terça-feira, 16 de julho de 2019

Casa sem dono, de Heinrich Böll


Olá, 


Em 1972, o Prêmio Nobel de Literatura retornou, após 43 anos, à Alemanha. Uma Alemanha agora divida: o último laureado (ninguém menos que Thomas Mann em 1929) ainda representara o país pré-Muro de Berlim. Dessa vez o escolhido foi um representante da parte Ocidental, o romancista Heinrich Böll (1917-1985), a quem o Nobel foi concedido "pela sua escrita que, através da combinação de uma perspectiva ampla sobre seu tempo com uma habilidade sensível de caracterização, contribuiu para a renovação da literatura alemã". Este breve comunicado da Academia Sueca explicava, em parte, as razões para tão longo hiato, pois, ao classificar Böll com uma renovador da prosa daquela agora dividida nação, os acadêmicos asseveravam que entre Mann e ele nada havia acontecido de significativo nas letras germânicas. Exageros à parte, a premiação do autor de A honra perdida de Katharina Blum fez muito mais justiça ao esforço narrativo particular do autor nascido em Colônia que à literatura alemã propriamente dita. Dono de um estilo enxuto, compositor de narrativas permeadas por frases secas, curtas (o que lhe valeu muitas vezes uma comparação com a prosa de Ernest Hemingway, laureado em 1954), Böll pode ser considerado o cronista perfeito da(s) Alemanha(s) do pós-guerra, representada(s) por ele em todo o seu grau de culpa pela barbárie nazista, mas nem por isso isenta de hipocrisias e de juízos de valor ocultados pela máscara de uma civilização em reconstrução.

O livro aqui escolhido para um (breve) exame das narrativas de Böll é um dos pontos altos de sua obra, felizmente bastante traduzida para o português. Falo do romance Casa sem dono (1954) e que traz ainda bem abertas as feridas causadas no povo alemão pela guerra. Embora bastante interessado na construção psicológica de seus personagens (e são muitos os que povoam as páginas do romance, conforme veremos), não podemos afirmar que o livro tenha um protagonista, uma personalidade que domine o enredo ao longo de suas mais de 300 páginas. Aliás, há sim: a casa dos Holstege. Enriquecido graças à venda de geleia durante as duas guerras mundiais - as latinhas em que o produto vinha acondicionado, com as iniciais do patriarca da família, E. H., são descritas como povoando campos de batalha espalhados por toda a Europa -, o que restou do clã vive no imenso casarão repleto de quartos e cujo centro, em vez da sala, é uma enorme cozinha onde as personagens fazem suas refeições e também as suas confissões. A casa é uma mímese da própria situação da Alemanha no pós-guerra:

"A casa estava cada vez mais deteriorada, apesar de que não faltava dinheiro para mantê-la em bom estado. Mas ninguém se preocupava em fazê-lo. O telhado estava estragado e Glum se queixava de que a grande mancha escura do teto de seu quarto ia crescendo. Quando chovia muito caía água do teto e então, nunca súbita atividade, todos correiam ao sótão para por um alguidar sob a goteira. Glum ficava tranquilo durante algum tempo, mas a duração de sua tranquilidade dependia do tamanho do alguidar e do ímpeto ou frequência da chuva: se o recipiente era pouco fundo e chovia muito e seguido, a tranquilidade de Glum logo acabava, porque o alguidar transbordava e crescia a mancha escura do teto de Glum. Então colocavam um recipiente maior debaixo da goteira. Todavia, logo se notaram esses mesmos defeitos no quarto de Bolda e no aposento vazio, que havia sido o dormitório do avô. Um dia caiu um pedaço do reboco do banheiro. Bolda recolheu os pedaços e Glum preparou uma mistura de gesso, areia e cal e besuntou a viga com ela." (p. 113)


Ou seja, imensa, mas em franco processo de desintegração, ela é uma maquete em menor escala da nação fracionada e que, como ela, abriga um grupo diverso de pessoas, membros da família ou agregados. Há a avó, a matriarca e chefe do clã depois da morte do avô e que, ao contrário deste, conduz os negócios de modo ausente e exótico, interessando-se mais pelas comidas extravagantes que consome (um vitória sobre sua infância pobre) que pelo acontece no mundo que a rodeia. Há sua filha, Nella, viúva de guerra e que vive a cultuar a memória do marido morto, Raimund (ou simplesmente Rai), um poeta promissor que resolveu seguir para a guerra como protesto, um heroico arroubo que acabou (de certo modo voluntariamente) lhe custando a vida. Há Martin, menino de pouco mais dez anos, filho de Nella e Rai e que cresce naquela casa, perdido entre a saudade de um pai que mal chegou a conhecer e a ausência de sua mãe. Há também "tio" Albert, assim reputado pelo menino, o melhor amigo do pai e que, depois de enviuvar na Inglaterra, retorna à Alemanha para ajudar Nella a cuidar do menino,  ambos vacilando entre o ressentimento e numa possível ligação amorosa, tão frágil quando a existência na Alemanha depois do horror da guerra. Há Bolda, uma ex-freira e também viúva, amiga de infância da avó e que, entre as refeições exóticas que prepara, remói toda uma vida que não aconteceu. E há Glum, um judeu-russo empregado da fábrica que, depois de sofrer as piores torturas num campo de concentração nazista, é acolhido pela família, tornando-se um dos "donos" da casa.



Em torno dessa família em tudo marcada pela tragédia, gravitam os Brielach: Heinrich, melhor amigo de Martin e seu colega de escola; sua mãe viúva, a Sra. Brielach, Leo (atual companheiro da mãe, homem distante e cruel) e Wilma, a filha pequena do casal. Há também o pasteleiro, patrão da Sra. Brielach e com quem ela vislumbra a possibilidade abandonar Leo em troca de uma modesta ascensão social. Assim como Martin, o pai de Herinch também morrera na guerra, porém em circunstâncias não esclarecidas (seu corpo sequer foi encontrado), o que impediu a Sra. Brielach de reivindicar pensões e obrigando-a a viver numa situação de extrema pobreza. Embora não vivam na casa dos Holstege, esta família partilha com eles o amargor da perda e o fardo de precisar continuar seguindo com a vida. Temos também o Padre Willibrod e o professor Schurbigel, literatos e antigos amigos de Rai, que bajulam Nella, voejando em torno dela e da poesia do falecido marido que, após sua morte, ganhou uma aura profética quase sobre-humana. E há Gäseler, o homem que, comandante de Rai durante guerra, é considerador pela família o responsável por enviá-lo a uma missão suicida. Contra ele, Nella, a avó, Albert e até mesmo o pequeno Martin nutrem um desejo de vingança terrível que, como se verá ao final da narrativa, resulta tão impossível quanto culpabilizar cada cidadão alemão pela catástrofe perpetrada por Hitler.

Como já entrevisto, dois fantasmas compõe este já volumoso rol de personagens. Raimund Bach e o Sr. Brielach, pais de Martin e Heinrich, ambos mortos no absurdo da guerra, representam para os que ficaram vivos, cada qual a seu modo, a perda e também a evidência de sua derrota. Se para os filhos eles se manifestam como o exemplo da mais inexorável orfandade, para suas mulheres eles são tanto a interrupção do amor (Nella) ou a sentença de uma vida miserável (Sra. Brielach). Além disso, a morte dos maridos joga as duas mulheres para fora das convenções sociais e as mergulha em uma vida marginal: enquanto Nella passa a receber no casarão, noite após noite, tipos duvidosos que, sob o pretexto de cultuar a obra de seu marido, consomem sua comida, sua bebida e sua atenção, a Sra. Brielach vê-se obriga a pular de homem em homem na tentativa de manter algum tipo de lar, ainda que precário, para seus filhos. E quando Martin e Heinrich ouvem o pasteleiro referir-se a ela como "imoral", intrigam-se com a palavra e suas possibilidades de significação, ignorando o real sentido atribuído pelo homem, o de uma mulher que está "fora" das regras morais socialmente aceitas numa sociedade hipócrita que, há pouco mais de uma década, assassinou em massa milhões de judeus. 

Em Casa sem dono tudo é alegórico, mas finamente trabalhado pela prosa em parte exasperada de Böll. Frases repetidas, sentenças curtas, conclusões irônicas e pensamentos inteiros ocultos nas entrelinhas do texto reforçam o caráter de clausura que é viver na casa dos Holstege e naquela Alemanha de brechas ainda não cicatrizadas. Por isso, o que se diz e o que se pensa é curto - mas abriga, no interdito, uma cordilheira de sentimentos não resolvidos, de impasses ainda por solucionar. Que a narrativa, ao final, não soluciona. Eis a grandeza do romance: é inútil tentar recompor aquilo que a guerra destruiu, pois as mortes dos dois homens pôs um incontornável ponto final em tudo. Aqueles que ficaram, os habitantes da casa sem dono e também aqueles que orbitam em torno dela, apenas seguem como espectros, como os alemães por muito tempo seguiriam (e talvez ainda sigam) depois do absurdo representado pela calamidade nazista, como lemos na invectiva de Nella contra o desejo de Albert de usar a obra de Rai como libelo contra os resquícios do nacional-socialismo na Alemanha:

" - Acredita que vou passar a vida como guardiã de trinta e sete poemas? Quando a Martin, você sabe cuidar dele muito melhor que eu. E não quero voltar a casar, não quero ser mãe sorridente dessas revistas ilustradas, não quero voltar a ser a esposa de ninguém: não tornará a apresentar-se nenhum homem como Rai, e Rai não voltará. Deram-lhe um tiro - e me deixaram viúva - em nome de .átria - .oado - ührer - E Nella imitou o eco que fazia a capela batismal, cheio de falsidade e ameaça, de falsa ênfase, seminarista." (p. 187)

Este e outros trechos (como aqueles em o professor de Heinrich e Martin classifica-os como "crianças de 1943", feitas às pressas nos acampamentos nas poucas folgas de seus pais dos campos de batalha) pontuais do romance evocam textualmente o nazismo. Mas mesmo sem ser diretamente referida, essa catástrofe pode ser sentida pelo leitor a todo o momento como um miasma que emporcalha, deteriora e corrói as vidas, o futuro e, claro, o casarão do qual é protótipo, como o motor-propulsor da melancolia que  pinta suas paredes (e todo o resto) com suas dolorosas tintas.

Este romance duro - um tentativa potente de rever os impactos humanos de um passado àquela época ainda muito vivo, como vimos - sozinho justificaria a escolha do autor para o Nobel de 1972. Para nossa sorte, no entanto, muitas e muitas obras há para comprovar a grandeza e a urgência da prosa Böll em tempos que, como os que ele viveu, permanecem repletos de dor, de fantasmas e de orfandade. Resta-nos, tal como a lição de outro alemão preocupado com os ecos da barbárie nazista, Theodor W. Adorno,  saber como utilizá-los como ferramenta para uma elaboração libertadora do passado.

Jorge Verly.

Referência da leitura: BÖLL, Heinrich. Casa sem dono. Trad. de Ebréia de Castro Gonçalves. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. 

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