Olá,
O Prêmio Nobel de Literatura de 1979 foi atribuído ao grego Odysséas Elýtis (1911-1996) "pela sua poesia que, com a tradição grega em pano de fundo, descreve com força sensorial e visão intelectual a luta do homem moderno pela liberdade e criatividade", tal como lemos no comunicado divulgado à época pela Academia Sueca. O poeta foi o segundo autor da Grécia a receber o prestigioso prêmio, que antes havia sido dado ao também poeta Giorgios Seféris em 1963. Herdeira espiritual do Surrealismo e de nomes como os de Jean Cocteau, Mallarmé e, sobretudo, Paul Valéry (um autor que, injustamente, morreu sem receber o Nobel), a poesia de Elýtis se transformou ao longo de sua produção, passando das experimentações formais caras ao movimento a uma adesão às formas consagradas do verso livre, mas conservando na linguagem os ecos de uma construção do mundo a partir dos elementos sensoriais, das imagens por vezes delirantes e de uma busca pelo apuro absoluto na construção de poemas que, antes de instruir ou libertar politicamente, mobilizassem os sentidos do leitor.
Por estas razões, podemos considerá-lo um poeta da linhagem descompromissada, avesso (e até mesmo antípoda) de um outro ganhador da década de 1970, Pablo Neruda, por exemplo. Cerebral e profundamente intelectualizada, a poesia de Elýtis inicialmente custa a encontrar no leitor um sentido claro, quer dizer, afeta-o muito mais pelo enigma do que pela revelação. Escrevo estas palavras, mas sinto que tateio por um campo desconhecido e pantanoso. Isso porque há pouquíssimos poemas dele disponíveis em Português - e menos ainda no Brasil, onde sua obra em livro é encontrada, salvo engano, apenas na antologia Poesia Moderna da Grécia, traduzida por José Paulo Paes e publicada em 1986, sem reedição. São elencados ali apenas dez poemas e eles serviram de base para minha leitura-conhecimento da produção de Elýtis; daí a ainda incerteza (e provavelmente parcialidade) da leitura que aqui faço. No entanto, a acuidade de Paes resultou numa seleção em perspectiva panorâmica e na qual a evolução poética do autor é percebida a partir do elemento quase arcádico do primeiro poema apresentado, "O tempo é a sombra célere dos pássaros", até a profundidade metafísica encerrada no último texto da antologia "A gota d'água", permitindo ao leitor brasileiro que não lê o grego moderno (como em meu caso) uma visão mais ou menos evolutiva desta obra. Aliás, deve-se ressaltar a presença dos elementos naturais nestes e em outros poemas do autor grego, numa tentativa acertada de compreensão do mundo pela via monadológica, i. e., na percepção de que a parte (o natural) contém em si um informe indelével do todo (o mundo). Vejamos o poema "Já não conheço a noite", que transcrevo abaixo:
Já não conheço a noite, terrível anonimato da morte
No porto de minha alma ancora uma frota de astros
Estrela da tarde, sentinela a refulgir na brisa
Celeste de uma ilha que me sonha
A proclamar de seus altos rochedos a alvorada
Meus dois olhos num abraço te acolhem com o astro
Do meu vero coração: Já não conheço a noite.
Já não conheço os nomes de um mundo que me nega
Leio as conchas, as folhas, os astros com clareza
Meu ódio é supérfluo nos caminhos do céu
A menos seja o sonho vendo-me cruzar de novo
Com lágrimas o mar da imortalidade
Estrela do mar, sob o arco dourado de teus fogos
Já não conheço a noite que é só noite.
(p. 255)
Ora, esse conjunto de versos ressalta a busca do poeta por uma compreensão do enigma ("Já não conheço a noite") pelos seus elementos, nunces, dêiticos e indícios, marcas em si mesmas fugidias ("uma frota de astros" e "leio as conchas, as folhas"), mas que ele sabe serem essenciais para o assentamento de sua posição enquanto humano, de (para aludir a Heidegger e também a Drummond) seu "ser-e-estar-no-mundo". No entanto, ele sabe ser esta tentativa frustrada, ou mesmo parcial, uma vez que "sob o arco dourado de teus fogos / Já não conheço a noite que é só noite". Por outras palavras, a noite guarda em si um novo enigma, uma outra noite que, como múltiplas matrioskas, acumula centenas, dezenas de novas noites dentro da noite. O que não invalida a busca, uma vez que é preciso buscar a "ilha que me sonha" (a mônada), ainda que ela se apresente distante e fugidia.
Como dito, outro elemento presente na poética de Elýtis é o sentido imagético que ele confere aos dados empíricos (ou mesmo trágicos) da existência, como lemos no poema "A Autópsia":
Pois bem, verificou-se que o outro das raízes de oliveira
gotejara-lhe nos refolhos do coração.
E que, pelas muitas vezes que aguardou em vigilha, junto
ao candelabro a Aurora nascer, um ardor estranho se
apoderara de suas entranhas.
Um pouco abaixo da pele, a linha anil do horizonte, de
forte colorido. E traços copiosos de azul também no
sangue.
As vozes dos pássaros, que nas longas horas de solidão
ele aprendera de cor, pareciam haver transbordado
todas a um só tempo, pelo que não foi possível à faca
ir mais fundo.
Provavelmente a intenção bastava para o Mal.
Que ele enfrentou - claro está - na terrível postura do
inocente. De olhos orgulhosamente abertos, o bosque
todo a se mover ainda em suas retinas imaculadas.
Nada no encéfalo, a não ser um eco arruinado do céu.
Na concha de sua orelha esquerda, só um pouco de areia
finíssima como se dentro de uma ostra. O que significa
ter ele andado solitariamente muitas vezes à beira-mar,
definhando de amor entre os rugidos do vento.
Quanto às aparas de fogo em suas virilhas, mostram que
na verdade ele avançava muitas horas toda vez que
estreitava uma mulher.
Este ano vamos ter frutos prematuros.
(p. 262)
Reputo este poema como um dos mais belos textos escritos no século XX por qualquer autor, Nobel ou não. O fato de terem sido produzidos por Odysséas Elýtis reforça tanto seu parentesco com a vertente surrealista, como sua escolha para o prêmio. A descrição de uma autópsia, evento frio e que sela a morte de todo o sentido humano (mas também a tentativa de compreensão das razões do próprio fim), sob uma ótica mágica e eivada de imagens que portam uma força poética poderosa, resume bastante bem a busca de Elýtis por uma compreensão para além do real da existência. Eventos ligados a uma práxis contemplativa e reflexiva da vida (as "vezes em que aguardou em vigília", "nas longas horas de solidão" e "andado solitariamente muitas vezes à beira-mar") apresentam-se inextricáveis ao frio bisturi da racionalidade humana ("pelo que não foi possível à faca / ir mais fundo") justamente por conterem o mistério que é existir em meio ao mundo repleto de sentidos diversos daqueles que ele procura decifrar "de olhos orgulhosamente abertos". Olhos que prescrutam o duplo, o triplo, o sempre polissêmico sentido que cada coisa traz em si. O próprio amor, quando lançado ao escrutínio do autopsiador, já não pode ser capturado e compreendido, posto que já definhou "entre os rugidos do vento". Ou a intelectualidade, tão cara à poesia de Elýtis e destacada em seu rico léxico (transcrito com justiça pela tradução), mas que perde aqui sua clareza ao ser fatiada pelo legista que nada encontra no encéfalo "a não ser um eco arruinado do céu". O poema termina com um claro-enigma ("Este ano vamos ter frutos prematuros") que, para além do dado erótico (como eróticos são os múltiplos sentidos na poesia de Elýtis), funciona como convite a novas e sempre possíveis leituras.
Estes dois exemplos da poética do laureado de 1979 tanto justificam como convidam. Justificam a escolha acertada (o que nem sempre ocorre, devemos admitir) da Academia Sueca e convidam o tirar do circuito grego um poeta tão rico como Elýtis, para apresentá-lo a um maior número de leitores. Pois uma poética como esta merece ser cada vez mais conhecida, mas lida e nunca plenamente (que dávida!) decodificada em suas muitas imagens. Uma escolha que é, certamente, um dos grandes momentos da história do Prêmio Nobel de Literatura.
Jorge Verly
Referência da leitura: Elýtis. In: Poesia moderna da Grécia. Trad. de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 253-273.
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