Harold Pinter (1930-2008) foi um dos mais influentes dramaturgos do século XX. O auge de sua produção se deu nos anos 1960 e 1970, quando suas peças, encenadas no mundo inteiro, eram um retrato dos impactos da opressão e desajustes sociais sobre os indivíduos e suas relações. Talvez por isso houve uma certa reação negativa quando o Prêmio Nobel de Literatura lhe foi concedido em 2005, pois muitos consideravam que o momento de Pinter havia passado. Ledo engano. O dramaturgo inglês, "que nas suas peças descobre o precipício sob o murmúrio do dia-a-dia e força a entrada nos quartos escuros da opressão", nas palavras da Academia Sueca, mantém sua vitalidade e atualidade ainda em nossos dias, quando a deterioração da experiência humana é expressa pelo jugo de um mundo cada vez mais cruel. Severamente doente à época da entrega do Nobel, ele não pode viajar a Estocolmo para recebê-lo pessoalmente, mas gravou um vídeo (é praxe que os laureados em Literatura façam uma palestra na semana de entrega do prêmio) intitulado "Arte, verdade e política", em que repassa sua produção teatral e reforça seu compromisso com a representação artística da realidade através da baliza da invenção e da irrealidade, também elas portadoras de uma verdade sobre o mundo.
No Brasil, embora as peças de Pinter sejam bastante representadas desde a década de 1960, há poucas traduções disponíveis ao público leitor. Uma delas é Volta ao lar (1965), que escolhi para comentar nesta postagem e cuja estreia brasileira se deu em 1967 com um trio de peso nos papéis principais: Fernanda Montenegro (no papel de Ruth), Sérgio Britto (como Lenny) e Ziembinski (Max). A história se ampara na Parábola do Filho Pródigo, mas com todas as liberdades e iconoclastias características do teatro de Pinter, sobretudo no uso de uma linguagem que se vale do chulo e do vitupério verbal como elementos dos desarranjos pessoais e coletivos de uma família que em nada se assemelha ao clã idílico deixado pelo jovem da história bíblica em busca de seu próprio destino.
Teddy, filho de Max e irmão de Lenny e Joey, deixou a família em Londres para tentar a vida acadêmica nos Estados Unidos. Dele, nada mais sabem até o momento em que a peça começa, já marcada pelas tensões representadas pelo áspero diálogo entre Max e Lenny e que, na toada do teatro do absurdo, gira em torno de uma tesoura desaparecida, gerando no leitor/expectador uma inevitável comparação entre o teatro de Pinter e as peças de Beckett (ele próprio ganhador do Nobel em 1969). No entanto, enquanto o dramaturgo irlandês põe suas personagens em atrapantes solilóquios a respeito do vazio da experiência humana, Pinter traz o absurdo para as relações comezinhas, como forma de apresentar as tensões e neuroses, traumas e recalques que resultam numa fala repleta de violência, derrisões e, sobretudo, mágoa:
"LENNY
Você se importa se eu mudar de assunto? (Pausa) Quero te perguntar uma coisa. Esta comida que nós comemos, como é mesmo o nome dela? Como é que você chama essa comida? (Pausa) Por que você não compra um cachorro? Você cozinha bem para cachorro. Verdade. Você acha que está cozinham prum brando de vira-latas.
MAX
Quem não gosta que se mude!
LENNY
Vou pensar nisso. Por enquanto vou sair e ver se janto alguma coisa para tirar o gosto desse teu jantar.
MAX
Vai logo! Que é que está esperando? (Lenny o olha)
LENNY
O que é que você disse?
MAX
Eu disse vomita, bota pra fora, foi o que eu disse.
LENNY
Primeiro eu boto você pra fora, paizinho, se continuar a me falar nesse tom."
(p. 15-16)
O diálogo tenso e exasperado entre pai e filho expõe, na verdade, fraturas que remontam à criação dada por Max aos três filhos (dentre eles o ausente) após a morte da mulher, Jessie. Embora lance invectivas contra o pai, Lenny sabe que, na hierarquia familiar, é ele o proprietário da casa e provedor da família, restando às ameaças de expulsão o mero lugar da rebeldia juvenil um tanto fora de época, sendo ele o filho mais velho. Lembremos que na parábola, é o filho mais velho quem inveja o Pródigo e a recepção festiva do pai depois de sua jornada infantil e desastrosa. Lenny cumpre bem esse papel, já que a tensão será elevada com a chegada de Teddy e os salamaleques - ainda que repletos do mais delicioso humor pinteriano - a ele dispensados pelo velho pai.
Mas antes da chegada deste, entram em cena os outros dois membros da família: Sam, irmão de Max e que ascendeu socialmente na profissão, indo de modesto motorista de táxi a chofer de uma empresa especializada em realizar passeios com americanos pela cinzenta Londres e com quem o velho tem uma relação mal resolvida e que envolve rejeição paterna e traição (há a insinuação de que Jessie fora amante de Sam); e Joey, o filho do meio, que trabalha como mecânico e é boxeador nas horas vagas, uma personagem enxertada na remontagem da parábola bíblica e que, pairando acima dos conflitos entre o pai e os dois filhos, leva uma existência adida aos prazeres e às despreocupações típicas de um solteirão inconsequente.
Muitas diatribes coletivas e zombarias depois, os quatro recolhem-se para dormir. É então que entram em cena Teddy e sua jovem esposa Ruth. Desde sua aparição para esta visita surpresa, instala-se uma tensão (no palco e na leitura) e que provém tanto das relações não-pacificadas entre o casal como nebulosas possibilidades que a visita (ou o retorno ao lar) poderão desencadear. O casal hesita em acordar a família, postergando para a manhã seguinte o encontro. Teddy sobe para o que seria seu quarto - numa espécie de retorno a uma mítica mas irrecuperável infância -, enquanto Ruth sai para uma volta pelo bairro em plena madrugada. Ao retornar, depara-se com Lenny na sala e é então que o leitor/espectador experienciará a tensão eivada de potência sexual entre eles.
Tensão esta que é elevada à diferentes potências e voltagens no dia seguinte, quando a família descobre o retorno de Teddy. A cena em que Max lhe pergunta "Quem lhe deu licença de botar vacas sujas nesta casa?" (p. 60), para em seguida abraçar afetuosamente o filho e a aceitar a nora é um indicativo tanto da direção ao nonsense que a peça passa a assumir, como da introdução da assustadiça Ruth ao contexto comunicativo violento/irônico/chistoso da família. A cena, já antológica, termina com a desintegração da tensão em comicidade, risos e galhofas. No apagar/acender das luzes (recurso cênico utilizado pelo autor para saltar de uma a outra passagem temporal), vemos a família outra vez reunida após um saboroso e elogiado almoço, com os homens fumando charutos despreocupadamente, enquanto Ruth serve cafezinhos:
"RUTH
Almoço excelente!
MAX
Fico muito contente que você tenha gostado. (Pros outros) Vocês ouviram isso? (Para Ruth) De uma coisa você pode estar certa - pus corpo e alma nesse almoço. (Bebe) O café também está divino.
RUTH
Agora quem fica contente sou eu. (Pausa)
MAX
Alguma coisa me diz que você é uma cozinheira de mão cheia.
RUTH
Não sou má, não.
MAX
Alguma coisa me diz que você é a rainha das cozinheiras. Que é que você me diz, Teddy?
TEDDY
É, ela cozinha muito bem. (Pausa)"
(p. 67-68)
É também revelado que o casal tem três filhos, os adorados netos que vovô Max precisa conhecer. Mas a desintegração da tensão se revela, evidentemente, falsa. Após a saída de Joey (uma personagem, como disse, neutra e acima dos liamos mal-resolvidos entre os dois irmãos, o mais velho e o mais novo) e Sam, Lenny fustiga Teddy sobre seu trabalho na universidade como professor de filosofia, fazendo-lhe questões que estão além de sua capacidade interpretativa. Ruth vem em seu auxílio e as responde, mostrando que ela é algo além de uma "rainha das cozinheiras", o que desperta o apetite sexual não apenas de Lenny, mas dos outros homens da família, como se verá. Teddy sai brevemente e, em seguida, retorna com as malas, disposto a encerrar a visita, mas o irmão tira Ruth para dançar. Os outros chegam e Joey agarra a cunhada - que não resiste - e os dois se embolam freneticamente no chão da sala/palco. Todos dançam e bebem. Apenas Teddy tenta permanecer racional, gritando à família que eles não entenderiam seus trabalhos críticos, que eles são ignorantes e que ele não é, que não irá se perder como eles.
Na cena seguinte, após uma passagem de tempo indicada de duas horas, temos Ruth e Joey ausentes (estão transando no andar de cima), enquanto os dois irmãos mantém um comovente diálogo, quase um monólogo de Lenny, em que a rivalidade entre os dois irmãos pletora a inveja que este último sente da vida de Teddy na América. É o acerto de contas que, se na parábola ocorre entre o pai e o irmão do Filho Pródigo, aqui se potencializa entre os dois irmãos. É então que Joey desce e a peça atinge o ápice do absurdo: com o retorno também de Max e Sam, os homens da família discutem sobre Ruth, traçando planos para fazer dela sua escrava sexual e empregada da casa. Tudo descamba para um clímax misógino e grotesco, com a explicitação dos procedimentos necessários e altamente organizados para fazer da mulher uma prostituta funcional e rentável, com local próprio para atendimento e expediente estabelecido. Ruth, até então alheia, passa a intervir, mostrando-se uma hábil negociante, bem aos moldes da crítica ao capitalismo tardio empreendida pelo teatro de Pinter:
"LENNY
Tá bem, eu te arranjo um apartamento com isso tudo.
RUTH
Com esses cômodos todos assim direitinho, mobilado?
LENNY
Você vai ver.
RUTH
Uma empregada só para mim.
LENNY
Natural. (Pausa) Em suma, nós te financiamos no começado e quando estiver estabelecida você nos paga em prestações.
RUTH
Ah, não, de maneira nenhuma - isso não.
LENNY
Mas como?
RUTH
Vocês teriam que aceitar todas as despesas iniciais como um investimento de capital. (Pausa)
LENNY
Percebo. Tá certo.
(...)
RUTH
Todos os aspectos do acordo e as condições da minha manutenção e respectiva prestação de serviços terão que ficar bem claros no contrato, para nossa mútua satisfação."
(p. 114-115)
Alheio a tudo, Teddy percebe que perdeu a mulher, que terá que voltar sozinho para sua casa nos Estados Unidos e cuidar ele mesmo dos três filhos do casal. De repente, Sam morre. Ou finge morrer, não fica claro na cena e nem ficará ao final da peça, que se encontra agora em seus momentos finais. Em vez de lamentar a suposta morte do irmão, Max se aborrece com o incômodo de ter um cadáver no meio da sala. Teddy se despede e parte, com a total indiferença da agora satisfeita capitalista sexual Ruth. Max lança suas últimas lamúrias e invectivas contra velhice, enquanto a nora acaricia os cabelos do sonhador Joey. A última indicação textual é do olhar vazio de Lenny para a cena.
Voltar ao lar é um texto dramático com muitas camadas possíveis de leitura e de interpretação. Como todo texto teatral, sua realização plena acontece no momento de sua encenação, sendo a leitura uma possibilidade parcial de compreensão da potência escondida nas entrelinhas das falas, dos gestos sutilmente indicados e das mudanças de ambiente. O que não nos impede de, ao lê-la, traçarmos um panorama das fraturadas relações entre os membros desta marcante família, de suas feridas latentes, de sua desintegração e de sua aparente pacificação final, indicando que "a entrada nos quartos escuros da opressão" pretendia pela obra de Harold Pinter é uma viagem sem volta, como é sem volta o empobrecimento do homem contemporâneo num mundo de destroçadas relações. Sim, é o capitalismo e as relações de exploração que ele estabelece que corroem o afeto desta família que tenta manter uma aparência de união, ainda que precária. São eles também que engolem a frágil Ruth. Mas é ela quem, ao final, subjuga dos homens de família, mostrando quem eles verdadeiramente são, quem verdadeiramente (ainda) somos todos nós. Daí ser injusta a ideia de envelhecimento do teatro de Pinter e da falta de ocasião de seu Prêmio Nobel. Suas peças, retratos estilhaçados do nosso mundo, permanecem para além de atuais: restam vivíssimas.
Jorge Verly
PINTER, Harold. Volta ao lar. Trad. de Millôr Fernandes. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
Teddy, filho de Max e irmão de Lenny e Joey, deixou a família em Londres para tentar a vida acadêmica nos Estados Unidos. Dele, nada mais sabem até o momento em que a peça começa, já marcada pelas tensões representadas pelo áspero diálogo entre Max e Lenny e que, na toada do teatro do absurdo, gira em torno de uma tesoura desaparecida, gerando no leitor/expectador uma inevitável comparação entre o teatro de Pinter e as peças de Beckett (ele próprio ganhador do Nobel em 1969). No entanto, enquanto o dramaturgo irlandês põe suas personagens em atrapantes solilóquios a respeito do vazio da experiência humana, Pinter traz o absurdo para as relações comezinhas, como forma de apresentar as tensões e neuroses, traumas e recalques que resultam numa fala repleta de violência, derrisões e, sobretudo, mágoa:
"LENNY
Você se importa se eu mudar de assunto? (Pausa) Quero te perguntar uma coisa. Esta comida que nós comemos, como é mesmo o nome dela? Como é que você chama essa comida? (Pausa) Por que você não compra um cachorro? Você cozinha bem para cachorro. Verdade. Você acha que está cozinham prum brando de vira-latas.
MAX
Quem não gosta que se mude!
LENNY
Vou pensar nisso. Por enquanto vou sair e ver se janto alguma coisa para tirar o gosto desse teu jantar.
MAX
Vai logo! Que é que está esperando? (Lenny o olha)
LENNY
O que é que você disse?
MAX
Eu disse vomita, bota pra fora, foi o que eu disse.
LENNY
Primeiro eu boto você pra fora, paizinho, se continuar a me falar nesse tom."
(p. 15-16)
O diálogo tenso e exasperado entre pai e filho expõe, na verdade, fraturas que remontam à criação dada por Max aos três filhos (dentre eles o ausente) após a morte da mulher, Jessie. Embora lance invectivas contra o pai, Lenny sabe que, na hierarquia familiar, é ele o proprietário da casa e provedor da família, restando às ameaças de expulsão o mero lugar da rebeldia juvenil um tanto fora de época, sendo ele o filho mais velho. Lembremos que na parábola, é o filho mais velho quem inveja o Pródigo e a recepção festiva do pai depois de sua jornada infantil e desastrosa. Lenny cumpre bem esse papel, já que a tensão será elevada com a chegada de Teddy e os salamaleques - ainda que repletos do mais delicioso humor pinteriano - a ele dispensados pelo velho pai.
Mas antes da chegada deste, entram em cena os outros dois membros da família: Sam, irmão de Max e que ascendeu socialmente na profissão, indo de modesto motorista de táxi a chofer de uma empresa especializada em realizar passeios com americanos pela cinzenta Londres e com quem o velho tem uma relação mal resolvida e que envolve rejeição paterna e traição (há a insinuação de que Jessie fora amante de Sam); e Joey, o filho do meio, que trabalha como mecânico e é boxeador nas horas vagas, uma personagem enxertada na remontagem da parábola bíblica e que, pairando acima dos conflitos entre o pai e os dois filhos, leva uma existência adida aos prazeres e às despreocupações típicas de um solteirão inconsequente.
Muitas diatribes coletivas e zombarias depois, os quatro recolhem-se para dormir. É então que entram em cena Teddy e sua jovem esposa Ruth. Desde sua aparição para esta visita surpresa, instala-se uma tensão (no palco e na leitura) e que provém tanto das relações não-pacificadas entre o casal como nebulosas possibilidades que a visita (ou o retorno ao lar) poderão desencadear. O casal hesita em acordar a família, postergando para a manhã seguinte o encontro. Teddy sobe para o que seria seu quarto - numa espécie de retorno a uma mítica mas irrecuperável infância -, enquanto Ruth sai para uma volta pelo bairro em plena madrugada. Ao retornar, depara-se com Lenny na sala e é então que o leitor/espectador experienciará a tensão eivada de potência sexual entre eles.
Tensão esta que é elevada à diferentes potências e voltagens no dia seguinte, quando a família descobre o retorno de Teddy. A cena em que Max lhe pergunta "Quem lhe deu licença de botar vacas sujas nesta casa?" (p. 60), para em seguida abraçar afetuosamente o filho e a aceitar a nora é um indicativo tanto da direção ao nonsense que a peça passa a assumir, como da introdução da assustadiça Ruth ao contexto comunicativo violento/irônico/chistoso da família. A cena, já antológica, termina com a desintegração da tensão em comicidade, risos e galhofas. No apagar/acender das luzes (recurso cênico utilizado pelo autor para saltar de uma a outra passagem temporal), vemos a família outra vez reunida após um saboroso e elogiado almoço, com os homens fumando charutos despreocupadamente, enquanto Ruth serve cafezinhos:
"RUTH
Almoço excelente!
MAX
Fico muito contente que você tenha gostado. (Pros outros) Vocês ouviram isso? (Para Ruth) De uma coisa você pode estar certa - pus corpo e alma nesse almoço. (Bebe) O café também está divino.
RUTH
Agora quem fica contente sou eu. (Pausa)
MAX
Alguma coisa me diz que você é uma cozinheira de mão cheia.
RUTH
Não sou má, não.
MAX
Alguma coisa me diz que você é a rainha das cozinheiras. Que é que você me diz, Teddy?
TEDDY
É, ela cozinha muito bem. (Pausa)"
(p. 67-68)
É também revelado que o casal tem três filhos, os adorados netos que vovô Max precisa conhecer. Mas a desintegração da tensão se revela, evidentemente, falsa. Após a saída de Joey (uma personagem, como disse, neutra e acima dos liamos mal-resolvidos entre os dois irmãos, o mais velho e o mais novo) e Sam, Lenny fustiga Teddy sobre seu trabalho na universidade como professor de filosofia, fazendo-lhe questões que estão além de sua capacidade interpretativa. Ruth vem em seu auxílio e as responde, mostrando que ela é algo além de uma "rainha das cozinheiras", o que desperta o apetite sexual não apenas de Lenny, mas dos outros homens da família, como se verá. Teddy sai brevemente e, em seguida, retorna com as malas, disposto a encerrar a visita, mas o irmão tira Ruth para dançar. Os outros chegam e Joey agarra a cunhada - que não resiste - e os dois se embolam freneticamente no chão da sala/palco. Todos dançam e bebem. Apenas Teddy tenta permanecer racional, gritando à família que eles não entenderiam seus trabalhos críticos, que eles são ignorantes e que ele não é, que não irá se perder como eles.
Na cena seguinte, após uma passagem de tempo indicada de duas horas, temos Ruth e Joey ausentes (estão transando no andar de cima), enquanto os dois irmãos mantém um comovente diálogo, quase um monólogo de Lenny, em que a rivalidade entre os dois irmãos pletora a inveja que este último sente da vida de Teddy na América. É o acerto de contas que, se na parábola ocorre entre o pai e o irmão do Filho Pródigo, aqui se potencializa entre os dois irmãos. É então que Joey desce e a peça atinge o ápice do absurdo: com o retorno também de Max e Sam, os homens da família discutem sobre Ruth, traçando planos para fazer dela sua escrava sexual e empregada da casa. Tudo descamba para um clímax misógino e grotesco, com a explicitação dos procedimentos necessários e altamente organizados para fazer da mulher uma prostituta funcional e rentável, com local próprio para atendimento e expediente estabelecido. Ruth, até então alheia, passa a intervir, mostrando-se uma hábil negociante, bem aos moldes da crítica ao capitalismo tardio empreendida pelo teatro de Pinter:
"LENNY
Tá bem, eu te arranjo um apartamento com isso tudo.
RUTH
Com esses cômodos todos assim direitinho, mobilado?
LENNY
Você vai ver.
RUTH
Uma empregada só para mim.
LENNY
Natural. (Pausa) Em suma, nós te financiamos no começado e quando estiver estabelecida você nos paga em prestações.
RUTH
Ah, não, de maneira nenhuma - isso não.
LENNY
Mas como?
RUTH
Vocês teriam que aceitar todas as despesas iniciais como um investimento de capital. (Pausa)
LENNY
Percebo. Tá certo.
(...)
RUTH
Todos os aspectos do acordo e as condições da minha manutenção e respectiva prestação de serviços terão que ficar bem claros no contrato, para nossa mútua satisfação."
(p. 114-115)
Alheio a tudo, Teddy percebe que perdeu a mulher, que terá que voltar sozinho para sua casa nos Estados Unidos e cuidar ele mesmo dos três filhos do casal. De repente, Sam morre. Ou finge morrer, não fica claro na cena e nem ficará ao final da peça, que se encontra agora em seus momentos finais. Em vez de lamentar a suposta morte do irmão, Max se aborrece com o incômodo de ter um cadáver no meio da sala. Teddy se despede e parte, com a total indiferença da agora satisfeita capitalista sexual Ruth. Max lança suas últimas lamúrias e invectivas contra velhice, enquanto a nora acaricia os cabelos do sonhador Joey. A última indicação textual é do olhar vazio de Lenny para a cena.
Voltar ao lar é um texto dramático com muitas camadas possíveis de leitura e de interpretação. Como todo texto teatral, sua realização plena acontece no momento de sua encenação, sendo a leitura uma possibilidade parcial de compreensão da potência escondida nas entrelinhas das falas, dos gestos sutilmente indicados e das mudanças de ambiente. O que não nos impede de, ao lê-la, traçarmos um panorama das fraturadas relações entre os membros desta marcante família, de suas feridas latentes, de sua desintegração e de sua aparente pacificação final, indicando que "a entrada nos quartos escuros da opressão" pretendia pela obra de Harold Pinter é uma viagem sem volta, como é sem volta o empobrecimento do homem contemporâneo num mundo de destroçadas relações. Sim, é o capitalismo e as relações de exploração que ele estabelece que corroem o afeto desta família que tenta manter uma aparência de união, ainda que precária. São eles também que engolem a frágil Ruth. Mas é ela quem, ao final, subjuga dos homens de família, mostrando quem eles verdadeiramente são, quem verdadeiramente (ainda) somos todos nós. Daí ser injusta a ideia de envelhecimento do teatro de Pinter e da falta de ocasião de seu Prêmio Nobel. Suas peças, retratos estilhaçados do nosso mundo, permanecem para além de atuais: restam vivíssimas.
Jorge Verly
PINTER, Harold. Volta ao lar. Trad. de Millôr Fernandes. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
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