domingo, 4 de agosto de 2019

Breve antologia, de Jaroslav Seifert


Olá,

No testamento de Alfred Nobel, uma das cláusulas estabelece que a justificativa para a atribuição dos prêmios que levam seu nome é a contribuição universal da obra, invento, descoberta ou atitude do laureado. Esta prerrogativa foi usada diversas vezes para explicar, por exemplo, a ausência de poetas considerados herméticos demais para serem lidos e compreendidos por um público amplo, cujo caso mais célebre é o do francês Paul Valéry, candidato tantas e tantas vezes e nunca agraciado com o Nobel. No plano oposto, poetas mais palatáveis e cultores de temáticas universais (sobretudo as amorosas) e amplas ganharam o prêmio, como Pablo Neruda ou Vicente Aleixandre. Jaroslav Seifert (1901-1986) situa-se num ente-lugar entre esses dois polos, a acessibilidade e o rigor formal. Escolhido como vencedor em 1984, este poeta tchecoeslovaco foi agraciado justamente por "sua poesia que, dotada de frescura e poder inventivo, oferece uma visão libertadora do indomável espírito e versatilidade do homem". Octogenário, Seifert não pode viajar a Estocolmo para receber seu prêmio, morrendo dois anos depois da honraria. Praticamente desconhecida fora dos circuitos leitores eslavos, o prêmio serviu de estímulo para que o público do mundo inteiro tivesses acesso a sua poesia lírica e inventiva, tal como asseverado pela Academia Sueca.
Infelizmente, não há livros integrais do autor publicados no Brasil. Para esta postagem, recorri a um livro encontrado quase que miraculosamente numa livraria online brasileira e que cobre, de maneira bastante sintética (infelizmente), a produção de Seifert: Breve antología, traduzido diretamente do tcheco por Clara Janes, a quem devo também o prefácio que auxilia o leitor não familiarizado com esta obra (o meu caso) a compreender influências, momentos e movimentos de uma poesia que, destaco já, tem o sabor de uma relevação. Como exercício e também como escolha, os poemas aqui citados foram por mim (mal) traduzidos desta edição espanhola, pelo que peço sinceras desculpas.


Janés destaca no referido prefácio que a poesia de Jaroslav Seifert pode ser dividida em três momentos distintos, embora percebamos ecos de uns nos outros: a do "poetismo", inspirada pelas lições dadaístas e pela poesia de Viteslav Nezcal e que recobre os anos 1920; a do lirismo clássico, bastante influenciada pelos acontecimentos históricos na Europa e em seu país, cobrindo os anos de 1930-50; e a fase metafísica, marcada por um maior rigor na concepção dos versos e na evocação das imagens, além de apresentar um amor incondicional à cidade de Praga, recorrendo os anos entre 1960-80.




Como exemplo da primeira fase, transcrevo o poema "Lâmpada":


Em redor da luz fria das lâmpadas
o bulício infatigável das asas agitadas

                E o senhor Edison
levantando os olhos do livro que lia
                sorriu
Ah, que quantidade de mariposas noturas
               salvou a vida!
(p. 110)


Temos aqui uma irônica visão do inventor da lâmpada, Thomas Edison, cercada de mariposas em torno daquela que uma noite iluminava seu momento de leitura. Alinhado com as vanguardas e com a cartilha do modernismo que, sobretudo, preconizava uma poesia eivada de sintetismo e de aproximação com o leitor através da reconstrução de imagens ("Em redor da luz fria das lâmpadas") e da recomposição de sensações quase tácteis ("o bulício infatigável das asas agitadas"), o poeta (re)cria um instante imaginado (mas absolutamente possível) em que este austero inventor, afeito à frieza dos cálculos e ao rigor de suas invenções - como são também rigorosos os poucos versos que a carpintaria de Seifert elege para compor seu poema -, tem uma epifania noturna, i. e., a ideia de que sua invenção mais famosa, a lâmpada, teve também uma função poética: salvar das mariposas que volteiam ao redor dela. A ironia, presente tanto no humor da cena como na eleição das palavras com as quais a constrói ("levantando os olhos do livro que lia / sorriu"), é o toque que confere vitalidade ao poema. Vemos neste texto curto, escrito em meados dos anos 1920, as marcas daquilo que chamou a atenção do júri sueco sessenta anos depois na atribuição do Nobel a Seifert: uma poderosa capacidade de inventar e também uma reconstrução das facetas humanas de cada ser, seja ele um celebrado inventor, seja ele o leitor do poema, ambos irmanados pela beleza que as "asas agitadas" do enxame de mariposa produz. 

E é nessa recomposição rigorosa da existência humana que intervém a História e sua(s) arbitrariedade(s), característica que, conforme vimos, marca a segunda fase da produção de Jaroslav Seifert. É o caso do poema "Sobre a ponte de Troia se encontrava ainda":

Sobre a ponte de Troia se encontrava ainda
              o exército de Schörner,
mas os alemães já estavam em fuga.
E os desejos amamentados em sangue
se estendiam da esperança à segurança.
E a segurança é um metal
               com o qual se pudem cunhar moedas
com o sorridente rosto da liberdade.

Maio pertencia em outros tempos aos amantes,
mas agora já não lhes pertence de todo.
                Os homens correm em busca das armas
escondidas debaixo das raízes das ervas
                que sabem calar.
Se houvessem tido mais tempo,
teriam derrubado até sua própria casa 
                 para fazer mais sólidas as barricadas
e em lugar de tapá-las com sacos de areia
                 teriam-no feito com seus próprios corpos.

Que pena que não ouvi
o que disse a enfermeirinha
                que corria com as bandagens!
Ainda se disparava!
                Tinha sangue no uniforme
e barro nas bochechas,
mas havia em seus olhos algo tão belo
que estremeci.
O primeiro soldado russo nos deixou nas mãos
uns punhados de tabaco negro.
Mas antes que pudesse encher meu cachimbo,
a guerra havia acabado.
(p. 41)

O mote do poema, como se percebe inicialmente - a clareza da poética de Seifert - é o final da Segunda Guerra Mundial, num espaço específico dos Bálcãs ("Sobre a ponte de Troia"), entre a fuga dos soldados alemães derrotados e a iminente chegada do exército soviético com o objetivo de libertar a região. Mas a despeito dos dêiticos e das marcas linguísticas que o poema apresenta ("ponte de Troia", "exército de Schörner", "primeiro soldado russo", "barricadas mais sólidas"), há também um movimento que indica a transição política pela qual a Tchecoslováquia passaria dali em diante com a implantação do socialismo no país. Isso pode ser percebido sub-repticiamente - o caráter inventivo da poética de Seifert - pela eleição de um espaço distante geograficamente para situar a "cena" retratada no poema e que indica a interdição em tratar do tema já sob o jugo do novo regime político que se instalou na pátria do poeta após o fim da guerra. Para tanto, Seifert se vale do recurso à ironia na construção dos quatro versos que encerram o poema:

"O primeiro soldado russo nos deixou nas mãos
uns punhados de tabaco negro.
Mas antes que pudesse encher meu cachimbo,
a guerra havia acabado."

O ato de encher e fumar o cachimbo, um desafogo em meio à carnificina de momentos antes, é interrompido justamente pelo final da guerra. Este ato irônico, pela potência de crítica inerente a esta figura de linguagem, pode ser lido como uma crítica ao próprio socialismo, i. e., à interdição da liberdade que o fim da guerra prenunciara, mas que o domínio soviético tampouco permitiria nos anos que se seguiram.

E é aí que a poesia de Jarsolav Seifert entre em sua última e mais vigorosa fase. Como se fugisse do real (sem contudo abandoná-lo),  os poemas escritos a partir dos anos 1960 até o final da vida do poeta se vestirão de uma capa metafísica e de um rigor ainda maior na constituição formal. Tomemos como exemplo "Na Vila Bertramka":

Se alguma vez existiu o paraíso,
                  não foi neste planeta.
A Terra gira ao redor de seu eixo
para que o o tempo
de todos os sofrimentos humanos
eternamente flua.
Contudo, o paraíso existiu. 
                 Sem dúvida, em alguma das estrelas.
Quem pode indicar com precisão
onde se encontram esses jardins celestiais?
Mas se existe no paraíso a beleza,
não podemos imaginá-la
a não ser recordando nosso mundo.
Os encantos das mulheres,
                  o perfume das flores,
a alegria das crianças
                  e as cores das asas das mariposas.

Se o céu está lá.
                  não pode haver debaixo dele lugar para a dor.
As pessoas lá não choram
e as lágrimas são mais escassas
que as pérolas em nossos rios.

Ali chegou.

E quando se pôs a tocar
e a trança se movia em suas costas,
deixaram de sussurrar até as conchas 
e aguçaram suas orelhinhas de porcelana.
Por que não pensaram em fechar a porta?
Por que não desengancharam os cavalos da carruagem?
Ele foi embora tão cedo!
                    E pelas portas da terra negra
voltou ao lugar de onde viera.

Atrás dele restou apenas uma pobre mecha de cabelo,
                    além de outra coisa
que faz a vida mais bela.
(p.59)

Uma nota da tradutora ao poema indica que a Vila Bertramka era o local preferido do compositor Wolfgang Amadeus Mozart em Praga, cidade que ele amava e à qual, assim como o próprio Seifert, dedicou algumas de suas mais belas composições. O poeta, aliás, escreveu um livro sobre a relação entre o compositor e sua amada cidade, Mozart em Praga (1985). O poema em tela retrata a busca por uma recomposição da beleza e que mobiliza cada um de seus versos. Assim é que a temática central, "Mas se existe no paraíso a beleza, / não podemos imaginá-la a não ser recordando o nosso mundo", carrega uma evocação do belo (a poesia, a música) através de sua mímese com o mundo, o real, o existente. Na impossibilidade de falar do real concreto (a Tchecoslováquia socialista), Seifert buscará na figura de Mozart um espaço para a construção do paraíso. As imagens e figurações que o poema vai montando ("os encantos das mulheres", "as cores das asas das mariposas", a impossibilidade de dor debaixo do céu daquela Praga anterior) conduzem à cena em que o compositor toca uma de suas obras e tudo ao redor dele se paralisa ante a beleza do que se vê-ouve: as conchas, os cavalos, as pessoas e as portas estão como que congelados, apreciando tão grande beleza. O poema lamenta a partida repentina (e dupla: de Praga e da vida) de Mozart, lembrando que ele deixou "pouco", uma pequena mecha de cabelos e "outra coisa / que faz a vida mais bela", i. e., sua música e toda a carga de encanto que ela traz em si e que este poema tão bem foi capaz de representar.

Os exemplos acima, espero, convidam a uma leitura mais ampla da obra deste poeta que, caso o Nobel não revelasse, ficaria restrito a um circuito pequeno de leitores. Eis aí a função, como já apontado em outras postagens deste blog, do prêmio: relevar autores, obras, temáticas e contextos de lugares distintos, pequenos e por vezes ignorados, mas que tem o toque da universalidade e contribuem para o benefício da humanidade, como desejou Alfred Nobel em seu testamento. Algo que Jaroslav Seifert certamente proporcionou com seus belos, fortes, inesquecíveis poemas.

Jorge Verly


Referência da leitura: SEIFERT, Jaroslav. Breve antología. Trad. de Clara Janés. Madri: Hiperión, 1984. 


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