sábado, 7 de setembro de 2019

As rãs, de Mo Yan



Olá,


O primeiro Prêmio Nobel de Literatura oficialmente concedido à China foi dado ao escritor Mo Yan em 2012. Digo oficialmente porque antes dele Gao Xingjian recebeu o laurel em 2000, porém representando a França, para onde emigrara nos anos 1990 por motivos políticos. A escolha de Yan foi amparada em sua escrita "que, com realismo alucinatório, funde contos populares, história e contemporaneidade", nas palavras da Academia Sueca. Nascido em 1955 na província de Shandong numa família camponesa, o autor começou a publicar nos anos 1980. Em chinês, o nome de Mo Yan significa "não fale". O escritor sempre justificou a escolha desse pseudônimo - aliás, é muito comum entre os chineses escolhê-los - como um conselho dos pais para evitar emitir opiniões pessoais num regime altamente persecutório como é o de seu país. 

Quando o nome de Yan foi anunciado como o vencedor, muitos escritores, entre eles alguns ex-laureados, como Herta Müller, criticaram duramente a escolha, acusando o autor de ser conivente com a ditadura chinesa, usando como exemplo o seu silêncio no caso da prisão no Prêmio Nobel da Paz, Li Xiabo, e da perseguição ao multi-artista Ai Weiwei. O que é veemente desmentido por sua obra: a literatura de Mo Yan é representativa de uma China obrigada a conviver com o peso da tradição e as novas demandas da modernidade, tudo visto pelo diapasão do regime comunista, nem sempre de uma forma condescendente como apontam seus críticos. Um exemplo é o romance Peito grande, ancas largas (1995), uma desafiadora reflexão sobre o papel da mulher na sociedade chinesa tendo como amparo não a luta de classes consagrada como norma narrativa do Partido Comunista, mas sim a visão particular da condição feminina, fato que desagradou as autoridades do país, levando a obra a ser proibida e retirada de circulação. Mo Yan foi, inclusive, sentenciado a escrever e divulgar uma autocrítica sobre o livro. 

Há apenas dois livros do autor disponíveis no Brasil. Mudança (2007) é um volume de memórias publicado pela extinta Cosac & Naify. Já As rãs (2009) é um romance de contornos épicos sobre a política do filho único adotada pelo governo chinês a partir da década de 1960. Foi a obra que elegi para ler e resenhar, em parte por ser a mais acessível e em parte por ser um exemplo bem acabado da "prosa alucinada" tão cara ao autor chinês. 

Narrada em primeira pessoa por Girino (ou Corre Corre, como é chamado pelos amigos e parentes), a história começa como um carta escrita por ele a um certo professor Sugitani (que, como descobriremos ao longo do romance, tem relação direta com a história de sua família), na qual informa o desejo de escrever uma peça sobre sua tia, Wan Coração, a primeira obstetra da província da Gaomi, onde está localizada sua aldeia. Segundo Girino/Corre Corre, ela se formou em medicina nas condições precárias que envolviam o exercício desta profissão na China recém convertida ao comunismo e, entre 1953 e 2001, período em que esteve em atividade, trouxe ao mundo mais de dez mil crianças. Já no início do livro, o estilo picaresco adotado pelo narrador fica patente, seja pelas voltas e reviravoltas frenéticas que ditam o ritmo dos acontecimentos que povoam a história - sempre como um pitada de realismo mágico, razão pela qual são frequentes as comparações entre Mo Yan e Gabriel Garcia Márquez -, seja pelo olhar irônico e divertido com que aquela China perdida entre a tradição secular e os novos paradigmas de uma sociedade que se queria fazer uniformizada. Cito como exemplo a forma divertida com que Girino explica a tradição que têm os aldeães em batizar seus filhos com nomes que evocam as partes do corpo (Fígado, Vesícula, Bochecha, Coração) de acordo com as características físicas e/ou comportamentais apresentadas pelas crianças e por seus pais. Corre Corre, explica ele, é um nome que advém de suas enormes e finas pernas de atleta e de sua habilidade se esgueirar rapidamente em meio à multidão.




Um dos episódios mais impactantes da história é a cena em que as crianças da escola primária da aldeia comem carvão para driblar a fome, quase uma onipresença na sociedade chinesa daquele período inicial do comunismo, os anos de 1950, década de nascimento tanto do narrador, como do próprio Mo Yan. Encantados diante de um carregamento do produto que chega para abastecer a cantina da escola - usada não para alimentar as crianças, mas sim os dirigentes do Partido Comunista local e os funcionários públicos, os únicos que tinham direito a comer o "grão comercial", i. e., comida de graça -, as crianças se postam diante dele, absolutamente mesmerizadas:

"Ficamos debruçados sobre o monte de carvão, parecendo geólogos amadores diante de uma nova descoberta; farejávamos como cães à procura de comida em meio ao entulho. Antes de continuar, é preciso agradecer a Chen Nariz e também a Wang Vesícula. Foi Chen quem primeiro pegou um pedaço de carvão, colocou-o diante do nariz e cheirou. Franziu a testa como quem reflete sobre alguma questão profunda. Tinha um nariz enorme, do qual adorávamos caçoar. Depois de refletir por um momento, ele arremessou contra uma pedra maior o carvão que tinha na mão. O carvão se partiu com um ruído e exalou aquele cheiro. Catou uma lasquinha, seguido de Wang Vesícula, provou com a ponta da língua, virou os olhos e voltou-se para nós. Vesícula fez o mesmo: lambeu o carvão e olhou para nós. Depois se entreolharam, sorrindo, com muito cuidado e, em fortuita sincronia, mordiscaram um pedacinho, mastigaram, depois morderam mais um pedaço e mastigaram com força. Seus rostos transbordavam de excitação". (p. 15)

Este trecho diz muito da maestria narrativa que transparece na narrativa de Mo Yan. Tratando de um tema bastante candente à história chinesa que é a grave crise de fome que acometeu o país nos anos 1950 - ainda durante o processo de reorganização econômica do governo de Mao Tsé Tung - com cores irônicas, o autor exerce uma poderosa crítica àquele mesmo sistema, na contramão das acusações de parcialidade e de silenciamento que sua obra sempre sofreu.

Não há dúvidas de que a grande personagem do romance é a tia do narrador. Girino/Corre Corre faz questão de situá-la nos momentos-chave da história chinesa, contrapondo sua inabalável fé no comunismo e nos programas de natalidade por ele impostos à vilania do regime que ela, por conta dessa visão aferrada a seus princípios, é incapaz de reconhecer. É assim, por exemplo, que em seu primeiro parto - justamente o de Chen Nariz, amigo do narrador -, vamos encontrá-la em confronto com uma das "vovós bruxas" (como eram chamadas as antigas parteiras da China Imperial) trepada sobre a barriga da agonizante parturiente. Wan Coração a expulsa à pontapés e socos, numa clara mensagem de que na Nova China não há mais lugar para velhas técnicas e ultrapassadas crendices. Noutro momento, ele nos conta de sua desafortunada ligação com Wan Xiaoti, seu noivo e que, sendo piloto da Força Aérea Chinesa, acaba desertando e fugindo para Taiwan, com avião e tudo, trazendo vergonha e desgraça à reputação de sua tia. No entanto, em lugar de sofrer de amor, ela não exita em enfrentar uma colega obstetra do posto de saúde da aldeia que lhe acusara conivência com o noivo e simpatia ao ocidente e, depois de surrá-la, corta os pulsos e escreve com o próprio sangue "Odeio Wang Xiaoti! Sou do Partido enquanto viver! Serei do Partido depois de morrer!" (p. 78). 

Pouco depois, vamos encontrá-la mergulhada de corpo e de alma na defesa das recentes políticas de natalidade do governo do presidente Mao, a despeito da desconfiança dos mais velhos e da própria família. Adiante, na Revolução Cultural, a obstetra é humilhada publicamente, como era comum a todos os funcionários públicos mais velhos, considerados parasitas e inimigos do comunismo:

"A guarda vermelha deu um salto e agarrou minha tia pelos cabelos, puxava-a para baixo com força. Minha tia forçou a cabeça para cima e ficou num cabo de guerra com a moça. 'Tia, abaixe a cabeça senão ela vai arrancar seu cabelo junto com o couro! Essa gorda tem pelo menos cinquenta quilos e já está pendurada no seu pescoço, agarrada ao seu cabelo'. Minha tia sacudiu a cabeça bruscamente, como um cavalo bravo que balança a crina - a moça caiu no chão com duas mechas de cabelo nas mãos. O sangue escorria pela cabeça de minha tia - ainda hoje dá para ver duas cicatrizes do tamanho de uma moeda - até a testa e as orelhas. Mas seu corpo se manteve ereto. A plateia estava em total silêncio, um burro que puxava uma carroça esticou o pescoço e zurrou bem alto." (p. 113)


Wan Coração não se curva, não se dobra. Porque sabe que será útil depois. Como de fato ocorre: reabilitada, ela volta a praticar a medicina e, já na vigência da rígida política do filho único, é ferrenha defensora da medida e pratica, sem dó, abortos nas mulheres da região que se recusam a cumprir a norma do governo. É daí que vem, aliás, a ironia presente no título do romance: na língua chinesa, rã ("wa") significa tanto rã quanto criança. São muitas as rãs que não chegam a vingar por conta da atuação de Wan Coração. Não que ela tenha consciência de sua maldade. Como dito, a visão estreita da médica e sua visão utilitarista das demandas do Partido a isentam de culpa. E mais: contribuem para a crítica que a narrativa de Mo Yan, pela voz/escrita de Girino - que termina o livro escrevendo, de fato, a peça sobre sua tia, um livro dentro do livro - pretende empreender. 

As rãs é uma narrativa epicista na medida em que a atravessa a história recente da China, história que tem implicações diretas na vida e nas ações das dezenas que personagens que povoam o livro. É também um livro picaresco porque o surpreendente e o heroico são contados como sendo dados naturais da vida, sucedem como tem de suceder todas as coisas. Mas, para além dessas camadas meio óbvias de leitura da obra, está a poderosa visão não alinhada de Mo Yan. Mesmo pertencendo ao Sindicado Chinês de Escritores, mesmo tendo sido autorizado a receber o Nobel sem sanções ou reprimendas do governo, não podemos deixar de considerá-lo um escritor independente. Pois, como ele mesmo apontou numa entrevista, há os que escolhem as ruas como lugar de protesto e há aqueles que prefiram a solidão de um quarto ou a solidão da escrita. É através dela que Mo Yan vem construindo uma China paralela. Sua literatura revela um país alucinado e frenético e também, para quem sabe ler através dessa loucura e desse frenesi, um país também perverso e opressor. 

Jorge Verly 

Referência da leitura: YAN, Mo. As rãs. Trad. de Amilton Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 

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