terça-feira, 24 de setembro de 2019

O faroleiro, de Henryk Sienkiewicz





Olá,



Na primeira década do século XX, a Academia Sueca ainda estava buscando o "tom" das escolhas do Prêmio Nobel de Literatura. A tarefa legada pelo testamento de Alfred Nobel e que consistia na escolha anual de um autor cuja obra fosse representativa da humanidade e de seu caráter universalizante havia sido aceita quatro anos antes pela instituição, que premiara na ocasião o "desconhecido" poeta francês Sully Prudhomme, ignorando o maior autor vivo à época, o russo Tolstói. Para alguns, tratou-se de um verdadeiro escândalo e que mostrava a incapacidade da academia de um pequeno país nórdico relativamente isolado em premiar os verdadeiros gênios literários. E foi em parte como uma resposta a esta acusação que, em 1905, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido ao escritor polonês Henryk Sienkiewciz (1846-1916), uma verdadeira celebridade literária de então, sobejamente famoso no mundo inteiro por seu romance Quo Vadis? (1895). 

Mas a escolha de um autor best-seller - segundo dados da época, precários pela própria natureza da ciência estatística de então, o mais conhecido romance de Sienkiewicz tinha vendido 800 mil exemplares na Europa e nos Estados Unidos - não foi isenta de críticas. Muitos apontaram esta escolha como um aceno à popularidade em detrimento da qualidade literária, acusando os suecos de abandonarem uma das premissas estabelecidas pelo testamento do criador do Nobel. Criticaram inclusive a justificativa da Academia ao atribuir o prêmio ao narrador polonês: para muitos, ao premiá-lo "por causa de seus notáveis méritos como escritor épico", estava-se relacionando o galardão diretamente ao sucesso do livro que esquadrinhava os embates entre romanos e cristãos no tempo de Nero, temática central de Quo vadis? O tempo, no entanto, acabou provando o equívoco destas invectivas contra a literatura de Sienkiewicz e seu Prêmio Nobel. O interesse despertado pela escolha de seu nome fez leitores e críticos literários voltarem-se a outras de suas obras, revelando não apenas o autor de  um famoso épico sobre dos primórdios da cristandade, mas também um sensível cultor da linguagem e um narrador das tradições e da alma polonesa. É o caso de "O faroleiro" (1881), conto breve, porém repleto de qualidades que bem ilustram o estilo e as escolhas narrativas deste autor. 

A história se passa na segunda metade do século XIX e começa com o sumiço, um tanto misterioso, do faroleiro de Aspinwall, ilha incrustada na boca do golfo do Panamá, cujo farol era essencial para a organização do tráfego marítimo naquela movimentada região. Cabe ao cônsul dos Estados Unidos, responsável pela administração do farol, encontrar-lhe imediatamente um substituto. É então que entra em cena Skawinski, um velho polonês que, tendo participado como soldado dos principais conflitos do século (como a Guerra Franco-Prussiana e Guerra de Secessão Americana), apresenta-se ao cônsul como candidato ao cargo de faroleiro. Este duvida que o velho combalido seja capaz, com seus mais de 70 anos, de vencer os 400 degraus do farol e a rotina estafante de colocá-lo em funcionamento noite após noite. Mas os argumentos e as narrativas da vida aventureira do velho, bem como aparente fibra por ele adquirida em seus anos de exílio, convencem o diplomata. O cargo é dado a ele que, no mesmo dia, parte para seu novo posto no farol.



Na primeira noite de seu novo trabalho, vamos encontrá-lo mergulhado num estado de tensão excitada e também de alegria. Por fim, ele havia encontrado um porto. Repassando suas desventuras, inclusive com um breve estágio pelas selvas brasileiras, sempre embarcando em empreendimentos que, numa primeira mirada, pareciam auspiciosos, mas que se revelaram verdadeiros fracassos, Skawinski sente que o fado, embora nunca tenha sido particularmente generoso consigo, estava agora lhe oferecendo uma trégua, a ele que, na espera pela fortuna a todos os homens prometida, envelhecera de tanto esperar:

"Por fim, fora dar com os ossos em Aspinwall. Ali, por certo, a falta de sorte que sempre o perseguira, teria um fim. Que poderia atingi-lo ali, naquele rochedo solitário? Nem enchente, nem incêndio, nem homem. Para dizer a verdade, a humanidade não lhe fora propriamente hostil. Encontrara mesmo muito mais gente generosa que ruim. (...) Por fim, um único pensamento o dominou: descansar. Esse desejo tornou-se tão absorvente que apagou tudo o mais. O eterno vagabundo não podia imaginar nada mais sedutor, nada mais precioso que um cantinho seu onde pudesse descansar e aguardar o fim." (p. 66-67)

E por detrás desse sentimento de abrigo e pertencimento, o que embala os sentimentos do velho é a saudade de sua Polônia natal, terra que ele obrigara a abandonar desde cedo em busca da tal Boa Fortuna prometida (por quem?) e a errar pelo mundo em projetos quase sempre fracassados. A nostalgia polonesa será, aliás, um dos motes da narrativas, um sentimento que a todo o tempo invadirá o velho faroleiro, sua medida ao contemplar o mundo e as evocações por ele provocadas em sua alma de exilado. E será, conforme veremos, o elemento-chave para o melancólico desfecho da narrativa.

O tempo passa e o Skawinski experimenta um verdadeiro mimetismo com a ilha e seu farol, como se seu corpo fizesse parte daqueles dois elementos. É de lá que ele vê, através de binóculos - instrumento ao mesmo tempo aproximativo e redutor da realidade -, as movimentações na baía e no porto de Aspinwall, "pinturas em movimento" vistas de seu refúgio insular. Mesmo indo todos os domingos até lá para frequentar a missa e buscar jornais para se informar sobre os acontecimentos do mundo (em especial da Europa e de sua Polônia), é na ilha que ele se isola, sentindo-se cada vez mais em comunhão com as rochas, a vegetação parca e rasteira e os pássaros que, diuturnamente, vem comer as migalhas de seu jantar. 

Mas é aí que veremos a sorte de Skawinski retornar à roda de perdas. É que ele recebe um pacote contendo livros, enviados por uma sociedade de exilados poloneses nos Estados Unidos, para quem ele havia doado integralmente seu primeiro salário como forma de gratidão pela descanso enfim alcançado. Comovido por este regalo, ele apanha o primeiro exemplar da caixa, uma coletânea de poemas célebres em língua polonesa, um idioma a tanto tempo ausente de suas conversações com os poucos seres humanos com os quais travara contato naquela parte esquecida do mundo. Depara-se com Pan Tadeusz, poema épico da literatura polaca escrito por Mickiewicz, talvez a obra mais representava da nacionalidade polonesa em todos os tempos. O faroleiro se lança avidamente à (re)leitura da obra e, enquanto avança, algo extraordinário acontece a seu corpo, ao seu próprio ser: é como se ele saísse de sua carne velha e macilenta, deixasse aquela ilha e seu farol - afinal, abrigos precários para sua alma nostálgica - e retornasse espiritualmente à Polônia, percorrendo os mesmos lugares descritos no poema, participando da vida local, acompanhando amor impossível entre Tadeusz e Sozia, motes da obra:

"A onda que subia pela garganta explodiu. O velho soltou um grito. Caiu ao solo. Seus cabelos brancos misturavam-se ao dourado da areia. Há quarenta anos estava longe e só Deus sabia havia quantos não ouvia a fala materna. Mas, mesmo assim a língua pátria lhe soara natural como se a ouvisse sempre. Tinha atravessado oceanos, tinha vivido como um exilado em outro hemisfério, oh língua tão bela, tão amada!

Soluçava, mas não de tristeza. Era como se tivesse despertado diante de algo tão sobrenaturalmente belo que tudo o mais lhe parecia trivial. O pranto convulsivo era uma espécie de pedido de perdão à pátria distante, perdão por ter envelhecido, por ter-se ligado tão completamente àquele rochedo solitário que até a saudade de sua terra se havia desvanecido. E agora, era como se voltasse por um milagre e seu coração se despedaçava" (p. 76)

E em meio a esta catarse em que Skawinski expia seu pecado pelo esquecimento da pátria agora reencontrada, o velho se esquece de acender o farol. Na verdade, mal percebe que a noite caiu sobre a baía de Aspinwall e que um dos navios, sem a essencial orientação do facho de luz, despedaça-se contra um rochedo. O velho faroleiro está alheio a tudo isso e só se dá conta do ocorrido algum tempo depois, quando John, o vigia do porto, chega à ilha para descobrir o que havia acontecido e encontra o faroleiro ainda em estado de transe. Depois de trazê-lo à realidade e de contar-lhe que, embora ninguém tenha morrido, o estrago tinha sido grande, John lhe diz que precisa levá-lo à terra firme imediatamente: o faroleiro precisa encarar as autoridades, além de estar, claro, sumariamente demitido. Alguns tempo depois, vamos encontrar Skawinski a bordo de um navio que se dirige a Nova York, onde terá que reiniciar sua cansativa luta pela sobrevivência no exílio. O velho, entretanto, traz o livro de Mickiewicz junto ao peito, aquele livro que representara a sua sorte e também a sua perdição, pois a pátria inesperadamente reencontrada em suas páginas era agora, outra vez, uma lembrança. Fora através daqueles versos que ele se vira em sua amada Polônia e fora também por causa deles que era agora obrigado a errar novamente longe dela.

Mesmo curta, a narrativa de Henryk Sienkiewicz nos apresenta qualidades essenciais de sua prosa e que vão além daquelas apontadas quando da concessão do Nobel. Embora encontremos traços do epicista (a cena de reencontro do velho faroleiro com sua terra natal através da leitura de Pan Tadeusz é um exemplo), o que transparece no conto é a um tom introspectivo e que busca esquadrinhar o espírito de Skawinski em sua busca por abrigo em meio às tribulações do mundo, sentimento que é comum a todos os seres humanos e não apenas àqueles envolvidos em situações heroicas como as narradas em Quo Vadis?. A singela história aqui contada diz muito de quem somos, daquilo que buscamos e das pequenas recompensas cotidianas que a vida é capaz de dar a cada um de nós. O farol de Aspinwall, recanto que simboliza o mundo, emula a universalidade pretendida por seu autor e que, em 1905, fez com que ele fosse recompensado com o Nobel de Literatura, embora talvez nem mesmo o próprio comitê de premiação a tenha percebido quando da atribuição da honraria. As distâncias narrativas - que tenho evocado em relação a alguns autores cujo tempo aparentemente envelheceu - são aqui facilmente vencidas e dão ao leitor um prazer que, embora curto, é forte e vívido, posto que capaz de confrontá-lo com o que de mais verdadeiro há dentro de si: o seu dado humano, mesmo que com traços melancólicos como os que encontramos ao final do texto. Justiça, pois, seja feita a Henryk Sinkiewicz. 


Jorge Verly


Referência da leitura: O faroleiro. IN: O faroleiro e outros contos. Trad. de Lúcia Benedetti. Rio de Janeiro: Delta, 1962, p. 5-79.


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