domingo, 14 de julho de 2019

Elogios, de Saint-John Perse


Olá, 


O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1960 foi, assim como o de 1959, um poeta. Um caso raro de escritores laureados em sequência e que se expressaram exclusivamente no gênero poético. Em 1959 o ganhador foi o italiano Salvatore Quasimodo e, em 1960, o laureado foi Saint-John Perse (1887-1975), poeta francês nascido em Guadalupe, um território da França nas Antilhas. Cidadão do mundo em virtude de seu cargo de diplomata (do qual foi destituído em 1940 pelo governo colaboracionista do Marechal Petáin), Perse residida em Washington quando o prêmio foi anunciado, exercendo a função de conselheiro da Biblioteca do Congresso Americano. Aliás, o Nobel daquele ano foi acolhido com surpresa por parte da crítica pelo mundo afora, uma vez que os poemas do autor francês eram considerados muito herméticos e distantes do ideal de universalidade defendidos por Alfred Nobel em seu testamento, no qual instituiu as regras para, entre outros, o prêmio de literatura. Por seu turno, a Academia Sueca mostrou estar um passo adiante em relação à opinião de que a obra de Perse era deveras sofisticada e enigmática para figurar entre aquelas dignas de receber o Nobel, percebendo nela, por detrás de sua aparente pecha de "difícil", um dado de realidade condizente com os tempos em vivia seu autor. Basta lermos a nota em que a instituição explicou os motivos para a concessão do prêmio daquele ano: "O Prêmio Nobel de Literatura de 1960 foi atribuído ao poeta Saint-John Perse pelos voos e imagens evocativas de sua poesia, que de uma forma visionária refletem as condições de nosso tempo."

A estranheza do público e da crítica em face dos poemas de Saint-John Perse tem sua origem, penso, na questão da forma. Sem serem "poemas" à primeira vista, seus textos se assemelham mais àquilo que chamamos de prosa poética e que foi praticado ao longo de século XIX por nomes como o russo Joseph Brodsky (Prêmio de 1987) em Marca d´água e, bem antes, por Baudelaire e seu célebre Pequenos poemas em prosa. Nenhum deles ousou, no entanto, como Saint-John Perse. Sua estética é inaudita e mesmo extravagante, com versos que ultrapassam duas, três, quatro ou mesmo dezenove linhas sem quebra e cujo enjambement só vai ser conhecido ao final destas, parecendo ao leitor que ele compõe parágrafos poéticos, com recuos de texto que, na perspectiva da época, contrariavam o bom gosto, mesmo tendo a poesia moderna alcançado uma recepção mais ou menos positiva no meio literário europeu da época. Contribui para essa "estranheza" o fato de que os poetas laureados com o Nobel antes dele tinham uma dicção muito mais afinada com a tradição formal: enquanto T. S. Eliot (1948), Salvatore Quasimodo (1959) e W. B. Yeats (1923) praticavam uma poesia visionariamente moderna (embora ainda mais ou menos apegados à tradição), Gabriela Mistral (1945), Erik Karlfeldt (1931), Rabindranath Tagore (1913), Giosué Carducci (1906), Fredéric Mistral (1904) e Sully Prudhomme (1901) foram todos agraciados justamente por sua "poesia lírica". Perse é, portanto, o primeiro poeta detentor do Nobel a romper com a construção tradicional da forma, imbuído de um espírito visionário tanto na forma como nos motivos e na recomposição de imagens.

Como leitura da obra de Perse escolhi o volume Elogios, de 1910 e ainda assinado como Alexis Léger, seu nome de batismo. Dividido em três partes ("Escrito na porta", "Para celebrar uma infância" e "Elogios"), esta série de poemas recupera a infância e a adolescência de Perse nas Antilhas Francesas. Os elementos naturais do lugar ("Palmeiras! e a doçura / da velhice de suas raízes" [p. 53]) estão entrelaçados à questão fundamental da infância do poeta, da infância de qualquer ser humano: "Senão a infância, que havia que não há mais?", pergunta-verso que se repete ao longo de toda a série de poemas e que nos remete tanto à clássica temática da perda da inocência como a sua tentativa (sempre por meio da recomposição e, mais, da evocação de imagens) de reconquistá-la ao longo da vida. Tomo como exemplo o poema II da seção "Para celebrar uma infância", que reproduzo integralmente abaixo:


     E as criadas de minha mãe, altas moças luzentes... E nossas  pálpebras fabulosas... Ó
     claridades! ó favores!
     Chamando cada casa, recitei que ela era grande, chamando
cada animal, que ele era belo e bom.
     Ó minhas maiores 
     flores vorazes, entre a folha rubra, a devorarem meus mais 
belos
     insetos verdes! Os buquês no jardim cheiravam a cemitério de
família. E uma irmãzinha morrera: eu tivera (rescende) seu caixão
de acaju entre os espelhos de três quartos. E não se devia matar o
beija-flor a pedrada... Mas a terra se curvara em nossos folguedos
como faz a criada,
     aquela que tem direito a uma cadeira se a gente não sai de
casa.
     ... Vegetais fervores, ó claridades, ó favores!...
E depois essas moscas, essa espécie de moscas, lá para o último
lance do jardim, que eram como se a luz cantara!
E as criadas de minha mãe, altas moças luzentes... E nossas
     ... Lembro-me do sal, lembro-me do sal que a ama pálida
precisou limpar no canto de meus olhos.
     O feiticeiro negro sentenciava na copa: "O mundo é qual 
uma piroga, que, girando e girando, não sabe mais se o vento
queria rir ou chorar..."
     E logo meus olhos tratavam de pintar
     um mundo balançando entre as águas brilhantes, conheciam o
mastro liso dos fustes, a gávea sob as folhas, e as retrancas e as vergas,
os ovéns de cipó.
     onde longuíssimas, as flores
     se acabavam na algazarra de periquitos.
     (p. 55-56)

O que salta aos olhos é a capacidade artística de reproduzir, sob a lente poética afiada na escolha da linguagem (e, de certo modo, antecipadora do movimento surrealista, que iria eclodir na década seguinte), as imagens de uma infância marcada por experiências múltiplas: a vida abastada nas terras coloniais francesas ("as criadas de minha mãe"), a presença indelével e marcante da natureza ("flores vorazes, entre a folha rubra, a devorarem meus mais / belos / insetos verdes!"), as relações de classe entre os citoyens (os colonos) e os sujets français (os nativos) ("a criada / aquela que tem direito a uma cadeira se a gente não sai de / casa"), a morte ("cheiravam a cemitério de família. E uma irmãzinha morrera"), a presença do elemento místico das religiões nativas das Antilhas ("O feiticeiro negro sentenciava na copa") e a exuberância da natureza local ("as flores / se acabavam na algazarra dos periquitos"), tudo isso é filtrado pelo olhar o menino que (re)narra sua vida naquela parte do planeta utilizando os elementos mais sofisticados de que dispõe enquanto poeta experimentado do mundo europeu.



Nessa toada, os poemas de Elogios são permeados por uma visão quase alucinatória da experiência infantil, posto que Perse rebobina suas memórias, as memórias de um menino franco-antilhano pelo catecismo visionário do modernismo, indo um pouco além dele. Daí também a parcela de enigma que esses poemas carregam em si, representada pelo apego à presença da noite em muitos deles. Noite que é também um espaço para o confronto da infância com a inescapabilidade da vida adulta e da velhice, tal como no poema de número XV:


     Infância, meu amor, amei também bastante a noite: é hora de sair.
     Nossas amas entraram na corola das roupas... e colados às
persianas, sob nossas tranças geladas, vimos
     como lisas, como nuas, elas levantavam no alto do braço o
anel mole da saia.
     Nossas mães vão descer, perfumadas com a erva-de-Madame
-Lalie... São belos seus pescoços. Vai adiante e proclama - Minha
mãe é a mais bela! - Eis que ouço
     os panos engomados
     que arrastam pelos quartos um doce ruído de trovão... E a
Casa! a Casa?... saímos dela!
     O velhote mesmo me invejaria um par de matracas
     e o zunir com às mãos como um cipó de guizos, o bonduque
ou a mucama.
     Aqueles que são velhos na terra puxam uma cadeira para o 
pátio, bebem ponches cor de pus.
(p. 95)


Multiplicando o menino-lírico em muitos outros meninos ("Nossas mães vão descer, perfumadas com a erva-de-Madame/-Lalie"), cuja aventura, agora, reside numa saída noturna para o desconhecido ("E a Casa! a Casa?... saímos dela!"), Saint-John Perse coteja a vitalidade infantil com a decadência dos adultos, e mais, dos velhos que, em sua visão idealizada na realidade (aditivada outra vez pelos dados sensoriais que cercam essa mesma realidade) não apenas se ressentem daquela presença infantil ("O velhote mesmo me invejaria um par de matracas"), como parecem aceitar a decrepitude dessa condição: "Aqueles que são velhos na terra puxam uma cadeira para o / pátio, bebem ponches cor de pus". A escatologia, no entanto, longe de amedrontar o menino-lírico, tem o poder de reforçar a potência de sua infância e a vitalidade que ela encerra em si. Uma vitalidade que é, como lemos em praticamente todos os poemas de Elogios, o salvo-conduto para os voos do menino em direção das imagens fantásticas que ele (re)constrói a partir da empiria social que o rodeia, tal como lemos nos versos do poema XVIII, que encerra o livro: "Agora deixa-me, vou sozinho. / Sairei, pois tenho o que fazer: um inseto me espera para / tratar." (p. 101). Ou seja, enquanto o mundo se desintegra em envelhecimento e pus, o menino Perse trata de escapar para um exótico colóquio com suas imagens infantis.

Os exemplos da poética de Saint-John Perse aqui apresentados, sem pretenderem encerrar uma compreensão fechada de sua obra (afinal, quem o poderia fazer em face de um autor tão rico quanto inventivo?), demonstram a vitalidade de um poeta digno do Prêmio Nobel que lhe foi conferido. O romancista François Mauriac, conterrâneo de Perse (e vencedor em 1952), escreveu que já estava na hora da França ser agraciada com um prêmio conferido a um autor que não fosse apenas um moralista, como eram até então os laureados daquele país, incluindo ele próprio. De fato, a poesia de Saint-John Perse nada tem de moral e nada fornece de consolo ou de utopia o futuro. Seus textos são retratos da vida íntima, do universo particular de cada indivíduo, da beleza que há no mínimo e que ele, com rigor e acuidade, procura resgatar e recompor com uma lente, sim, exótica, mas altamente inventiva. Uma beleza que reside no pequeno (a mônada), como aponta o autor num dos versos do livro: "Um pouco de céu azula na vertente de nossas unhas" (p. 79).


Jorge Verly


Referência da leitura: Elogios. In: Obra poética. Trad. de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973, p. 44-101.



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