As relações entre a Academia Sueca e a União Soviética foram marcadas por controvérsias e dissonâncias. Cinco autores russos foram laureados durante a vigência do regime socialista no país e, destes, apenas um recebeu as "bençãos" (leia-se "autorização") das autoridades soviéticas para desfrutar do prestígio e do reconhecimento que o Prêmio Nobel costuma trazer: Mikhail Cholókov, ganhador em 1965, autor alinhado ao governo e, embora detentor de inegável valor artístico e visão narrativa, condescendente com certos horrores e expurgos praticados pelo regime comunista. Os outros quatro não tiveram a mesma sorte. Enquanto Ivan Bunin e Joseph Brodsky viviam no exílio quando foram premiados (1933 e 1987, respectivamente), Boris Pasternak simplesmente foi coagido a declinar da honraria (1956). Já Alexander Soljenítsin (1918-2008), embora tenha sido autorizado a aceitar o Nobel de 1970, foi impedido de viajar a Estocolmo para recebê-lo, sob a pena de não mais poder voltar à União Soviética. O autor, dissidente do governo comunista e denuncista das barbáries perpetradas contra aqueles que, como ele, discordaram dos rumos da política soviética, só pode receber seu Nobel em 1974, quando foi expulso do país, só retornando nos anos de 1990 após a queda do regime.
Na exposição de motivos da Academia Sueca para a atribuição do prêmio ao autor russo não há nenhuma menção explícita ao seu compromisso político enquanto crítico do poder soviético. Talvez para evitar atritos, como no caso de Pasternak, o comitê escreveu: "O Prêmio Nobel de Literatura de 1970 é atribuído ao escritor soviético Alexander Soljenítsin, pela força ética com a qual ele tem perseguido as indispensáveis tradições da literatura russa". Ao referirem-se à "força ética" que atravessa a obra deste escritor, os suecos faziam apenas uma oblíqua relação entre os romances e livros de memória do autor, sobrevivente dos campos de trabalhos forçados, e a delicada situação dos presos políticos em seu país.
Os livros de Soljenítsin, enquadrados naquilo que se convencionou chamar de "literatura de testemunho" (sobretudo na ampliação do conceito para além das narrativas específicas sobre o Holocausto), foram quase todos publicados no exterior e apenas circularam na União Soviética de forma clandestina. Uma exceção é o romance Um dia na vida de Ivan Deníssovich, obra que escolhi como leitura para esta postagem e publicada naquele país em 1962. Este talvez seja o livro mais conhecido do autor, quer pela temática da opressão stalinista sobre os indivíduos dissidentes, quer pela crueza com que os fatos são ali narrados.
Assemelhado a um relatório burocrático a respeito do cotiano em um dos muitos de campos de trabalhos forçados espalhados pela União Soviética durante o governo de Stalin, o texto é duro e, ao mesmo tempo, bastante detalhista em relação àquilo que nele ocorre, como lemos desde o parágrafo que abre o livro:
"Como habitualmente, às cinco da manha ouviu-se o toque da alvorada, dado pelos golpes de um martelo sobre um pedaço de trilho suspenso junto da barraca de comando. Mal os sons intermitentes haviam penetrado através das vidraças das janelas, nas quais a geada se acumulara numa espessura de quase dois centímetros, e já o ruído cessava quase imediatamente. Fazia frio no campo e os guardas não sentiam vontade de continuar a dar o toque de alvorada por muito tempo" (p. 5)
A figura central do romance é Ivan Denissóvitch Chukov, um ex-combatente que fora acusado de espionagem para os alemães na fase final da Segunda Guerra Mundial, nas proximidades da fronteira do Cazaquistão, onde aliás se localiza o campo da narrativa. Como previsto no famigerado Artigo 58 do Código Penal Soviético, ele fora para lá mandado para cumprir uma pena de dez anos que, no momento da narrativa, centrada em um dia, do amanhecer ao anoitecer, encontra-se quase em sua conclusão. É inevitável para o leitor que conheça a biografia de Soljenítsin associar Deníssovitch à figura do próprio escritor, uma vez que ao final da Segunda Guerra ele mesmo fora acusado de propaganda anti-stalinista e condenado à passar uma década em um campo de trabalhos, período após o qual, caso sobrevivesse, viveria o resto de seus dias em um exílio interno.
Sobreviver, aliás, é o motor que guia a sofrida existência da personagem. No dia em particular em que o acompanhamos através da leitura, curta e dolorosa, encontramo-no às voltas com situações limites, em que o minuto seguinte parece encerrar em si o fado de toda sua vida: acorda atrasado e vê-se obrigado a tergiversar com o guarda para escapar da punição na solitária; dirige-se à enfermaria na vã tentativa de conseguir uma dispensa e a consequente autorização para passar um dia de beatitude na cama, longe do trabalho (o que não acontece); olha expectante para o termômetro na esperança de que esse, ao marcar 41 graus negativos (o que também não acontece), dispensasse todos os prisioneiros do dia árduo de trabalho na neve; tenta consertar botas e luvas para lá de gastas para poder ter um dia de menos frio nas mãos e pés; esconde um pedaço de metal para utilizar como faca durante as refeições, temendo que seu "furto" seja descoberto na revista obrigatória ao final do dia de trabalho; negocia um punhado de tabaco com os afortunados que o recebem de casa (ele nada recebe, sequer notícias da esposa de quem se vê há tanto separado, um amor endurecido pela própria dureza da vida na prisão); negocia restos de sopa aguada com outros prisioneiros famintos como ele no refeitório; emprega o máximo de suas forças na construção de uma inútil parede de tijolos num galpão inservível em meio ao mar branco de neve para poder descansar alguns minutos a mais perto do fogo. Etc etc etc. Todos esses eventos do dia na vida de Ivan Deníssovitch são, na escrita áspera de Alexander Soljenítsin, um momento que encerra, no indivíduo, a dor de uma existência vivida sobre o signo da opressão mais absoluta, mais inexorável, onde o mínimo sinal de esperança é imediatamente seguido de sua antípoda, a crudeza do real:
"Os homens aproximaram-se no fogão, mas imediatamente Pavlo os obrigou a se afastarem. Depois deu a Kilgas madeira, a fim de que ele fizesse tabuleiros para transportar a argamassa até o pavimento superior. Pôs mais dois homens para carregar areia, outros para varrer a neve do andaime onde eram colocados os blocos e um para retirar a areia quente da chapa do fogão e lançá-lo na caixa da argamassa". (p. 72)
Esta áspera e mecânica (como é toda a narração impessoal em terceira pessoa que configura o romance) descrição de um rol de tarefas dadas por Pavlo, o prisioneiro encarregado da turma de trabalho nº 104 da qual Deníssovitch faz parte, vem precedida do aparentemente corriqueiro enunciado inicial "Os homens aproximaram-se do fogão". Num contexto livre, tratar-se-ia apenas das necessidades laborais a interromper o despretensioso momento de descanso de um grupo de operários junto ao fogo. No entanto, para prisioneiros de um campo cercado de neve e perdido em meio às vastidões desoladas da União Soviética, obrigados a um trabalho em tudo inútil e desgastante, no limite mesmo de suas forças e de sua sanidade, o vislumbre do calor do fogão e sua imediata retirada para as tarefas coletivas significa a interrupção de uma breve possibilidade de redenção, de alento ao sofrer de cada dia.
A sucessão de eventos, do dia à noite, pelos quais passam Deníssovitch e seus companheiros de prisão reiteram o tempo inteiro esse sofrimento. As razões que cada um carrega em si como "justificativas" para o encarceramento, todas centradas no descumprimento do Artigo 58, em especial Deníssovitch, já não pesam por sua absoluta insensatez: vale muito mais escapar trabalhando, i. e., realizar o duro trabalho na expectativa de cumprir o dia, para que outro venha a ser cumprido, todos em melancólica sucessão, com o fito de, caso sobrevivam, possam experimentar alguma espécie de recompensa, ou seja, possam viver longe dali. Já não importa serem culpados ou inocentes - todos o somos, de alguma maneira. Importa sobreviver à culpa ou à inocência.
Por esta razão, soa muito comovente o encerramento do romance, quando as luzes no campo são apagadas ao final do dia, quando Ivan Deníssovitch escapa incólume à última inspeção, quando contabiliza o pedaço de pão a mais economizado em face do que conseguiu surrupiar no refeitório, quando contempla a barrinha de metal que conseguiu enfim esconder, quando enfim, ainda que parcamente desanimalizado, faz as contas do dia que passou:
"Um dia sem uma nuvem carregada, sombrio. Quase um dia feliz.
Contava já no seu ativo três mil seiscentos e cinquenta e três dias como este. Desde o primeiro até ao último toque no pedaço de trilho.
Os três dias suplementares pertenciam a anos bissextos." (p. 196).
Ainda que esta conclusão remeta à repetição das mesmas vicissitudes no dia que se seguirá (a referência ao toque no metal do trilho que se ouvirá no dia de amanhã), não podemos deixar de lê-la como uma ode à sobrevivência. Se o romance de Soljenítsin tem como potência a denúncia de um regime bárbaro como o de Stalin - e uma das razões para a autorização do governo de Kruschev para a publicação do livro foi justamente a de denunciar o stalinismo -, salta dele também este laivo de redenção. Porque aquele que sobrevive conta. Leva a tocha adiante, testemunha que foi do horror e, no caso dos grandes escritores como foi Alexander Soljenítsin, portador do compromisso de passá-la aos da frente, àqueles que, como nós, tem algum poder - ainda que por meio da leitura de literatura - para impedir a repetição do horror.
Jorge Verly
Referência da leitura: SOLJENÍTSIN, Alexander. Um dia na vida de Ivan Deníssovitch. Trad. de H. Silva Letra. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.
Assemelhado a um relatório burocrático a respeito do cotiano em um dos muitos de campos de trabalhos forçados espalhados pela União Soviética durante o governo de Stalin, o texto é duro e, ao mesmo tempo, bastante detalhista em relação àquilo que nele ocorre, como lemos desde o parágrafo que abre o livro:
"Como habitualmente, às cinco da manha ouviu-se o toque da alvorada, dado pelos golpes de um martelo sobre um pedaço de trilho suspenso junto da barraca de comando. Mal os sons intermitentes haviam penetrado através das vidraças das janelas, nas quais a geada se acumulara numa espessura de quase dois centímetros, e já o ruído cessava quase imediatamente. Fazia frio no campo e os guardas não sentiam vontade de continuar a dar o toque de alvorada por muito tempo" (p. 5)
A figura central do romance é Ivan Denissóvitch Chukov, um ex-combatente que fora acusado de espionagem para os alemães na fase final da Segunda Guerra Mundial, nas proximidades da fronteira do Cazaquistão, onde aliás se localiza o campo da narrativa. Como previsto no famigerado Artigo 58 do Código Penal Soviético, ele fora para lá mandado para cumprir uma pena de dez anos que, no momento da narrativa, centrada em um dia, do amanhecer ao anoitecer, encontra-se quase em sua conclusão. É inevitável para o leitor que conheça a biografia de Soljenítsin associar Deníssovitch à figura do próprio escritor, uma vez que ao final da Segunda Guerra ele mesmo fora acusado de propaganda anti-stalinista e condenado à passar uma década em um campo de trabalhos, período após o qual, caso sobrevivesse, viveria o resto de seus dias em um exílio interno.
Sobreviver, aliás, é o motor que guia a sofrida existência da personagem. No dia em particular em que o acompanhamos através da leitura, curta e dolorosa, encontramo-no às voltas com situações limites, em que o minuto seguinte parece encerrar em si o fado de toda sua vida: acorda atrasado e vê-se obrigado a tergiversar com o guarda para escapar da punição na solitária; dirige-se à enfermaria na vã tentativa de conseguir uma dispensa e a consequente autorização para passar um dia de beatitude na cama, longe do trabalho (o que não acontece); olha expectante para o termômetro na esperança de que esse, ao marcar 41 graus negativos (o que também não acontece), dispensasse todos os prisioneiros do dia árduo de trabalho na neve; tenta consertar botas e luvas para lá de gastas para poder ter um dia de menos frio nas mãos e pés; esconde um pedaço de metal para utilizar como faca durante as refeições, temendo que seu "furto" seja descoberto na revista obrigatória ao final do dia de trabalho; negocia um punhado de tabaco com os afortunados que o recebem de casa (ele nada recebe, sequer notícias da esposa de quem se vê há tanto separado, um amor endurecido pela própria dureza da vida na prisão); negocia restos de sopa aguada com outros prisioneiros famintos como ele no refeitório; emprega o máximo de suas forças na construção de uma inútil parede de tijolos num galpão inservível em meio ao mar branco de neve para poder descansar alguns minutos a mais perto do fogo. Etc etc etc. Todos esses eventos do dia na vida de Ivan Deníssovitch são, na escrita áspera de Alexander Soljenítsin, um momento que encerra, no indivíduo, a dor de uma existência vivida sobre o signo da opressão mais absoluta, mais inexorável, onde o mínimo sinal de esperança é imediatamente seguido de sua antípoda, a crudeza do real:
"Os homens aproximaram-se no fogão, mas imediatamente Pavlo os obrigou a se afastarem. Depois deu a Kilgas madeira, a fim de que ele fizesse tabuleiros para transportar a argamassa até o pavimento superior. Pôs mais dois homens para carregar areia, outros para varrer a neve do andaime onde eram colocados os blocos e um para retirar a areia quente da chapa do fogão e lançá-lo na caixa da argamassa". (p. 72)
Esta áspera e mecânica (como é toda a narração impessoal em terceira pessoa que configura o romance) descrição de um rol de tarefas dadas por Pavlo, o prisioneiro encarregado da turma de trabalho nº 104 da qual Deníssovitch faz parte, vem precedida do aparentemente corriqueiro enunciado inicial "Os homens aproximaram-se do fogão". Num contexto livre, tratar-se-ia apenas das necessidades laborais a interromper o despretensioso momento de descanso de um grupo de operários junto ao fogo. No entanto, para prisioneiros de um campo cercado de neve e perdido em meio às vastidões desoladas da União Soviética, obrigados a um trabalho em tudo inútil e desgastante, no limite mesmo de suas forças e de sua sanidade, o vislumbre do calor do fogão e sua imediata retirada para as tarefas coletivas significa a interrupção de uma breve possibilidade de redenção, de alento ao sofrer de cada dia.
A sucessão de eventos, do dia à noite, pelos quais passam Deníssovitch e seus companheiros de prisão reiteram o tempo inteiro esse sofrimento. As razões que cada um carrega em si como "justificativas" para o encarceramento, todas centradas no descumprimento do Artigo 58, em especial Deníssovitch, já não pesam por sua absoluta insensatez: vale muito mais escapar trabalhando, i. e., realizar o duro trabalho na expectativa de cumprir o dia, para que outro venha a ser cumprido, todos em melancólica sucessão, com o fito de, caso sobrevivam, possam experimentar alguma espécie de recompensa, ou seja, possam viver longe dali. Já não importa serem culpados ou inocentes - todos o somos, de alguma maneira. Importa sobreviver à culpa ou à inocência.
Por esta razão, soa muito comovente o encerramento do romance, quando as luzes no campo são apagadas ao final do dia, quando Ivan Deníssovitch escapa incólume à última inspeção, quando contabiliza o pedaço de pão a mais economizado em face do que conseguiu surrupiar no refeitório, quando contempla a barrinha de metal que conseguiu enfim esconder, quando enfim, ainda que parcamente desanimalizado, faz as contas do dia que passou:
"Um dia sem uma nuvem carregada, sombrio. Quase um dia feliz.
Contava já no seu ativo três mil seiscentos e cinquenta e três dias como este. Desde o primeiro até ao último toque no pedaço de trilho.
Os três dias suplementares pertenciam a anos bissextos." (p. 196).
Ainda que esta conclusão remeta à repetição das mesmas vicissitudes no dia que se seguirá (a referência ao toque no metal do trilho que se ouvirá no dia de amanhã), não podemos deixar de lê-la como uma ode à sobrevivência. Se o romance de Soljenítsin tem como potência a denúncia de um regime bárbaro como o de Stalin - e uma das razões para a autorização do governo de Kruschev para a publicação do livro foi justamente a de denunciar o stalinismo -, salta dele também este laivo de redenção. Porque aquele que sobrevive conta. Leva a tocha adiante, testemunha que foi do horror e, no caso dos grandes escritores como foi Alexander Soljenítsin, portador do compromisso de passá-la aos da frente, àqueles que, como nós, tem algum poder - ainda que por meio da leitura de literatura - para impedir a repetição do horror.
Jorge Verly
Referência da leitura: SOLJENÍTSIN, Alexander. Um dia na vida de Ivan Deníssovitch. Trad. de H. Silva Letra. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.
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