terça-feira, 9 de julho de 2019

Um amigo de Kafka, de Isaac Bashevis Singer




Olá,


Em 1978, o laureado com o Prêmio Nobel de Literatura foi o escritor judeu Isaac Bashevis Singer (1902-1991), nascido na Polônia e radicado nos Estados Unidos. Na exposição de motivos para a atribuição do prêmio da Academia Sueca lemos que ele o recebeu "por sua apaixonante narrativa artística que, com suas raízes na cultura tradicional polaco-judaica, traz a condição universal e humana para a vida". Foi até hoje o único autor que escreveu basicamente em iídiche a receber o Nobel. Vasta e composta de romances, contos e narrativas de caráter memorialista, a obra de Isaac B. Singer é conhecida e traduzida no Brasil desde os tempos de sua fama mundial em razão do reconhecimento pela Academia Sueca. Seu livro mais conhecido é o romance Sombras sobre o rio Hudson, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e que se debruça sobre a temática dos judeus emigrados nos Estados Unidos, sobretudo na região de Nova York. Manhattan é, aliás, o cenário preferido das narrativas de Singer, onde judeus, mais uma vez exilados e errantes, tentam algum tipo de reconstrução (ainda que precária) da vida pós-Shoah. 


Como leitura da obra do autor elegi o volume de contos Um amigo de Kafka (1970). São 21 narrativas, algumas delas breves, outras mais longas, mas todas igualmente construídas como reflexões sobre a existência humana do ponto-de-vista da condição judaica.

Tomo como exemplo o conto "A cafeteria", no qual vemos Aaron, um famoso escritor judeu há vários anos radicado em Nova York (certamente um alter ego do próprio Singer) e que tem como passatempo uma "turnê" pelas cafeterias da cidade, especialmente as que abrigam outros velhos judeus da Big Apple. Numa ocasião, nota que uma jovem judia, Esther, parece muito à vontade entre os velhos, muitos deles às portas da morte. Interessando-se pela estranha figura, passa a cortejá-la e, depois de alguns contatos, ela o convida a conhecer seu apartamento, onde vive com pai, Boris , um velho judeu que perdera as pernas em virtude de um enregelamento após a libertação de um campo de concentração. A existência de Esther, que sobrevive modestamente como operária de uma fábrica de botões, parece guardar um segredo ligado àquela cafeteria. Algum tempo depois, ela desaparece da vida do narrador:

"Convidara Esther para jantar, mas ela ela ligara para dizer que estava gripada e precisava ficar na cama. Poucos dias depois surgiu um problema que me fez viajar para Israel. Na volta, parei em Londres e Paris. Quis escrever para Esther, mas perdera o endereço. Quando voltei a Nova York, tentei me comunicar com ela, mas o nome de Boris Merkin ou de Esther Merkin não constavam na lista telefônica: o pai e a filha podiam ser inquilinos do apartamento de outra pessoa. As semanas se passaram e ela ela não apareceu na cafeteria. Perguntei ao grupo por ela; ninguém sabia onde estava." (p. 88)

Passadas algumas semanas, ela reaparece novamente na cafeteria, ainda mais carregada de mistérios. Para então sumir outra vez. Arma-se um jogo de gato e de rato e que não demora a cansar o escritor, que passa a evitar a companhia e as conversas com a jovem, sempre permeadas por enigmas, pausas, silêncios e uma certa dose de neurose e loucura, atribuídas por Aaron à experiência do Holocausto. É então que um fato inesperado se dá: a cafeteria sofre um incêndio e resulta destruída. Os emigrados se dispersam por várias outras cafeterias da cidade, retomando seus colóquios de dor e de rememoração. É então que Esther reaparece: ela telefona a Aaron e pede urgentemente um encontro. Depois de relutar, ele cede e o que a jovem narra parece inacreditável: na noite do incêndio ela jura ter passado pela cafeteria e, encontrando a porta aberta, ter entrado e visto Hitler e seus oficiais sentados a uma mesa, confabulando novamente contra os judeus. Espantado, ele pergunta se aquilo não seria uma espécie de alucinação, comum para quem passou por tantos traumas. Ofendida, Esther desaparece outra vez. Aaron esquece o assunto e, tempos depois, reencontra um velho amigo em comum que lhe comunica o suicídio da moça. Assim como o narrador, nunca saberemos o que de fato ela viu, bem como não descobriremos se foi a jovem a autora do incêndio na cafeteria, talvez na esperança de, outra vez, livrar o povo judeu de seu maior flagelo.

Mas não são apenas os elementos trágicos da experiência judaica que contribuem para a relevância do livro. Em muitos de seus contos está presente também o célebre dado do humor judeu que, valendo-se do destino do povo de Israel, procura filtrá-lo pelo prisma da crítica, da auto-indulgência e do chiste. Nessa linha, podemos dizer que autores como o brasileiro Moacyr Scliar são herdeiros diretos e fecundos da prosa de Singer. Um dos exemplos é o conto "A chave", em que encontramos a velha e desconfiada Bessie Popkin que, viúva e morando num apartamento decrépito e alugado na Broadway (embora dona de uma considerável fortuna deixada por seu falecido marido, Sam), considera cada saída de casa uma expedição a um mundo inimaginável e perigoso e contra o qual seu lar é o mais seguro dos refúgios. Numa dessas escapadas, dessa vez ao supermercado, Bessie observa os ruídos, a sujeira e a excentricidade dos transeuntes que  maculam as ruas de Nova York, cidade que lhe parece cada vez mais hostil e ameaçadora:

"Bessie raramente se afastava mais de dois quarteirões do seu prédio. A rua entre Broadway e Riverside Drive dia a dia se tornava mais barulhenta e suja. Bandos de moleques corriam seminus. Homens morenos de cabelos crespos e olhos desvairados brigavam com mulherzinhas cujos ventres estavam sempre inchados de gravidez. Discutiam em vozes matraqueantes. Os cães latiam, os gatos miavam. Irrompiam incêndios e chegavam carros de bombeiros, polícia e ambulâncias. Na Broadway, as velhas mercearias tinham sido substituídas por supermercados, onde se precisava apanhar os alimentos, colocá-los num carrinho e se postar numa fila diante do caixa." (p. 46)

No supermercado, tudo lhe parece uma aventura perigosa: não entende os preços, fica indecisa entre as muitas marcas e se atrapalha na fila do caixa. Ao voltar para casa (o refúgio), acontece o tão temido encontro com a tragédia: a chave se parte no segredo da fechadura. Desconfiando dos vizinhos e do porteiro, resolve sair para buscar um chaveiro. Cai a noite e Bessie vaga por Nova York, desolada e certa de que seu fim chegara. Refugiada nas escadarias de uma igreja, ela passa a madrugada em companhia de um gato que se aninha a seu colo. É ele a primeira criatura que, em tempos, é gentil com Bessie e ela inicia, a partir dali, um processo de desconstrução da cidade e de seus "perigos". O dia amanhece e ela retorna, incólume, para casa. Lá, descobre que as pessoas se preocuparam com seu infortúnio: o porteiro, zeloso, abre a porta com a chave mestra e uma vizinha aparece com as compras que ela largara no corredor e que a boa alma guardara em sua própria geladeira. Exausta, mas reconciliada com a bondade das pessoas, ela se deita e sonha com o finado marido que, no Paraíso, lhe diz não ser necessária chave alguma para entrar ali, bastando dizer "boa sorte", na singela conclusão do conto. Ora, para além de seu aparente tom de fábula moralizante, é o humor que se sobressai na narrativa, pois as descrições de uma Bessie sovina, racista (ela estremece quando um negro se aproxima na noite), desconfiada em relação à modernidade e suas dinâmicas e renitente para com os vizinhos são um dos elementos centrais da construção narrativa da história contada por Singer. Além disso, a "vingança" do real em face dos preconceitos da personagem, i. e., os cuidados do porteiro e da vizinha, além da noite segura que passa na rua, servem como crítica ao estereótipo criado em torno da figura do judeu - e de um modo inverso, pois é ela (e não o leitor) que se vê obrigada a uma revisão de conceitos. 

Além de permitir um novo e divertido olhar sobre os estereótipos, o humor no livro está atrelado a várias outras temáticas, tais como: o fantástico, como em "O limpador de chaminés", no qual um homem, ao cair de uma chaminé que limpava, passa a adivinhar o futuro, despertando a ganância da sua aldeia no fito de lucrar com maravilhoso evento; a desilusão amorosa trazida pela velhice, como em "Dr. Beeber", a história de um velho e paupérrimo literato que no fim da vida casa-se com uma rica judia que, dando-lhe do melhor, sufoca-o ao querer fazer dele um gênio, motivo pelo qual retorna resolutamente à pobreza anterior: o dramático, como em "O destino", em que uma mulher (viúva, abandonada pela filha e mordida pelo cão de estimação que tanto mimara) declina do amor que surge inesperadamente em sua vida usando a desculpa de que seu fado é a infelicidade; a vida literária, como no conto que dá título ao livro e no qual encontramos outro pobre literato judeu (uma personagem recorrente nas narrativas do livro) que, buscando arrancar vantagens dos que cruzam seu caminho, conta sempre as mesmas e divertidas histórias, como da vez em que levara o autor de A metamorfose a um bordel, do qual ele fugira horrorizado. 

Em resumo, os contos de Um amigo de Kafka resultam num dos momentos altos da narrativa judaica no século XX, valendo-se de uma rica imaginação narrativa, dos elementos disponíveis na pós-modernidade (sobretudo a ironia) e da consciência de que a vida dos judeus deste século, mesmo que açoitada pela maior das barbáries contemporâneas, prossegue e pode ser descrita pelas tintas alegres de seu humor que, nem sempre fazendo rir, fornece algum alento a um povo tão castigado.


Jorge Verly


Referência da leitura: SINGER, Isaac Bashevis. Um amigo de Kafka. Trad. de Lia Wyler. Porto Alegre: L&PM, 2008. 

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