quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela



Olá,


Em 1989, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido ao escritor espanhol Camilo José Cela (1916-2002) em razão de sua "prosa rica e intensa, que com compaixão contida forma uma visão desafiadora da vulnerabilidade humana". A escolha de Cela foi bastante criticada à época, menos por sua literatura, praticamente uma unanimidade crítica, e mais em razão de sua sua atuação política: o escritor lutou ao lado dos franquistas na Guerra Civil Espanhola (1936-39), apoiou a ditadura do General Franco e foi, inclusive, informante dos serviços de inteligência e censor oficial de obras literárias. Num contexto em que pouquíssimos escritores simpáticos às ditaduras foram agraciados com o Nobel (lembremos o caso do argentino Jorge Luis Borges, um dos maiores narradores do século XX, eterno candidato ao prêmio, mas que se viu distante dele por sua simpatia pública ao governo do chileno Augusto Pinochet), Cela configura-se como uma exceção. É um exemplo de uma literatura que, por sua criatividade, força, potência e argúcia narrativas, superou a mesquinhez das visões políticas do homem que a escreveu. Tanto é que o autor só ganhou o Prêmio Cervantes em 1994, depois da concessão do Nobel, um exemplo da nem sempre fácil digestão de sua figura por parte do mundo literário espanhol do período pós-franquista.

Para esta postagem, escolhi, dentre as muitas obras de Camilo José Cela disponíveis no Brasil, o romance A família de Pascual Duarte (1942). Ele é um considerado, desde sempre, um exemplo de estreia literária irretocável. Sendo simplesmente a primeira obra publicada pelo autor, ela configura-se como produto de uma criação madura e refinada, de uma carpintaria literária esmerada e com uma potência reflexiva sobre o absurdo da vida apresentadas por poucas narrativas do século XX. Mais espantoso ainda é o fato de que seu autor tinha apenas vinte e seis anos quando de sua publicação. Considerada como renovadora da prosa em espanhol, seja pelo impacto formal, seja pela crueza da história contada, A família de Pascual Duarte foi um sucesso quase imediato, ganhando incontáveis edições ao longo da vida de Cela e sendo uma de suas obras mais traduzidas ao longo de carreira literária.

Tendo como cenário uma aldeia miserável da província de Badajoz, situada "a umas duas léguas de Almendralejo" (p. 15), o romance tem como figura central Pascual Duarte, um sujeito pouco afeito ao trabalho e que, conforme vamos sabendo à medida em que a história é contada, encontra-se no cárcere pelo mais terrível dos crimes: matricídio. O leitor desavisado que chegou até aqui pode ter se aborrecido com esta revelação sobre o enredo, mas é inevitável (diria impossível) resenhar/analisar a narrativa sem, na linguagem das séries televisivas tão em voga nos dias de hoje, "dar esse spoiler". Embora o assassinato da mãe (não nomeada ao longo do romance) seja o ponto culminante do cru relato, ele é antecipado e entrevisto durante várias passagens das pouco mais de cento e quarenta páginas da obra. 



Estruturado como um manuscrito endereçado a um dos poderosos chefes políticos do povoado e escrito pelo próprio Pascual em primeira pessoa durante o interregno entre seu processo e a execução da pena capital à qual foi condenado, o romance tem como marcas formais o uso de uma linguagem crua e seca, conforme vimos, mas nem por isso menos profunda. Entremeada por ricas descrições das paisagens características da região ou por reflexões sobre o absurdo da vida dos camponeses esquecidos pelos poderes políticos na Espanha no final século XIX (período em que, presumivelmente, a história se passa), dos quais Pascual Duarte é exemplo e centro, o romance revela a escrita de uma personagem ricamente construída e sempre pronta a filtrar sua trágica existência pelas lentes áridas com as quais enxerga o mundo. 

Pascual Duarte é um homem terrível. Desde muito cedo se percebe distante do afeto dos pais, descritos de maneira cruel e sem isenções, e fadado a um destino de tragédias e crimes. Desligado das pessoas, arisco às possibilidades de envolvimento sentimental e propenso ao crime, vemos nas primeiras páginas do livro seu "afeto" a uma pedra e a forma cruel com a qual reage ao "julgamento" de uma das pouquíssimas criaturas que lhe devotaram algum amor ao longo da vida, a cadela Chispa, sua fiel companheira durante os longos períodos em que vagava pelos campos a caçar e a evitar o convívio humano:

     "Ao voltar, a cadela tomava a dianteira e me esperava sempre junto à encruzilhada; ali havia uma pedra redonda e achatada como uma cadeira baixa, da qual guardo tão grata lembrança como de qualquer pessoa; melhor, certamente, da que guardo de muitas delas. Era larga e um tanto afundada e quando me sentava o traseiro (com o perdão da palavra) escorregava um pouco e ficava tão bem acomodado que sentia ter de deixá-la; passava longos momento sentado sobre a pedra da encruzilhada, assobiando, com a escopeta entre as pernas, olhando o que havia para olhar, fumando meus cigarros. (...) A cadela continuava a olhar-me fixamente, como se nunca me houvesse visto, como se fosse culpar-me de um momento para o outro, e seu olhar me aquecia o sangue das veias de tal forma que se via chegar o momento em que teria de entregar-me; fazia calor, um calor espantoso, e meus olhos se reviravam dominados pelo olhar, como um cravo, do animal.
     Peguei a escopeta e atirei; voltei a carregar e voltei a atirar. A cadela tinha um sangue escuro e pegajoso que se estendia pouco a pouco sobre a terra" (p. 21-22)


O leitor brasileiro não pode deixar de fazer uma analogia entre este episódio narrado por Duarte e o relato da morte da cachorra Baleia, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos, igualmente pelas mãos de seu dono, Fabiano. Além disso, a prosa seca e a paisagem árida aproximam formal e tematicamente os dois romances. No entanto, as duas cenas se distanciam justamente pela "natureza" das ações dos dois assassinos: enquanto é a compaixão e o desejo de livrar sua cadela da fome que levam Fabiano ao tiro de misericórdia em Baleia, a motivação para o assassinato (e que outra coisa seria?) de Chispa por Pascual Duarte é seu medo do julgamento. Em várias passagens da narrativa, vemo-lo fugir dos olhos julgadores do outro: o do pai, bêbado e fanfarão; da irmã Rosário, mulher de vida devassa, mas que lhe devota algum afeto; da primeira mulher, Lola, inicialmente devotada mas depois adúltera; e, sobretudo, da mãe, em quem o jovem enxerga o olho arquitípico da maldição, uma vez que, a despeito de sua frieza e desprezo pelo filho, é a responsável por tê-lo trazido a este mundo absurdo e vazio de sentido.

Um dos poucos momentos de felicidade pelos quais atravessa Duarte em sua malfadada existência é justamente seu casamento com Lola. Moça da aldeia, ela se aproxima da família de Pascual logo após uma das tragédias que se abatem sobre ela: a morte de Mário, irmão mais moço do narrador e que nasce, após um parto difícil, vítima de múltiplas deficiências e que lhe impedem de andar, falar e de expressar algum sentimento em relação à terra e àqueles que o rodeiam, os seus, sua família, a não ser por um olhar baço "com seus olhos pretinhos, os consolos!" (p. 41). Aliás, o parto coincide com a morte do pai, vítima de hidrofobia e encerrado num quarto feito um animal, não sem antes ter-lhe sido revelado pela mãe que o novo filho era, na verdade, fruto de uma infidelidade com don Manuel, um proprietário de terras local. Mário morre antes de completar dez anos, afogado numa pipa de azeite. A mãe pouco ou nada sofre, sendo Pascual e Rosário os únicos a chorarem aquela morte. E é após o velório que Lola, aproximando-se de Pascual, pergunta-lhe: 

"- És como teu irmão?
  - Eu?
  - Sim, tu."
(p. 48)

Esse diálogo enfurece Pascual e ele a estupra ("Eu a mordi até sangrar, até ficar rendida e dócil como uma égua nova", p. 49), engravida e faz dela sua esposa, sempre na linha da total satisfação de seus caprichos. O casamento, inicialmente feliz e permeado por momentos de afeto, como na lua-de-mel passada em Mérida, é apenas um prelúdio de uma nova jornada de Pascual ao inferno: ao voltarem da viagem, a mulher cai da égua enquanto o marido vai à taverna beber com os amigos e perde o bebê. Irado, o desafortunado camponês assassina a égua a golpes de navalha. A depressão se apossa dele e os presságios sobre sua má sorte se avolumam ("Sempre tive um olho bom para a desgraça", p. 77), mas logo Lola engravida outra vez. O fato deste novo filho ter nascido com saúde e ser belo como os pais não tira deles o sentimento de que sua vida será breve, o que de fato se confirma onze meses depois, com a morte do menino por uma febre maligna. 

É aí que o relato se adensa e se tinge de contornos ainda mais trágicos, como se Pascual Duarte estivesse a preparar o leitor de seu manuscrito para a descrição do crime capital que está prestes perpetuar. Primeiro, ele resolve abandonar a aldeia e a família e parte para Madri e, depois, La Coruña, onde intenta emigrar para a América. Permanece na região costeira espanhola por dois anos em subempregos, vivendo em pensões e casas de favor. Decide então voltar e encontra Lola grávida de outro homem. Indagada sobre quem seria o pai da criança e presa de imensa angústia, ela acaba morrendo aos pés de Pascual, não sem revelar o nome de Estirão, ex-noivo de Rosário, como sendo pai do filho que morre com ela. Cego de ódio, Duarte caça e mata Estirão com um pisão de bota sobre o peito e passa três anos preso. Por bom comportamento e aparentando regeneração, ele é solto e retorna à casa da família. Enquanto a mãe lhe é fria, Rosário se alegra com a soltura do irmão e, tempos depois, apresenta-lhe Esperanza, com quem Pascual logo se casa. Mas nem este casamento arrefece seu ódio que, tantos e tantos anos latejando, acaba desaguando em sua mãe, como um agravo ao próprio ato de ter nascido ("Nada fede tanto nem tão mal como a lepra que o mal passado deixa na consciência, como a dor de não sair do mal apodrece-nos este ossário de esperanças mortas, logo depois de nascer", p. 132). Duarte espera e maquina, até que uma noite aproxima-se do quarto da mãe e, com uma faca, atira-se sobre ela que, após uma terrível luta, é morta pelo filho: 

     "Foi quando pude cravar-lhe a lâmina na garganta...
     O sangue escorria sem freios e me bateu no rosto. Estava quente como um ventre e sabia ao sangue dos cordeiros.
   Soltei-a e saí fugindo. Tropecei em minha mulher na saída; o candeeiro se apagou. Peguei o campo e corri, corri sem descanso, durante horas inteiras. O campo estava fresco e uma sensação de alívio me correu pelas veias.
     Podia respirar..."
(p. 138)

A narrativa de Pascual Duarte termina neste ponto. As páginas finais do romance consistem num breve relato daquele (anônimo) que transcreveu o manuscrito e lhe deu a feição de livro e duas cartas, uma do capelão e outra de um soldado da prisão, que relatam ter sido bela a caminhada do infeliz narrador ao paredão, altaneira e repleta de arrependimento, mas que, diante do pelotão de fuzilamento, Pascual esperneou e gritou, pois tinham medo de morrer.

Tenho consciência de, nos parágrafos acima, ter feito mais um resumo que uma análise do romance de Camilo José Cela. Intencionalmente. Esclareço: foi mister meu tentar transmitir, na reiteração dos fatos lidos no livro, a crueza dessa vida destinada ao trágio e à morte desde o princípio. Tudo o que Pascual Duarte fez e realizou na vida tem o toque da dor, do infortúnio, da maldição e da morte. Tanto que as palavras finais de seu terrível relato ("Podia respirar") podem ser compreendidas literalmente, como se uma bolha de ar se desprendesse de um corpo que, até então, o aprisionasse num círculo infindo de tragédias. Penso que - na evocação dos motivos encontrados pela Academia Sueca para atribuir a Cela o Nobel - seja "a desafiadora vulnerabilidade humana" a principal personagem de A família de Pascual Duarte: é ela o motor de todos os acontecimentos que o livro encerra. Tanto que, ao morrer, Pascual grita, como gritamos também nós, ante a estupidez e o nonsense do mundo que rodeia cada ser humano.

Jorge Verly

Referência da leitura: CELA, Camilo José. Trad. de Janer Cristaldo. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 

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