sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Encontro com o mar, de Pär Lagerkvist




Olá,



O Prêmio Nobel de Literatura de 1951 foi concedido ao escritor sueco Pär Lagerkvist (1891-1974), premiado em razão "do vigor artístico e verdadeira independência de espírito com a qual ele se esforça em sua poesia para encontrar respostas para as eternas perguntas que a humanidade enfrenta", como se lê na nota emitida pelo comitê julgador para justificar a distinção. De fato, Lagerkvist tem sua obra marcada pela investigação profunda acerca dos antípodas "espiritualidade" e "ceticismo" e dos embates entre o bem e o mal (e suas ressonâncias no espírito humano). Escolhendo frequentemente como cenário para suas tramas momentos da Antiguidade ou do Medievo, sua prosa, não obstante, vale-se de todas as liberdades modernas e resulta elegante e reflexiva, tal como os temas eleitos pelo autor. 

Dentre seus romances, merecem destaque Barrabás (1950), obra que explora o tema do ceticismo cristão a partir da figura do ladrão solto pela multidão em lugar de Jesus, e O anão (1944), relato cruel sobre Picollino, um anão e bobo de uma corte italiana no período renascentista e que, entre vilanias e maldades, exibe sem piedade a face horrível do homem em meio a um mundo hostil e socialmente injusto. Para esta resenha, elegi o breve romance Encontro com o mar (1962), escrito já próximo ao fim da vida do autor e representando uma síntese de seus trabalhos, uma síntese nem por isso menos profunda, menos lírica.

Empreendida como uma continuação do romance A morte de Ahasverus, a narrativa retoma a personagem Tobias, homem cuja vida pregressa fora marcada por uma absoluta devassidão e uma inveterada descrença, mas que agora, recém convertido ao cristianismo, realiza uma viagem à Terra Santa, razão pela qual é também referido no livro como "O peregrino". No entanto, como a marca distintiva da ficção de Lagerkvist é a abordagem das dualidades presentes na existência humana, Tobias utiliza como meio de transporte para seu intento um navio pirata, especializado em pilhagens e contrabando e que é habitado por tipos tão exóticos quanto tortos de caráter, a começar pelo capitão da embarcação, um homem minúsculo e de voz frágil, mas que mantém sob jugo autoritário toda a sua tripulação. Há o Gigante, homenzarrão de poucas palavras e gestos grosseiros, perito em pilhagem e ataques, nos quais intimida as tripulações assediadas com sua monstruosa compleição. Há Ferrante, homem de péssima índole e insaciáveis desejos por riquezas, o único capaz de enfrentar o capitão. E há Giusto, franzino e por vezes bobalhão, há tanto tempo no navio que, se algum dia teve caráter, acabou por perdê-lo no convívio com perdulários como aqueles piratas. 





Mas a figura com a qual o Tobias estabelece um contato mais próximo é Giovanni, italiano e ex-padre que deu por parar naquele navio pirata. As conversas entre Tobias e Giovanni acabam por configurar-se como verdadeiras preleções deste último, uma vez que o ex-sacerdote, assumindo a posição de mestre do indefeso peregrino naquele literal covil de piratas, ensina-o sobre a vida no navio, adverte-o a respeito das duvidosas personalidades dos outros tripulantes e explica-lhe a natureza dos "trabalhos" ali desempenhados. E é a partir da figura de Giovanni que Lagerkvist empreende sua instigante investigação acerca das dualidades humanas: tendo sido padre e sendo agora pirata - leia-se "fora da lei, dos homens e de Deus" -, ele concentra em seu discurso e em seus gestos os elementos do bem e do mal, do sagrado e do profano, do mundano e da busca pelo celestial. 

E é com Giovanni que Tobias aprende um novo catecismo, regido pela figura do mar - que terá uma importância simbólica ao longo do romance - e sua perene incerteza. É, pois, ele quem diz ao seu catecúmeno: 


" - Aprende-se muita coisa com o mar. Olhe, a gente pode percorrer países e países, varar campos e grandes cidades jamais vistas, palmilhar toda a vasta terra e jamais aprender tanto como se aprende com o mar. O mar sabe mais do que todas as coisas restantes da terra, se você procurar aprender com ele. Conhece todos os segredos antigos, por ser ele próprio tão velho: mais velho do que todas as coisas. Conhece os segredos de você também, não tenha dúvida. Se se lhe entregar inteiramente e o deixar reinando, se não se detiver em ninharias, não esperar que lhe ouça os fúteis resmungos enquanto ele estiver rugindo e açoitando o barco, então ele poderá trazer paz à sua alma. Se tiver alma. E se a paz é o que procura. Ignoro isso, e não é da minha conta. (...) Enquanto não aprendermos a deixar-nos levar pelo mar, a render-nos totalmente a ele, e a cessar de atormentar-nos por causa da justiça e da injustiça, da verdade e do erro, do bem e do mal, por causa da salvação, da graça e da condenação eterna, por causa do diabo e de deus e suas estúpidas contendas. Enquanto não nos tornarmos tão indiferentes e livres como o mar e não nos deixarmos levar, sem destino, para o desconhecido, totalmente entregues ao desconhecido: à incerteza como única certeza, única coisa realmente digna de confiança depois que tudo foi dito e foi feito. Enquanto não aprendermos tudo isso." (p. 9-11)


Giovanni expõe sua visão exótica da vida medida pela síntese marítima: daí o encontro sugerido pelo título e que Tobias, vai experienciar ao longo da narrativa. É nessa toada, por exemplo, que após a "aula" de Giovanni, quando encontramos o navio pirata pilhando as riquezas e linchando a tripulação sobrevivente de um navio de peregrinos naufragado, veremos Tobias aterrorizado ao observar a selvageria do ataque e disputa pela partição de seus despojos - sem se cogitar sequer o socorro aos náufragos - e o ex-padre à parte, observando tudo, num gesto sempre professoral, como quem diz: não tomemos parte nisso, são paixões humanas, são descidas ao estágio primitivo, são adesões ao mal que, ao fim e ao cabo, assemelham-se a uma cega busca pelo bem e pelo caminho da santidade.


Em dado momento da leitura, naturalmente, somos levados a questão central, mobilizadora do romance: que trauma, que fissura, que terrível experiência viveu Giovanni para ter desenvolvido uma visão tão estoica da vida e de seus dilemas? A revelação é feita a Tobias sob a forma de um denso monólogo após uma noite de bebedeira, quando os dois amigos, deitados na proa e olhando céu repleto de estrelas, estão próximos e abertos à íntimas revelações. Giovanni começa dizendo que, desde a infância, foi criado pela mãe viúva com o propósito de tornar-se sacerdote. O ex-padre narra a felicidade da vida eclesiástica e a até então genuína fé em Deus e a irrestrita observância aos dogmas católicos. Certo dia, em substituição ao pároco de sua igreja, ele é designado a ouvir a confissão de uma mulher casada e que escolhera a afastada igrejinha de Giovanni justamente para aliviar seu tormento. Sofregamente, ela narra sua paixão adúltera (mas ainda não consumada) por um outro homem - cujo retrato ela traz num camafeu junto ao pescoço - e os tormentos de sua alma, perdida entre a necessidade de resistir ao pecado e a chama daquela paixão que a devora. A confissão termina abruptamente, mas alguns dias depois a mulher retorna e retoma sua triste história. É então que Giovanni, subitamente enredado pela mulher - da qual só conhece a voz - , passa a cobiçá-la sexualmente, rendendo-se pela primeira vez na vida a um desejo que a vida sacerdotal até então interditara. E tudo concorre para que, naturalmente, os dois se entreguem a esta paixão:


"Na minha memória, essa noite está envolta em tépida ofuscação; a nada mais recordo de modo inteiramente igual. Não a lembro claramente, mas como algo quase irreal - lembro-a como a um todo, como algo muito fundo, como noite. Embora haja corrida tanto tempo, ainda conserva a mesma vida em mim e é como jamais tivesse experimentado qualquer outra coisa. Através da escuridão cheia de calor, ouço-a sussurrar com sua voz inesquecível.

- Nunca deixes os meus lábios... nunca sozinha outra vez...  nunca mais...

Estávamos ambos tão famintos que parecíamos insaciáveis. Passamos quase toda a noite aplacando-nos, pois foram muitas vezes que voltamos à unidade." (p. 78)

O padre Giovanni não é o homem que ela ama. No entanto, há o desejo e a mulher vê nele a possibilidade de desafogo. Os dois passam a se encontrar frequentemente, mergulhando numa relação marcada por satisfação sexual e recriminação pecaminosa. Tempos depois, o caso é descoberto pelo marido da mulher e pela mãe de Giovanni, que o entrega às autoridades eclesiásticas, cega de ódio pelo desvirtuamento do caminho de santidade que ela traçara para o filho. O escândalo resulta na excomunhão do padre, que abandona a cidade e adere ao navio pirata, passando a levar uma vida errante e praticamente ateia. Para ele, tal como narra a Tobias, o navio é um lugar a cima de Deus e do Diabo, do amor e do ódio, um lugar cujo único juiz possível e implacável é o mar. 

Quando Giovanni termina de contar sua história, Tobias pergunta o que foi feito do mulher. O ex-padre responde que, tempos depois, soube que o marido a perdoara, mas lhe impôs como pena a clausura em seu próprio quarto, do qual só saiu para uma peregrinação à Terra Santa. Porém, ela não chegou a desembarcar: ao avistar o porto, foi tomada de emoção e morreu subitamente. Este trágico desfecho enceta a reflexão final de Tobias que, assim como a infeliz mulher, também se dirige até Jerusalém: a verdade existe, mas nunca chegaremos a ela. A cena final mostra o barco avançando pelo mar, sem nenhum destino. 

Descontados os arroubos (e certa previsibilidade) da narrativa, Encontro com o mar configura-se como uma obra síntese do projeto estético de Pär Lagerkvist, como dito antes. Tendo como núcleo a triste história de Giovanni - que é, ao fim e ao cabo, o verdadeiro protagonista do livro -, o autor constrói fundas reflexões sobre a natureza humana, sobre o relacionamento antitético entre Deus e os homens e, sobretudo, sobre a impossibilidade de redenção, que viria com o conhecimento da verdade - mas verdade não há, conforme vimos. O que resta após a leitura, para além da experiência estética, é o sentimento de empatia, de reconhecimento. Mesmo distantes no tempo e mesmo não nos entregando às paixões ali narradas, é como se olhássemos num espelho e disséssemos: realmente, este sou eu, sou assim, sou humano como estes personagens. 


Jorge Verly


Referência da leitura: LAGERKVIST, Pär. Encontro com o mar. Trad. de Juvenal Jacinto. Porto Alegre: Globo, 1965. 

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