Ao contrário dos prêmios científicos, o Nobel de Literatura raramento é dividido entre dois ou mais autores. É tradição da Academia Sueca escolher apenas um escritor para recebê-lo anualmente, o que é facilmente compreensível pela natureza da categoria literária em face das demais: enquanto os prêmios de Física, de Química ou Medicina geralmente recaem sobre descobertas coletivas (daí serem premiadas duplas ou trios de cientistas), o de Literatura é outorgado a uma produção literária em particular ou a um gênio criativo específico, não cabendo quase nunca a divisão do laurel. Digo quase nunca porque, embora seja tradição (e é lugar-comum dizer que as tradições servem, entre outras coisas, para seu descumprimento), o Nobel de Literatura foi dividido entre dois autores em quatro ocasiões: em 1904, em virtude de um empate entre Fredéric Mistral e José Echegaray; em 1917 (os dinamarqueses Karl Gjellerup e Henrik Pontoppidan) e 1974 (os suecos Eyvind Johnson e Harry Martinson), para homenagear autores do mesmo país; e em 1966, para laurear dois autores de origem judaica. Neste ano em particular, os escolhidos foram a poeta alemã naturalizada sueca Nelly Sachs (de quem falarei na próxima postagem) e o escritor israelense Shmuel Yosef Agnon (1888-1970), para quem o Nobel foi atribuído "por sua arte narrativa profundamente característica com motivos da vida do povo judeu".
Praticamente desconhecido do público leitor de hoje, a escolha da obra de Agnon foi saudada à época como um duplo tributo, tanto aos judeus que há pouco mais de duas décadas haviam sido brutalmente massacrados na Shoah, como ao também recente Estado de Israel, de quem o autor foi o primeiro e até hoje único premiado. No Brasil, muitos de seus livros foram traduzidos após sua premiação em 1966, especialmente pela Editora Perspectiva e seu editor, o também judeu Jacó Ginsburg, e ainda podem ser encontrados em sebos e bibliotecas. Escolhi como leitura de sua obra o livro Noivado e outros contos, uma reunião de textos (mal) traduzidos por Rachel de Queiroz a partir de versões em inglês (e não do hebraico, idioma de expressão do autor). É preciso logo dizer que Agnon, se comparado a outros autores, agraciados ou não com o Nobel, tenha destacada a sua pouca "estatura" literária: a repetição de motivos e enredos nos contos do livro chega a ser incômoda e seu estilo narrativo poucas vezes ultrapassa o convencional - em parte, concedo, em razão da tradução truncada e pouco cuidadosa. No entanto, é preciso também destacar a abordagem feita em sua obra da cultura judaica que, ao mover do foco para além da questão do Holocausto e centrá-lo nas tradições místicas e nos hábitos e costumes dos novos habitantes da Terra Prometida, revela o jogo entre tradição e modernidade: as personagens de suas histórias são geralmente aqueles que, após 1948, migraram massivamente para a Israel, onde se viram obrigados a conviver com as regras milenares da Torá e as novas perspectivas de um mundo cada vez mais global. Sendo um lugar de reconstrução de vidas destroçadas pelo Holocausto, Israel também se configurava como um espaço para conflitos de geração, reavaliações da fé e desencontros amorosos, umas das temáticas centrais dos contos do livro, como veremos.
O conto "Na estrada", que abre o volume, narra a experiência de um judeu (que tem o mesmo nome do autor) que, por uma "contingência ferroviária" (um defeito na locomotiva impede uma viagem) às vésperas do Ano Novo, vê-se obrigado a caminhar e vai parar numa comunidade judaica de língua alemã em algum ponto não nomeado da Europa Central. O reduzido grupo de velhos judeus vive numa pobreza extrema ("com tão poucos recursos, os filhos partiam para as cidades grandes e levavam consigo as irmãs, e mandavam buscar os pais para assistir às suas bodas", p. 59) e carrega as marcas da sobrevivência pós-Shoah. Ainda assim, eles mantêm os hábitos e costumes milenares da fé mosaica, insistindo, mesmo em meio ao turbilhão na História, na manutenção de suas tradições.
Já a narrativa "Agunot" retrata uma infeliz história de amor que tem como contorno as rigorosas leis do divórcio entre os judeus: na tradição hebraica, a palavra agunot é traduzida como "acorrentada" e refere-se à mulher que deseja a separação de um marido ao lado do qual é infeliz, mas permanece acorrentada a ele, pois na lei da Torá o direito de permitir ou não o divórcio pertence apenas aos homens. O conto tem como centro quatro personagens: Dinah, a virgem filha de um milionário que emigrou para Jerusalém; Ezekiel, seu prometido esposo, um instruído judeu polonês; Ben Uni, um artesão encarregado pelo pai de Dinah da confecção de uma suntuosa arca que guardaria as escrituras na sinagoga construída em honra da sabedoria do genro; e Freidele, a amada de Ezekiel que ficara na Polônia e que é apenas referida no texto, embora sua presença em parte impeça a felicidade conjugal dos noivos. Quando a arca fica pronta, o artesão desaparece misteriosamente e Dinah, enamorada de sua bela voz (ele tinha por hábito cantar melodiosamente enquanto trabalhava), atira a peça pela janela. Embora o rabino da comunidade a perdoe e celebre o matrimônio, o casal é profundamente infeliz, como que tocado por uma maldição:
"O bobo convidava à dança os mais severos e eles se organizaram no círculo ritual para ovacionar a noiva e o noivo. Mas o lindo par estava tomado por uma tristeza que cavava um fosso entre dois e lhes separava os cotovelos. E não se aproximaram um do outro a noite inteira, nem sequer na reclusão da alcova nupcial. O noivo ficou a cismar num canto, os pensamentos o arrastando para longe. Pensava na casa de seu pai, em Freidele, cuja mãe cuidara dele e do pai quando morrera sua santa mãe. E Dinah cismava a outro canto, seus pensamentos correndo para a Arca e seu artífice, que desaparecera da cidade sem que ninguém soubesse para onde fora." (p. 92)
Sem conhecer o paradeiro de Ben Uni, a moça sofre acorrentada (a agunot) ao melancólico e casto matrimônio. Até que o marido chama o rabino e o casamento é desfeito, sendo Dinah finalmente liberada das tristes correntes. Mas é aí que a "maldição" passa do ex-casal para o rabino, que tem frequentes sonhos com o exílio. Interpretando-os como um destino a cumprir em nome do liberado casal, este resolve partir e vagar pelo mundo como forma de expiação da infelicidade que recaiu sobre Ezekiel e Dinah, sobre Jerusalém, sobre a própria Terra Prometida. Numa nova e inesperada camada de interpretação, o "rabino errante" revive o mito do Judeu Errante, o desafortunado sapateiro Asvero, condenado por Jesus a vagar pelo mundo até o final dos tempos. Detentor do segredo da Arca derrubada (que é uma metáfora do casamento infeliz), ele assume os pecados alheios e por eles paga. Paga também, arquetipicamente, pelos pecados de todos os judeus, personificando o destino andarilho de Israel.
Destaco também os contos "A metamorfose", em que um casal descobre, no dia do divórcio, a ternura perdida ao perambular pela noite mágica da Terra Prometida, e "O divórcio do médico", no qual o narrador remói as lembranças de um casamento desfeito por desmedidos ciúmes da esposa (outra Dinah, o que nos remete ao mito da irmã de José que, violentada por Siquém, personifica o destino infeliz da mulher judia). Já "Noivado", narrativa que fecha o livro, é um longo (e um tanto aborrecido) conto sobre Jacob e Susan, casal que depois de passar por percalços (sete donzelas cobiçam o jovem judeu) finalmente se reúne em matrimônio.
Estes pequenos fragmentos de leitura dos contos de Shmuel Yosef Agnon revelam sua quase obsessão pela temática da (in)felicidade conjugal sob as luzes da tradição judaica. Mais que um escritor judeu, ele foi um escritor do século XX. Sem ser especialmente dotado de uma força narrativa capaz de sustentar sua obra ao longo dos tempos (tanto que, como disse, seus leitores foram escasseando nas décadas que se seguiram à premiação com o Nobel), Agnon trabalhou de forma justa com os recursos de seu tempo e pintou-os com as cores da tradição de Israel. Assim, se levarmos em conta que a Academia Sueca quis, em 1966, homenagear aquele país, seu povo e sua convivência com os costumes dos novos tempos, o objetivo foi - ainda que sem o devido rigor estético - de alguma forma cumprido.
Jorge Verly
Referência da leitura: AGNON, Shmuel Yosef. Noivado e outros contos. Trad. de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973.
O conto "Na estrada", que abre o volume, narra a experiência de um judeu (que tem o mesmo nome do autor) que, por uma "contingência ferroviária" (um defeito na locomotiva impede uma viagem) às vésperas do Ano Novo, vê-se obrigado a caminhar e vai parar numa comunidade judaica de língua alemã em algum ponto não nomeado da Europa Central. O reduzido grupo de velhos judeus vive numa pobreza extrema ("com tão poucos recursos, os filhos partiam para as cidades grandes e levavam consigo as irmãs, e mandavam buscar os pais para assistir às suas bodas", p. 59) e carrega as marcas da sobrevivência pós-Shoah. Ainda assim, eles mantêm os hábitos e costumes milenares da fé mosaica, insistindo, mesmo em meio ao turbilhão na História, na manutenção de suas tradições.
Já a narrativa "Agunot" retrata uma infeliz história de amor que tem como contorno as rigorosas leis do divórcio entre os judeus: na tradição hebraica, a palavra agunot é traduzida como "acorrentada" e refere-se à mulher que deseja a separação de um marido ao lado do qual é infeliz, mas permanece acorrentada a ele, pois na lei da Torá o direito de permitir ou não o divórcio pertence apenas aos homens. O conto tem como centro quatro personagens: Dinah, a virgem filha de um milionário que emigrou para Jerusalém; Ezekiel, seu prometido esposo, um instruído judeu polonês; Ben Uni, um artesão encarregado pelo pai de Dinah da confecção de uma suntuosa arca que guardaria as escrituras na sinagoga construída em honra da sabedoria do genro; e Freidele, a amada de Ezekiel que ficara na Polônia e que é apenas referida no texto, embora sua presença em parte impeça a felicidade conjugal dos noivos. Quando a arca fica pronta, o artesão desaparece misteriosamente e Dinah, enamorada de sua bela voz (ele tinha por hábito cantar melodiosamente enquanto trabalhava), atira a peça pela janela. Embora o rabino da comunidade a perdoe e celebre o matrimônio, o casal é profundamente infeliz, como que tocado por uma maldição:
"O bobo convidava à dança os mais severos e eles se organizaram no círculo ritual para ovacionar a noiva e o noivo. Mas o lindo par estava tomado por uma tristeza que cavava um fosso entre dois e lhes separava os cotovelos. E não se aproximaram um do outro a noite inteira, nem sequer na reclusão da alcova nupcial. O noivo ficou a cismar num canto, os pensamentos o arrastando para longe. Pensava na casa de seu pai, em Freidele, cuja mãe cuidara dele e do pai quando morrera sua santa mãe. E Dinah cismava a outro canto, seus pensamentos correndo para a Arca e seu artífice, que desaparecera da cidade sem que ninguém soubesse para onde fora." (p. 92)
Sem conhecer o paradeiro de Ben Uni, a moça sofre acorrentada (a agunot) ao melancólico e casto matrimônio. Até que o marido chama o rabino e o casamento é desfeito, sendo Dinah finalmente liberada das tristes correntes. Mas é aí que a "maldição" passa do ex-casal para o rabino, que tem frequentes sonhos com o exílio. Interpretando-os como um destino a cumprir em nome do liberado casal, este resolve partir e vagar pelo mundo como forma de expiação da infelicidade que recaiu sobre Ezekiel e Dinah, sobre Jerusalém, sobre a própria Terra Prometida. Numa nova e inesperada camada de interpretação, o "rabino errante" revive o mito do Judeu Errante, o desafortunado sapateiro Asvero, condenado por Jesus a vagar pelo mundo até o final dos tempos. Detentor do segredo da Arca derrubada (que é uma metáfora do casamento infeliz), ele assume os pecados alheios e por eles paga. Paga também, arquetipicamente, pelos pecados de todos os judeus, personificando o destino andarilho de Israel.
Destaco também os contos "A metamorfose", em que um casal descobre, no dia do divórcio, a ternura perdida ao perambular pela noite mágica da Terra Prometida, e "O divórcio do médico", no qual o narrador remói as lembranças de um casamento desfeito por desmedidos ciúmes da esposa (outra Dinah, o que nos remete ao mito da irmã de José que, violentada por Siquém, personifica o destino infeliz da mulher judia). Já "Noivado", narrativa que fecha o livro, é um longo (e um tanto aborrecido) conto sobre Jacob e Susan, casal que depois de passar por percalços (sete donzelas cobiçam o jovem judeu) finalmente se reúne em matrimônio.
Estes pequenos fragmentos de leitura dos contos de Shmuel Yosef Agnon revelam sua quase obsessão pela temática da (in)felicidade conjugal sob as luzes da tradição judaica. Mais que um escritor judeu, ele foi um escritor do século XX. Sem ser especialmente dotado de uma força narrativa capaz de sustentar sua obra ao longo dos tempos (tanto que, como disse, seus leitores foram escasseando nas décadas que se seguiram à premiação com o Nobel), Agnon trabalhou de forma justa com os recursos de seu tempo e pintou-os com as cores da tradição de Israel. Assim, se levarmos em conta que a Academia Sueca quis, em 1966, homenagear aquele país, seu povo e sua convivência com os costumes dos novos tempos, o objetivo foi - ainda que sem o devido rigor estético - de alguma forma cumprido.
Jorge Verly
Referência da leitura: AGNON, Shmuel Yosef. Noivado e outros contos. Trad. de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973.
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