ambíguas. Enquanto ele é visto por suas cartas (que também fazem parte da narrativa) e pelos relatos de várias testemunhas (sobretudo dentro do processo que se segue ao assassinato da atriz) como um sujeito ao mesmo tempo honrado, leal e fiel aos preceitos da carreira militar que escolheu e obcecado pela paixão que atravessou sua trajetória, Sosnóvskaia é apontada como uma mulher desapagada de seus amores (chegando a ser cruel ao abandonar vários deles sem motivo) e devotada a sua arte, bem como uma pessoa fascinada pelo espectro da morte, como lemos em seu diário:
"Hei de escolher para mim um bela morte. Alugarei um quartinho e mandarei forrá-lo de crepe. Deverá haver música tocando do outro lado da parede, eu me deitarei num modesto vestido branco, rodar-me-ei de flores sem conta e o seu aroma me matará. Oh, como será magnífico!" (p. 183).
À medida em que o leitor vai avançando na tentativa de recompor, pelos fragmentos que Bunin disponibiliza (cartas, processos, diários, reportagens), o que aconteceu, também se aventura na tentativa de compreensão da psicologia que está por detrás do ato radical perpetrado por Ieláguin contra Sosnoskáia. O desfecho da novela traz a confissão final do tenente sobre o que de fato ocorreu no quarto da casa em que ele e a atriz se encontraram na noite fatídica. Assim como está posto deste o início, não restam dúvidas de que Ieláguin matou a amante. No entanto, as razões expostas por ele, que se insinuam aqui e ali ao longo do texto, ganham potência quando enunciadas por sua própria voz diante do público que o ouve assombrado no salão do júri. Mais que potência, ganham verdade.
Uma verdade, porém, que não ganhará o crédito total do leitor, pois ainda que julguemos entender porque ele atirou no peito de sua amante, ficamos sem saber (aliás, Bunin não inclui a sentença do juiz ao final da narrativa) se o motivo, embora justificável, seja de fato justo. Explico-me: assim como o Raskolnikov de Crime e Castigo julgava saber exatamente porque havia matado a sua senhoria, Ieláguin também foi capaz de enunciar claramente as intenções por detrás do tiro disparado contra Sosnoskáia. No entanto, ambos seguiram (como nós seguiremos) torturados por essa pretensa clareza de razões que, em confronto com a racionalidade, expõem na verdade o desvario dos sentimentos não-racionalizados que, ao fim e ao cabo, estão por detrás dos atos de ambos.
Nesse sentido, é inegável o parentesco entre a novela de Ivan Bunin e a narrativa clássica russa, tal como lemos na exposição de motivos da Academia Sueca para o Nobel dado ao autor. Assim, a duplicidade entre a arte e a atração pela morte apresentadas pela personalidade da Sosnóvskaia, bem como a tortura pela qual Ieláguin se vê obrigado a passar, entre a lealdade a seus valores e a loucura de sua arrebatadora paixão, fazem desta obra uma vizinha bastante próxima das narrativas de Tchekhov, de Turgueniev ou mesmo de Dostoiévski, autores com quem Ivan Bunin, sem superar artística e tematicamente, pode claramente figurar em certo grau de igualdade. Sem ser o maior autor russo da transição do século XIX para o XX, ele representou dignamente a literatura daquele país quando foi escolhido como seu primeiro autor a receber um Prêmio Nobel.
Jorge Verly
Referência da leitura: BUNIN, Ivan. O Processo do Tenente Ieláguin. In: Amor de Mitia e outras obras. Trad. de Boris Schnaiderman. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973, p. 153-210.
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