domingo, 7 de julho de 2019

O pátio maldito, de Ivo Andrić



Olá,


Em 1961, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido ao escritor iugoslavo Ivo Andrić (1892-1975). A justificativa dada pela Academia Sueca para atribuição do prêmio ao escritor (que havia sido proposto anteriormente em 1958, indicando uma certa coesão dos membros do júri em torno de seu nome) foi a seguinte: "pela força épica com com a qual ele traçou temas e descreveu destinos humanos desenhados a partir da história de seu país". Foi o primeiro autor proveniente de um país comunista a receber o prêmio com o aporte do governo de seu país, então sob o domínio do Marechal Josip Tito. Lembremos que os dois soviéticos laureados antes dele não tiveram a mesma sorte: Ivan Bunin (vencedor em 1933) estava exilado há mais de uma década na França e foi qualificado como apátrida pela Fundação Nobel, enquanto Boris Pasternak (laureado em 1958) sofreu tal campanha difamatória na imprensa da União Soviética e, ante a ameaça de expulsão do país caso aceitasse viajar a Estocolmo para receber o Nobel, acabou por recusá-lo. Por sua vez, Andrić, diplomata experimentado e habituado a conviver (e a driblar) a censura do governo iugoslavo, foi não só autorizado a viajar para receber o prêmio, como foi saudado pela imprensa e pelo governo de seu país.

Não que sua obra fosse marcada para uma subserviência aos dogmas do chamado "realismo socialista" que tanto marcou gerações de autores do bloco comunista. A seu modo, o autor catalizou as contradições do regime e, através de poderosas metáforas e alegorias, transformou-as em obras de arte que, sub-repticiamente, denunciavam a precária condição humana em face das ditaduras, quaisquer que fossem elas. É o caso do romance O Pátio Maldito, publicado em 1954, obra que escolhi como leitura para esta postagem. 

A narrativa começa com dois frades franciscanos (o que situa a história para antes dos tempos socialistas na Iugoslávia) que, após a morte de um companheiro, Frei Pedro, estão em sua cela para organizar as ferramentas (Frei Pedro era uma espécie de factotum do mosteiro) e outros parcos despojos do falecido. O mais jovem deles, Frei Rastislav, enquanto suporta os resmungos e querelas do velho Frei Miio Iositch à medida em que este vai inventariando o acervo de objetos deixados pelo morto, olha pela janela e vê cemitério recoberto de neve em que Frei Pedro havia acabado de ser enterrado. Movido por esta imagem, o jovem religioso, como que abstraído daquele tempo, passa então a relembrar as histórias contadas Pedro do tempo em que, após uma viagem à Istambul para resolver questões administrativas da ordem, acabara preso no Pátio Maldito. É aí que a história (outra vez recuada, agora para os tempos do Império Otomano) de fato começa. O Pátio Maldito, talvez "a personagem" central da narrativa, é uma prisão muito antiga que, situada na periferia de Istambul, próxima ao porto e às margens do Estreito de Bósforo, abriga uma verdadeira população de homens, desordeiros, criminosos, presos políticos, assassinos, ladrões, caluniadores e outros. O que não impede que haja entre eles um número grande de inocentes, como é o caso de Frei Pedro, cujas circunstâncias da prisão são obscuras e nunca esclarecidas ao longo da narrativa. O fato é que o pátio havia se transformado no centro da vida daqueles detentos que, à despeito dos processos que os esperam (também ocorrem interrogatórios por ali), têm de se adaptar ao lugar e às suas regras para prosseguir.

O rol de personagens que desfilam pelo Pátio Maldito é imenso e Frei Pedro trava contato com várias deles. Desde o mentiroso Zaim Agá, que todos os dias, ao circular pelo pátio, inventava casamentos e divórcios com centenas de mulheres ricas, passando pelos dois comerciantes búlgaros (não nomeados) que, "presos em trânsito" como Frei Pedro, permitem que ele passe as noites próximo a eles num canto isolado e distante do inferno de vozes, gemidos e lamentos que é a noite naquele lugar, até Haim, turco e uma espécie de informante, a pessoa que mais segredos conhece dos moradores do pátio. Há também a temível figura de Karadjoz, o "governador" do Pátio Maldito, um ex-ladrão que, pela influência do pai rico junto às autoridades otomanas, fez-se chefe da prisão e, de sua casa colada ao pátio, preside o lugar, com sua compleição balofa e suas nada ortodoxas táticas de interrogatório, garantindo confissões e costurando acordos vantajosos para si.

Mas a figura da qual Frei Pedro mais se aproxima é Tchamil, um jovem de Izmir, filho de pai turco e mãe grega que, embora abastado, era rejeitado socialmente pelas duas comunidades a que "pertencia", a grega e a turca. Após um amor frustrado (o pai grego da jovem prometida a Tchamil se recusou a casá-la com um muçulmano), o jovem se refugiara no estudo da História do Império Otomano. Esses dados, no entanto, não são contados a Frei Pedro pelo jovem prisioneiro, mas sim por Haim, o informante. É ele quem, depois do desaparecimento de Tchamil do Pátio Maldito (provavelmente vítima dos terríveis interrogatórios de Karadjoz), conta ao religioso (ansioso por saber do paradeiro do amigo, bem como das razões pelas quais ele viera parar ali) sua triste história. Segundo Haim, depois da desilusão amorosa e refugiado em sua fortuna e seus livros, Tchamil passa a se interessar e a estudar obsessivamente a história dos irmãos Bajazé e Djem, os dois filhos do sultão Mohammed II. É então que uma nova narrativa se imiscui dentro da história até então contada: Ivo Andrić, como quem abre uma cebola de dupla camada, constrói um novo romance dentro do romance. Uma história, contudo, que serve para explicar a anterior, como se verá. Nela, os irmãos Bajazé e Djem disputam  o trono otomano após a morte do sultão. Embora Djem fosse preferido de seu pai, Bajazé, o mais velho, reivindica para si o governo e, apoiado por um grande número de paxás turcos, consegue derrotar o irmão mais moço. Este foge para o norte da África e, de lá, tenta organizar um regimento retornar à Turquia e se vingar do novo sultão. Mas eis cai prisioneiro e se torna motivo de disputa entre várias pessoas: os cavaleiros da Ordem de São João, na Ilha de Rodes, o rei da França, Carlos VIII, e os papas Inocêncio VIII e Alexandre Bórgia. Todos eles, alentando uma cruzada contra os muçulmanos, intentam usar Djem como troféu contra seu irmão. Nessas idas e vindas, passa-se uma década e o infeliz prisioneiro morre sem retornar à Turquia e ascender ao trono. A justificativa desta narrativa dentro do romance é que ela serve como alegoria da própria trajetória de Tchamil. Isso porque, além de ser prisioneiro como o príncipe, é seu interesse pela figura obscura do sultão rebelde que o leva ao Pátio Maldito, conforme Haim conta a Frei Pedro, ao revelar que a prisão do amigo foi motiva por suspeitas de rebeldia política. Nesse ínterim, Frei Pedro é libertado e retorna ao mosteiro, tentando em vão descobrir o que ocorreu ao infeliz amigo. Muito provavelmente não saiu de lá vivo. E essa busca acompanhou Frei Pedro até a morte. Assim se encerram as lembranças do jovem Frei Rastislav, interrompidas pelas demandas do tempo presente:

"Tal é a impressão do jovem franciscano sentado junto da janela, e sobre a qual, por um instante arrastado pelas reminiscências, o pensamento da morte lançou sua sombra. Mas apenas por um instante. A princípio lentamente, depois cada vez mais fortes, como no decurso de um lento despertar, chegam-lhe à consciência as vozes da cela vizinha, o som desigual dos objetos de metal que caem surdamente no monte e a voz dura de Frei Miia Iositch, que dita a relação de ferramentas deixadas por morte de Frei Pedro:
- Adiante! Toma nota: serra de aço, pequena, de fabricação alemã. Uma!" (p. 153)

Andrić é um narrador da velha escola. Sem ser um precursor de estilos ou um inovador formal, como o foram outros autores premiados com o Nobel ao longo dos tempos (Beckett, Pirandello ou Saint-John Perse, por exemplo), sua escrita se vale dos elementos narrativos disponíveis e dos recursos de estilo (a metáfora e a ironia, tão presentes em O Pátio Maldito) para narrar o fado dos povos balcânicos. Sim, pois não podemos nos furtar a uma leitura política do romance. Ora, o que seriam as múltiplas nacionalidades que se encontram encarcerados naquela prisão se não o caldeirão de povos dos Bálcãs que, pelo desenho arbitrário da história e de suas guerras, encontram-se ali, ao sabor do autoritarismo dos poderosos? O artifício de transladar a narrativa para trás, ao tempo otomano, nada mais é que um disfarce para falar do tempo presente, da Iugoslávia controlada por Tito e pela cartilha opressora de sua ditadura. Os "destinos humanos desenhados a partir da história de seu país", para aludir outra vez aos motivos de sua premiação, estão ali presentes como ruínas da história, ruínas que a literatura de Ivo Andrić transforma outra vez em monumentos aos olhos do leitor. Por estas razões, sua escolha para o Nobel foi duplamente acertada: por premiar sua obra rica e artisticamente construída pela mediação da história e por divulgar esta mesma obra ao mundo além-Bálcãs. 


Jorge Verly


Referência da leitura: ANDRIC, Ivo. O Pátio Maldido. Trad. de Juvenal Jacinto. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973. 


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