sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Beethoven era 1/16 negro, de Nadine Gordimer


Olá,


Depois de Nelly Sachs em 1966, o Prêmio Nobel de Literatura só voltou a laurear outra mulher em 1991: Nadine Gordimer (1923-2014), autora sul-africana que, na palavras da Academia Sueca, "pela sua magnífica escrita épica trouxe - nas palavras de Alfred Nobel - um grande benefício para a humanidade". Ao saber da premiação, ela declarou aos jornalistas do mundo inteiro que correram a entrevistá-la que estava "realmente surpresa" por ter sido escolhida como a vencedora daquele ano, embora seu nome já figurasse desde a década de 1980 como potencial ganhadora. Gordimer, nascida em meio a uma família da minoria branca daquele país marcado pela divisão racial imposta pelo apartheid, fez de sua obra, que inclui romances, contos e ensaios, um libelo em prol da liberdade em seu país e que, sim, pode e deve ser compreendido como um monumento de traços epicistas em prol do benefício de cada ser humano, da África do Sul em particular e do conjunto da sociedade humano num plano mais geral.

Tendo vivido duas décadas após o Nobel, ela continuou produzindo regularmente após a concessão do prêmio, sempre legando ao público obras de exemplar qualidade narrativa. Deve-se destacar, por exemplo, que romances emblemáticos de sua produção, como A arma da casa (1998) e O engate (2001), apareceram após sua consagração mundial em face do maior prêmio de literatura do planeta. É também desse período a coletânea de contos Beethoven era 1/16 negro (2009), obra que selecionei para ler e resenhar nesta postagem. Escritas e publicadas em diferentes momentos dos anos 2000, as treze narrativas presentes no livro fornecem um panorama da escrita de Nadine Gordimer, seja por sua clareza e elegância no trato narrativo - o que faz dela um nome esteticamente indiscutível na história da atribuição do Nobel -, seja na abordagem de temáticas que, desde sempre marcaram a trajetória de sua escrita. Tratando das feridas ainda abertas e longe da cicatrização em um país marcado pela segregação racial como foi durante décadas a África de Sul, seus textos lidam com traumas, experiências autoficcionais, abordagens eruditas e filosóficas da realidade, jogos entre o grotesco e o sublime, sempre objetivando promover no leitor uma reflexão de alto nível sobre a empiria social, tanto pelo caminho da fabulação como pela reconstrução de episódios verídicos e tratados com especial deferência narrativa.




É o caso do conto que dá título ao livro. Tendo como personagem central um professor universitário de biologia, Frederick Morris (que o narrador confessa ser um nome falso, abrindo já um jogo entre identidade e representação), o conto começa com a reiteração da notícia dada pelo locutor de uma estação de rádio clássica de que Beethoven tinha 1/16 de sangue negro em suas veias. A informação intriga e interessa imediatamente o professor, um sujeito que, embora ativista da integração dos negros na sociedade sul-africana recém-liberta do apartheid, não se identifica com os brancos ainda portadores dos resquícios da segregação racial e tampouco é plenamente aceito pelos negros, de quem não partilha o dado identitário primordial, a cor. É então que, revisitando antigas fotografias de família, depara-se com um porta-retrato contendo a imagem de seu bisavô, um inglês que vivera por alguns anos na África, na virada do século XIX para o XX e que, como tantos outros, viera em busca de enriquecimento fácil na mineração que mobilizou a parte sul do continente. É aí que lhe surge a ideia salvífica: buscar nas raízes deste antepassado que, também como tantos outros, certamente manteve relações sexuais com negras e das quais poderiam ter nascidos filhos, parentes seus, garantindo sua parcela, ainda que pelas tortuosas linhas do parentesco, de sangue negro. Aproveitando o feriado de Páscoa e o recesso na universidade onde leciona, ele parte para a região de Kimberley, onde - de acordo com a busca que passa a empreender, fuçando na genealogia familiar - potencialmente estariam seus familiares de cor. Vagando por bairros que, mesmo após o fim da política oficial separatista, permanecem configurados como guetos negros, o professor faz perguntas, perde-se em conjecturas e acaba num bar onde faz amizade com beberrões, indagando se haveriam outros Morris por ali. É aí que sua busca empaca na impossibilidade da resposta, tão vasta a humanidade, tão vastos os laços sanguíneos possíveis, tão imensuráveis as relações marcadas pelo distanciamento naquele país maculado:

"(...) Um dezesseis avos. Um primo não sei quantas vezes distante da projeção de suas necessidades masculinas sobre o jovem macho garboso preservado sobre o vidro. Então o que foi que houve com a Luta (o genérico em caixa-alta de algo que nunca acaba, em que pesem as vitórias dos livros de história) pelo reconhecimento, começando comigo, de que nossa espécie, a espécie humana, não precisa de nenhum mérito percentual de pigmentos de sangue. Isso já fodeu com muita coisa no passado. Outrora havia negros, pobres-diabos, querendo ser brancos. Agora há um branco, pobre-diabo, querendo ser negro. O segredo é o mesmo." (p. 21)

A busca pela aceitação através do sangue negro em sua família esbarra na reiteração da história que, como lembra o narrador por várias vezes, nunca acaba. Numa alusão ao anjo de Walter Benjamin, é sempre a mesma história, o mesmo destroço. Ao acompanhar a impossível jornada através da genealogia perdida de Frederick Morris, é exatamente o que realiza o conto: repetir identidades, ainda que o olhar invertido agora introjete no branco o desejo (em tudo político) de ser preto.

Outros contos do livro revelam a enorme capacidade imaginativa de Nadine Gordimer e seu poder de transformar assuntos geralmente pertencentes ao plano ensaístico - pelo potencial grau de erudição necessários para se lidar com eles - em histórias divertidas e/ou tocantes, que fazem, sim, refletir, mas com um grau de prazer que todo grande texto tem (deve ter). Cito como exemplos "Sonhando com mortos" e "Gregor", ambos amparados na tática narrativa da autoficção. Colocando-se como personagem das duas histórias, a escritora traça comoventes (no caso do primeiro) e divertidos (no caso do segundo) painéis de suas relações com as ideias, as leituras e os intelectuais de seu tempo. Em "Gregor" a encontramos a lidar com uma situação insólita e que, desde o título, evoca o universo de Kafka, um autor a princípio distante do realismo histórico-político que marcou a produção de Gordimer. Narrado em primeira pessoa, ela nos conta que, após passar a noite lendo os Diários do autor de A metamorfose, tratou de ir ao escritório no dia seguinte para dar prosseguimento à labuta diária com as palavras e, ao ligar a máquina de escrever elétrica, deparou-se com uma barata que ali se encontrava encurralada, sem atinar em como tal coisa poderia ter acontecido sendo o aparelho hermeticamente fechado. Conectando o fato inexplicável à leitura da noite anterior (aliás, o conto é aberto com uma invectiva a respeito das relações entre nossas leituras e nossas vidas ordinárias), ela passa a viver uma kafkiana odisseia para libertar Gregor, a barata, da prisão na máquina de escrever, passando pela leitura dos manuais, consulta ao fabricante e auxílio de seu vizinho arquiteto e especialista em aparelhos modernos. Ao enfim abrirem o compartimento do visor da máquina, ambos descobrem que Gregor simplesmente desaparecera, incinerado nas entranhas da máquina, restando apenas um fino pó e "um segmento de uma perna preta, hieroglifo a ser decodificado" (p. 59). 

Já "Sonhando com mortos" tem o traço comovente do encontro no plano onírico com aqueles que partiram recentemente. Nadine, autora e personagem, relata um sonho em que, num restaurante chinês numa cidade indefinida e por ela poeticamente nomeada de "Algumlugarnenhum", aparecem as figuras de três importantes intelectuais recentemente falecidos à época (o conto é de 2005), os três seus amigos: o ensaísta árabe Edward Said, o jornalista inglês Anthony Sampson e a filósofa e escritora americana Susan Sontag. Notando nos três, que vão surgindo um a um no restaurante, características que ela apreciara enquanto vivos (a elegância dos trajes de Said, o exotismo da personalidade de Sampson, a risada aberta de Sontag) e que fazem com que ela se sinta acolhida entre por eles, a narradora vai poética e afetivamente descrevendo as conversações, diatribes, dissonâncias e convergências que os uniu enquanto vivos. 

Há ainda toques do grotesco, como em "Solitária", a narrativa em primeira pessoa de uma lombriga que, acolhida no corpo de seu hospedeiro e que, depois de adaptada a ele, é expulsa pela ingestão de vermífugos, não sem antes lembrar, com imenso rancor, que sua capacidade de botar ovos fará com que ela renasça outra vez; da solidão linguística em terra estrangeira, como lemos em "Língua Materna", em que uma alemã, ao casar-se com um sul-africano, vai morar na pátria do marido e, mesmo aprendendo o inglês, vê-se excluída da conversa numa festa em que as expressões idiomáticas e locais a separam do convívio e da compreensão das outras pessoas; da poeira que encobre segredos nas relações amorosas em "Allesverloren", em que uma historiadora recém-viúva, lembrando-se de uma confissão do marido sobre sua bissexualidade, vai através daquele que, antes dela, foi o homem de seu homem; da metaficção, como nos três contos da seção "Finais alternativos", histórias em que vemos a realidade se imiscuir na criação narrativa e, insidiosamente, mudar os rumos dos textos e de seus finais inicialmente pensados por seus autores. Estes e outros contos do livro dão profissão da fé narrativa de Nadine Gordimer, na medida em que se configuram como exemplos de uma prosa que preza não só pelo rigor, mas também pelo desejo de promover, pela riqueza das imagens e universos que constrói, momentos de reflexão igualmente ricos. 

É, enfim, uma mão repleta de áses o que as cartas narrativas de Nadine Gordimer nos oferecem. A inventividade de suas matizes narrativas surpreende e deleita o leitor em cada conto, cada página, cada linha de suas histórias. Sua sensibilidade é sempre voltada para o benefício (e nunca para o mero entretenimento) do outro. Poucas vezes li uma autora que soubesse tratar de temas tão elevados sem cair no pedante ou no hermético, no aborrecido ou no ilegível, sem que com isso sejam fáceis demais ou ofereçam ao leitor uma resposta definitiva, impedindo-os de pensar a partir daquilo que leram, de fabular sobre as muitas possibilidades de interpretação que há num texto literário significativo. Sua obra, nunca menos que irretocável, pode ser lida por qualquer um que saiba ler. E não é, pois, essa a essencial marca dos grandes autores? 

Jorge Verly

Referência da leitura: GORDIMER, Nadine. Beethoven era 1/16 negro. Trad. de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

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