quarta-feira, 3 de julho de 2019

O planeta do Sr. Sammler, de Saul Bellow




Olá,


Saul Bellow (1915-2005) recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1976 em razão, de acordo com a exposição de motivos da Academia Sueca, do "entendimento humano e sutil análise da cultura contemporânea que são combinados em sua obra". De Bellow, nascido no Canadá mas que, à época da premiação, residia nos Estados Unidos há muitas décadas, li apenas dois livros, romances ambos: Ravelstein (2000) e O planeta do Sr. Sammler (1969), que será objeto deste texto. O primeiro foi lido, caso não me traia a memória, entre 2001 e 2002, quando de sua publicação entre nós pela Rocco. Trata-se do último livro escrito pelo autor e que, amparado na estratégia do roman à clef, esquadrinha a vida de Allan Bloom, professor universitário e colega de Bellow, tornado tardiamente famoso e rico graças à publicação de um inesperado best seller acadêmico, The closing of the american mind. A vida polêmica de Bloom, homossexual não-declarado e amante de luxos cujo dinheiro pode, enfim, comprar, aliada a uma análise fina e irônica da vida americana do final do milênio, são ali combinadas de uma forma que, embora breve (o romance possui pouco mais de 100 páginas), justifica as razões da escolha de Bellow para o prêmio mais de trinta anos antes. 

No entanto, é em O planeta do Sr. Sammler que a análise da precária condição humana e as ressonâncias de uma cultura já decadente estão jungidas de forma magistral. Penso que foi em grande parte em virtude deste romance que o prêmio foi-lhe, após alguns anos de figuração na lista oficial de candidatos, concedido. O livro narra a trajetória de  Arthur Sammler, um judeu polonês nascido no final do século XIX, na encruzilhada entre o velho romantismo europeu e os já estridentes ecos de avanço liberal e modernidade técnica do século que o sucedeu. Embora oriundo de um meio pouco intelectualizado, Sammler torna-se jornalista e passa a primeira parte da vida adulta na Inglaterra, onde trabalha como correspondente internacional de jornais poloneses e trava contato com personalidades da vida intelectual e cultural inglesa, como a maioria dos membros do célebre círculo de Bloomsbury e, em especial, H. G. Wells. Em meados de 1939, ele e sua esposa, Antonina, retornam à Polônia para tratar de questões do espólio do pai de Sammler. É então, como sabemos, que a História e seu terrível arbítrio invadem a vida da personagem: estoura a Segunda Guerra Mundial e Sammler, judeu, passa a penar sob suas vicissitudes. Sua esposa é fuzilada e ele escapa miraculosamente, fingindo-se de morto e com "os corpos moribundos dos outros por cima dele, amassando-o, sufocando-o" (p. 91). Nesse terrível episódio, Sammler, além da mulher, perde também um olho, razão pela qual passará a usar óculos escuros para o resto da vida. Depois de esgueirar-se em trapos pelas matas, é recolhido por um coveiro antissemita que o hostilizara em sua juventude mas que agora, diante do horror da guerra e da Shoah, o abriga em um túmulo onde, por meses, sobrevivendo graças às parcas rações de comida trazidas pelo protetor e com um apego à vida, movido sobretudo por uma tentativa hercúlea de compreender a tragédia pelo espectro da racionalidade, Sammler escapa e une-se aos partisans poloneses. Caído ante os russos, é prisioneiro de um campo de concentração. Mas a proximidade do fim da guerra poupa-lhe a vida: o arrefecimento dos conflitos e a posterior derrota nazista contribui para a libertação de Sammler que, pouco depois, emigra para os Estados Unidos.




Apenas as passagens descritas acima fariam do romance um texto rico em nuances e reflexões sobre o homem ante seu (bárbaro) tempo. Elas não são, no entanto, contados de forma linear na narrativa. É durante a sua experiência nos Estados Unidos que a terceira vida de Sammler se desenvolve e é também onde seu "planeta" se desvela, sempre em cotejo (e não como reminiscência) com suas vidas anteriores, a primeira no meio letrado e refinado inglês, a segunda no horror da guerra e do Holocausto. Na América, ele passa a viver como agregado de dois parentes ricos, também eles judeus poloneses que emigraram antes da guerra: a sobrinha Margotte, rica viúva e dona de um amplo apartamento em Nova York e que lhe oferece um quarto em troca de companhia e dos "sábios conselhos" do tio; e o sobrinho Elya, médico por vocação e milionário por astutos investimentos (e também por escusos serviços prestados à máfia americana), que lhe provê uma modesta pensão que, juntos aos parcos proventos da seguridade social e das indenizações provenientes da Alemanha Ocidental, garantem a sobrevivência de Sammler. Também com ele convive Shula, sua amalucada filha que, protegida por freiras polonesas durante a guerra, emigra também para os Estados Unidos e, deslumbrada pela opulência da cultura americana, passa a vestir-se de forma extravagante e sexualmente apelativa, além de acumular cacarecos que recolhe nas ruas de Manhattan, fragmentos da era industrial já em decadência e que ela distribui por seu apartamento. Juntam-se ao núcleo familiar Angela e Wallace, filhos de Elya e personalidades díspares que gravitam em torno do tio: enquanto Angela é bela, sexualmente exuberante e financeiramente independente, Wallace sente-se rejeitado, é emocionalmente instável e, como resultado, vive frustando o pai com projetos econômicos mirabolantes e fracassados. No entanto, ambos procuraram Sammler com frequência, demonstrando avidez por seus conselhos e por suas palavras de encorajamento, assim como Elya, Margotte, Shula e outros, americanos, judeus, indianos e israelenses que, ao longo da narrativa, atravessam o caminho de Sammler e aterrissam em seu planeta, obrigando-o a escrutiná-los a partir de seus indefectíveis olhos escuros



Mas, afinal, qual é o sentido contido no título do romance, i. e., a ideia de planeta encerrado em si mesmo que atravessa a(s) existência(s) de Arthur Sammler? Ora, trata-se de um pergunta cuja resposta o leitor vai encontrando à medida em que este mesmo planeta se abre a seu olhar durante o livro. Por outras palavras: enquanto o narrador (impessoal, em terceira pessoa) vai contando os calços e percalços de Sammler, a personagem vê-se obrigado a abrir sua vida e dividi-la com os outros. A todo instante ele é chamado a opinar, a aconselhar, a dividir suas leituras (Sammler é cultíssimo) e suas crenças com aqueles que o cercam. E é nesse moto-contínuo que ele se vê confrontado a um movimento que, em comparação com a movimentação dos corpos celestes, é tanto de rotação como de translação, ou seja, em torno dos outros e também de si mesmo. Seja na observação de um batedor de carteiras num ônibus que cruza a Broadway, seja na repetição de gestos típicos do american way of life (tomar uma caixinha de grapefruit ou descer aos infernos do metrô novaiorquino), Sammler está o tempo inteiro confrontando estes elementos do mundo exterior (que ele enxerga já como sinais de um apodrecimento da própria cultura ocidental) com os valores racionais de um mundo que ele sabe também decante mas que, a todo custo, é seu dever continuar a carregar e a dividir com os seus.

O planeta do Sr. Sammler é um romance surpreendente, irônico, profundo e reflexivo. E é, principalmente um convite para a leitura de outras obras de Saul Bellow, este cantor dos tempos contemporâneos em que o homem, perdido e desiludido, luta para continuar a ser aquilo que é de sua natureza, de sua essência mesma: humano. 


Jorge Verly


Referência da leitura: BELLOW, Saul. O planeta do Sr. Sammler. Trad. de Denise Vreuls. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.

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