sábado, 21 de setembro de 2019

Paraíso, de Toni Morrison




Olá,



A escolha de Toni Morrison (1931-2019) para o Prêmio Nobel de Literatura de 1993 causou comoção no mundo literário. Não isenta de críticas (houve quem acusasse a Academia Sueca de preocupar-se muito mais com o politicamente correto do que com a qualidade literária), sua eleição foi saudada como o reconhecimento de uma obra comprometida com as ressonâncias raciais na multifacetada sociedade americana. Cobrindo com maestria a história dos negros nos EUA, desde as vicissitudes por eles sofridas no período escravocrata até as dificuldades de inserção social em nossos tempos, a escrita de Morrison, elegante e repleta de poderosas metáforas sobre condição do homem e da mulher negros, sempre foi marcada por um compromisso com a origem desta autora, desde a infância pobre no estado de Ohio até sua consagração como professora e autora laureada, uma escrita que, na justificativa do Comitê Nobel, "dá vida a aspectos essenciais da vida americana". 

E é essa a tônica do romance Paraíso (1997), primeira obra publicada por Toni Morrison depois do recebimento do Nobel e que escolhi para resenhar nesta postagem. Cercada de expectativas desde sua concepção, esta narrativa é representativa do poder criativo da autora, tanto na engenhosidade do enredo, que mescla valores religiosos, morais e raciais, como na concepção das personagens que atravessam a trágica história de um Convento encetado na fictícia Ruby, a mais racial das cidades americanas, com sua população de pouco mais de 300 habitantes, todos negros. A história se passa no ano de 1973 e, ao longo da narrativa, retrocede até os anos iniciais do século XX, quando os chamados "patriarcas", um grupo de afrodescendentes já libertos das amarradas da escravidão nos EUA, buscam um lugar em que viver de acordo com suas próprias regras morais, políticas e religiosas, ao mesmo tempo dentro e fora da sociedade americana e dos conflitos raciais que a marcaram desde então. Antes de viver em Ruby, o grupo tinha fundado Haven, uma outra cidade idealizada como o Paraíso Terrestre, nos moldes bíblicos, onde os negros poderiam viver em paz, longe da perseguição racial impostas por movimentos supremacistas como a Ku Klux Klan. Mas Haven foi conspurcada e, por isso, os patriarcas partiram em busca de outro lugar. Daí, no meio do estado de Oklahoma, nasceu Ruby.




Toni Morrison já indica, na primeira frase do romance, que a história será contada de trás para frente, i. e., partindo do clímax central da narrativa e que é o massacre sofrido por cinco mulheres, as atuais habitantes do Convento, uma delas branca. E é a partir desse trágico episódio que a história será contada: "Eles atiram na branca primeiro", começa o narrador, sintetizando o que será narrado ao longo das mais de trezentas páginas do romance. Os homens valorosos de Ruby, protetores da pureza moral que emana da cidade, decidem chacinar as habitantes do Convento - fundado há tempos antes e que funciona na antiga mansão que pertenceu a um gângster dos anos 1920 - por considerá-lo uma mácula em sua pura comunidade. Desde o princípio o leitor é levado a perceber que, na concepção idealista que perpassa a vida dos moradores de Ruby, é este lugar pecaminoso a origem dos males que começam a atingir a cidade:

"Vizinhas estranhas, quase todo mundo dizia, mas inofensivas. Mais que inofensivas, até colaboradoras às vezes. Recebiam gente perdida ou que precisava descansar. As primeiras notícias era de gentileza e comida muito boa. Mas agora todo mundo sabia que aquilo era mentira, uma fachada, um disfarce cuidadosamente planejado para que o que acontecia de fato. Quando ficou claro que se tratava de uma emergência, representantes das três igrejas se encontram no Forno, porque não conseguiam resolver em qual das igrejas, se é que em alguma delas, se devia convocar a reunião para decidir o que fazer, agora que as mulheres tinham ignorado todos os avisos". (p. 20)

Atribuída à presença do Convento e de suas ocupantes não-religiosas (a última delas foi a Madre, que agonizava quando Mavis chegou e que morreu após o aparecimento de Gigi), as inquietações que tomam Ruby na virada dos anos 1960 para os 1970 tem, na realidade, relação com o cenário de turbulência social vivido na América e que ganha ressonância principalmente nos jovens da cidade que, influenciados pelo movimento pelos direitos civis, pela pregação de Martin Luther King e pela desobediência civil defendida por Malcolm X, não querem mais seguir as tradições impostas pelos antigos moradores da cidade. E é no Forno, uma espécie de altar da cidade, que aparece certa manhã um punho negro desenhado, numa referência ao movimento dos Panteras Negras. Este lugar, desmontado e trazido de Haven para ser reconstruído em Ruby, antes o centro de unidade daquela comunidade, é agora seu pomo de discórdia: os jovens não só discordam da existência do Forno, como divergem da frase incompleta nela incrustada desde Haven: para os velhos, a frase correta é "Temei a ruga de Sua testa", um claro aviso pela obediência das leis divinas; já os jovens a interpretam como "Sede a ruga de Sua testa", imersos que estavam na ideia de que, investidos pelo poder divino, cabia a eles mudar as regras e construírem seu próprio destino. Nesse sentido, Ruby é um microcosmo da própria sociedade americana nos anos 1970, cujas forças em litígio estavam atravessadas pela questão racial.

Quanto ao Convento, sua simbologia está ligada ao precário oferecimento de abrigo àqueles que, neste turbilhão social, encontravam-se marginalizados. Ou melhores, marginalizadas, pois, conforme assinalado antes, suas ocupantes eram todas mulheres, inadaptadas ou vítimas do desajuste social ou familiar. Primeiro temos Connie, a última remanescente dos tempos das religiosas, uma velha excêntrica e que prepara deliciosas pimentas que, nos tempos pacíficos, eram apreciadas pelos habitantes da cidade. Depois chegou Mavis, mentalmente perturbada após a morte de seus filhos gêmeos no Cadillac da família (eles foram esquecidos por ela enquanto fazia compras para o marido violento, morrendo asfixiadas), no qual fugiu em direção à Califórnia, mas que acabou parando em Ruby e foi acolhida por Connie e a Madre agonizante. Em seguida veio Gigi, uma jovem fugindo de um relacionamento abusivo com um presidiário e que buscava uma energia de natureza sexual (representada por uma árvores entrelaçada que, segundo lhe contaram, ficava em Ruby) que serenasse sua alma aflita. Depois veio Sêneca, abandona pela irmã que a criara e que, depois de ser rejeitada em seu último lar adotivo, tomou um ônibus e, chegando à cidade, foi acolhida pelas outras mulheres. E por último a adolescente Pallas que, depois de descobrir que seu namorado estava tendo um caso com sua mãe, acaba fugindo e, de carona num caminhão repleto de índios, vai parar em Ruby, onde lhe indicam que, para buscar abrigo, é necessário ir ao Convento. E é justamente o que a menina encontra ali:

"Mavis, ainda sorrindo, serviu café e cortou o pudim de pão. Serviu Pallas e sentou-se ao lado dela, soprando o café. Pallas ficou brincando com a terceira porção de sobremesa.
'Mostre a marca dos dentes', Mavis disse.
Pallas virou a cabeça e puxou a gola da camiseta, exibindo o ombro.
'Iiihh', Mavis gemeu.
'Aqui é assim todo dia?', Pallas perguntou.
'Ah, não", Mavis acariciou o queixo machucado. 'Aqui é o lugar mais tranquilo do mundo'." (p. 211)

Enquanto vai avançando, o leitor se questiona: quem seria a mulher branca, aquela que é referida no início da narrativa como sendo a que primeiro foi alvejada quando os homens de Ruby invadiram o Convento? Mas esta resposta não será dada mesmo após a conclusão do romance. Toni Morrison, à época, escreveu que optara por deixar a questão em aberto para indicar que, enquanto a cor era um fator predominante no seio da comunidade fanática da cidade, no Convento era um fator secundário. Para aquelas mulheres destroçadas de algum modo pela vida, importava muito mais o sentido de convivência, de abrigo, de pertencimento a algum lugar. Assim é também que o Convento funciona, na dinâmica da história contada por Morrison, como um Paraíso paralelo, diverso daquele desejado pelos moradores de Ruby. E é por esta razão que eles o destroem de forma violenta. 

O livro segue com os acontecimentos posteriores ao massacre, a começar pela destruição do Forno pelas violentas chuvas e inundações que tomam conta da cidade, uma espécie de vingança na natureza contra o terrível pecado ali cometido. Além disso, quando alguns moradores mais esclarecidos da cidade, como o reverendo Misner e a comerciante Anna Flood, descobrem o horror que ocorrera no Convento, resolvem ir até lá, não encontram mais os corpos das mulheres. A autora conclui sua história com toques do fantástico - elemento presente também em seu livro mais conhecido, Amada (1987) -, simbolizado pelo retorno das cinco mulheres que, como que ressuscitadas, reencontram suas famílias e amores, reconciliando-se de alguma forma com eles. Há, pois, uma nova abertura à existência de um Paraíso, palavra, aliás, que fecha o livro. 

Toni Morrison escreveu essencialmente romances sobre a questão da identidade negra numa América marcada por segregações e desigualdades, conforme vimos. Mas em Paraíso, a questão foi ampliada para abarcar também as dicotomias e desajustes no seio de uma comunidade negra que se pretendia racialmente pura e que, pela impossibilidade de realização desta utopia, viu-se confrontada com a diversidade, reagindo a ela com violência e intolerância. O olhar arguto desta romancista, como poucos autores americanos de sua geração - Cormac McCarthy, Philip Roth, Don Delillo e Joyce Carol Oates -, soube radiografar de maneira certeira a realidade americana. Mas, diferente deles, cujo olhar é por vezes marcado por uma crueza e por uma melancolia incontornáveis, Toni Morrison voltou para a América um olhar de piedade e compaixão, um olhar que vai além do reconhecimento. Uma visada de, por que não dizer, esperança. 

Jorge Verly


Referência da leitura: MORRISON, Toni. Paraíso. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 

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