domingo, 15 de setembro de 2019

O urso polar, de Henrik Pontoppidan




Olá,


As duas guerras mundiais provocaram, além de estragos físicos e materiais, grandes crises diplomáticas entre as nações envolvidas, direta ou indiretamente, nos conflitos. No caso dos Prêmios Nobel de Literatura, a honraria deixou de ser atribuída entre os anos de 1940-43, período crucial da Segunda Guerra. Já no interstício 1914-18, período da Primeira, o prêmio foi atribuído a escritores de nações neutras (a exceção foi 1915, quando o laureado foi o francês Romain Rolland), com o intuito de não melindrar os países contendores ou sugerir algum pendor a um dos lados combatentes. Foi assim que em 1917 a Academia Sueca optou por premiar uma dupla de autores dinamarqueses: o poeta Karl Gjellerup e o romancista Henrik Pontoppidan (1857-1943), escolhido "por suas descrições autênticas da vida de hoje na Dinamarca". 

Considerado (injustamente) datado e meramente uma curiosidade literária nos dias de hoje - mesmo na própria Dinamarca -, há poucos leitores e traduções da obra de Pontoppidan pelo mundo afora. Algum interesse sobre seus romances foi despertado em 2018 com a adaptação cinematográfica (com a chancela da gigante do streaming Netflix) de um de seus mais conhecidos romances, Lykke-Per (1904) e que aqui se chamou Um homem de sorte. No Brasil, encontramos apenas um volume de novelas publicado pela Delta em 1963 - em primorosa tradução do romancista pernambucano Osman Lins -, do qual escolhi para ler "O urso polar", publicada em 1887. 

A novela pode ser considera um bildungsroman às avessas, seja pela sua forma curta (são pouco mais de quarenta páginas), seja pela abordagem irônica da formação de um sujeito, temática tão cara aos romances de Goethe, percursor do gênero, e que é subvertida pela escrita por vezes divertida de Pontoppidan. A narrativa acompanha a trajetória do pastor luterano Thorkild Müller, natural da Jutlândia e que, no início da história, encontramos já velho e responsável pelas paróquias de Soeby e Sovard, nos confins da península. A descrição inicial que o narrador faz da figura de Thorkild é antológica ao compor a persona descomunal, bonachona e grotesca do pastor:

"Imagine o leitor uma grande face rubicunda, com uma barba hirsuta que nem sempre constitui um espetáculo atraente, considerando que esconde, entre seus pelos rudes, pedacinhos de couve, fragmentos de pão ou fios de tabaco marrom claro. Ponha em cima disso um crânio reluzente, cheio de bossas, com a nuca guarnecida por uma franja de cabelos crespos que pendem sobre a gole do sobretudo; acrescente um par de pequenas orelhas espessas e peludas, sobrancelhas algodoadas, um enorme nariz ligeiramente violáceo entre dois olhos azul-claros, que miram vagamente as coisas. Ponha enfim nesse rosto uma sucessão ininterrupta de jogos fisionômicos inconscientes - um frequente sorriso causado por uma evocação, um franzir de espessas sobrancelhas, que de súbito se movem, para cima e para baixo -, tudo isso acompanhado de movimentos de braços ou dos ombros, e terá então a imagem daquele que era o espantalho de toda a região, o terror de seus colegas, um motivo de indignação para os professores e o desespero do bispo". (p. 87)

Essa pequena amostra revela o tom inicial da narrativa, que penderá para o dado humorístico e mesmo caricatural. Além da descrição grotesca, seus hábitos excêntricos (em especial a desordem da casa paroquial que habita) e a misantropia característica de sua pessoa indicam ao leitor que o Urso Polar ao qual se refere o narrador e que titula a novela não é ninguém menos que o próprio pastor. Neste primeiro momento também ficamos sabendo que Thorkild divide a casa com Rusggard, reverendo auxiliar e aspirante à bispo, figura que será chave (mas de um modo negativo) em seu processo de formação, como veremos.

É então que a estrutura tradicional do romance de formação, ao qual aludi antes, é retomada, mas de forma enviesada, revelando a "deformação" do religioso. A narrativa retrocede à infância e adolescência de Müller, onde o encontramos na condição de órfão de pai e de máximo desgosto da mãe, por sua figura grotesca já enquanto bebê: ao lançar certo dia um olhar furtivo ao filho, ela suspira e ora por ele, "cujo jugo Nosso Senhor jogou sobre seus ombros". Sua família é pobre e como maneira de vencer a pobreza,  Thorkild, já jovem, decide estudar teologia. Contudo, é incapaz de decorar os ritos e de aprender as matérias, causando riso nos colegas de seminário e sendo frequentemente alvo de pilhérias por parte deles. Aos trancos e barrancos, ele vai avançando no curso e, como parte de uma tradição da Igreja Luterana na Dinamarca, vê-se obrigado a cumprir um "estágio" pastoral na Groenlândia. Na última hora, Thorkild bola um estratagema para escapar deste fado e que consiste em ficar mudo durante os exames orais. Mas até nisso ele falha: incapaz de conter a necessidade de falar, é aprovado, ordenado e "enviado à paróquia mais setentrional daquele vasto mundo" (p. 98)






E é na gélida, inóspita, desolada (mas de uma beleza incrível) Groenlândia que sua formação começa de fato a ocorrer. Deve-se destacar, dentre as qualidades estético-narrativas da prosa de Pontoppidan, as impressionantes descrições do ermo fiorde em que o agora pastor passa a viver, desde a chegada do inverno, época do ano em que os moradores retornam para, enfurnados em pequenas cavernas protegidas do frio, passarem em comunidade esta época do ano, até a o milagre que representa o reaparecimento do sol (e o degelo por ele provocado), trazendo consigo vida e alento àquela vastidão branca. Retornando à temática do romance de formação e abandonando, de certo modo, o tom irônico-humorístico inicial, encontramos Thorkild tomado pela dúvida entre a fé a que foi obrigado a abraçar (o narrador descreve sua absoluta incapacidade de se concentrar nas leituras sacras e nos textos clássicos de teologia, essenciais para o exercício do pastorado) e a vida mundana, mesmo a escassa vida em torno do fiorde. Contribui bastante para a decisão por esta última a aparição do velho Ephrain e de sua bela filha Rebecca, no último dia de migração da pequena comunidade em direção das montanhas após o prenúncio do verão. A despeito dos nomes bíblicos, os dois possibilitam a ele uma fuga das obrigações religiosas e um mergulho na cultura e na vida selvagem locais. Ele decide acompanhá-los e, envolvido amorosa e sexualmente por Rebecca, o pastor passa o verão em caçadas às renas e focas, come as exóticas comidas nativas, enfurna-se nas cavernas, aprende a esquiar e a guiar os trenós puxados pelos cães; experimenta, enfim, uma espécie de renascimento:

"Tornara-se um homem novo... como recriado. Sentira as novas fontes de vida que brotavam de seu ser, enquanto se movia de um lado a outro, sobre os platôs, sem jamais saber onde nem com quem,. Hoje numa equipe, amanhã noutra, aprendera, agora que conhecia as pessoas e a língua que falavam, a pescar como elas o salmão ao longo dos rios ou a caçar sobre o gelo deslumbrante dos planaltos. Um dia, aventura-se mesmo a perseguir na companhia de Ephrain e de seus filhos, um casal de renas, do qual haviam descoberto o rastro. E quando os esquimós compreenderam em que madeira seu pastor fora talhado, passaram a considerá-lo como sendo um dos seus." (p. 108)

Thorkild casa-se com Rebecca, tem filhos com ela e, plenamente adaptado, resolve permanecer para sempre na Groenlândia: ele envelhece no Pólo Norte, tornando-se, de fato, o Urso Polar. Mas o rumo dos acontecimentos faz renascer nele um secreto desejo de retorno: Rebecca morre algum tempo depois e a nostalgia da Dinamarca aos poucos se apossa do pastor. O sentimento é tão insuportável que ele cede, escreve Ministério dos Cultos e, deixando os filhos e amigos para trás, regressa à Jutlândia, sendo enviado às paróquias de Soeby e Sovard em que o encontramos no início da narrativa. Sua figura exótica, como vimos, causa espanto e repulsa, mas ele, ingênuo, pensa tratar-se de reverência a seu passado aventureiro e suas extraordinárias aventuras vividas na Groenlândia. Mas aos poucos essa repulsa se transforma em curiosidade e, depois, em respeito. Isso porque o pastor traz àquela comunidade uma forma pouco ortodoxa de relacionar-se com a religião, em parte por sua visão particular da vida (talhada pelas experiências no gelo insular), em parte por sua simplicidade e  pela franqueza com que dá conselhos, faz exortações, conduz os cultos, dirige, enfim, seu rebanho.

Mas é evidente que essa proeminência lhe causa problemas. O reverendo Rusggard, que encontramos no início da narrativa e que aspira aos altos cargos, trama com as autoridades eclesiásticas e, após uma nada ortodoxa extrema-unção proferida por Thorkild - ele prometera ao moribundo que no céu haveria mulheres, bebida, fumo e festas!, tudo com o singelo objetivo de confortá-lo em sua passagem final -, consegue que o bispo visite as paróquias. Rusggard consegue colocar a comunidade contra seu pastor e, no clímax da narrativa, uma cerimônia é preparada para a chegada do bispo, onde todos esperam que a máxima culpa recaia sobre Thorkild. O próprio Rusggard exulta de satisfação ante à derrota de seu oponente, mas todas essas expectativas são frustradas pelo velho e experimentado Urso Popular: em vez de comparecer ao seu altar de sacrifício e de execração pública, ele desaparece. Ao tentar buscá-lo em casa, encontram apenas uma mensagem dizendo que a comunidade tinha os tiranos que mereciam. É claro que ele retornara ao Pólo Norte. O livro termina afirmando que ninguém nunca mais se soube nada dele. Pouco importa: sua formação está, enfim, completa.

Procurei traçar um panorama da narrativa, pois julgo que, para apresentar a complexidade da personagem central da novela de Pontoppidan, seja necessário acompanhar seus impasses iniciais, a transformação ocorrida na Groenlândia, a inadaptação em seu retorno, as intrigas que o cercaram e, por fim, seu retorno ao lugar que de fato lhe pertencia no mundo. Ainda que a resenha entregue o enredo e seu final, penso não invalidar um estímulo à leitura desta pequena joia da literatura dinamarquesa. E se a aspiração do Prêmio Nobel é, como venho reiterando neste blog, o reconhecimento de autores e textos que falem do universal a partir de suas realidades locais, a novela de Henrik Pontoppidan cumpre essa missão de modo irrepreensível: guardando as devidas distâncias temporais que, claro, envelhecem um pouco as escolhas narrativas (sem, contudo, envelhecer sua mensagem), ela dá conta de traçar a formação de um sujeito não pelas tintas ilustradas da cultura ocidental, mas pelo amor à vida simples e aventureira experimentada por Thorkild Müller na Groenlândia e que poderia ser a experimentada por qualquer um em qualquer parte do mundo.


Jorge Verly


Referência da leitura: PONTOPPIDAN, Henrik. O urso polar. IN: _______. O urso polar e outras novelas. Trad. de Osman Lins. Rio de Janeiro: Delta, 1963, p. 85-132.






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