segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Confidência africana, de Roger Martin du Gard



Olá,


Nas primeiras décadas do prêmio, era comum que o Nobel fosse atribuído a um autor por um livro específico em lugar de premiar o conjunto da obra por ele produzida. O caso mais célebre é o de Thomas Mann, premiado em 1929 por seu romance Os Buddenbrooks. Algumas décadas depois, a Academia Sueca abriu uma discussão sobre a possibilidade de laurear Mann uma segunda vez, dada a grandiosidade das obras escritas após este romance, como A montanha mágica e Doutor Fasto. O fato é que a escolha de uma obra específica como justificativa para o Nobel tem como consequência a "ofuscação" do restante da produção do premiado. Foi esse o caso do autor francês Roger Martin du Gard (1881-1958), laureado em 1937 "pela força artística e verdade com que descreveu os conflitos humanos, bem como alguns aspectos fundamentais da vida contemporânea em seu ciclo de romances Les Thibaut". Assim como o livro de Mann, a saga familiar composta por du Gard foi a principal razão para que a Academia Sueca lhe atribuísse o Nobel. No entanto, também como Mann, a obra do escritor francês é muito mais ampla que este - inegavelmente esplêndido - conjunto de romances mencionado nas razões para a atribuição do prêmio. 

E dela escolhi ler e resenhar uma pequena joia. Digo pequena tanto por seu tamanho diminuto - menos de setenta páginas -, como pela potência dramática que traz condensada em si. Trata-se de Confidência africana, novela publicada por du Gard em 1931 e que versa sobre um dos mais espinhosos tabus da literatura (e da própria vida em sociedade): o incesto. Muito já se escreveu sobre o amor entre aqueles que partilham a mesma sanguinidade, desde as narrativas bíblicas (vide a história de Lot e suas filhas) até obras de forte carga erótica (e de gosto duvidoso) como as de Anaïs Nin, passando por obras de grande beleza e impressão artísticas, como é o caso de Os Maias, do português Eça de Queiroz. O que distingue esta pequena narrativa de Roger Martin du Gard é, por um lado, o caráter de verosimilhança (a partir do recurso da autoficção, conceito ainda não formulado quando da escrita do livro) empregado à obra e, por outro, a clareza e, por que não dizer, naturalidade com que os fatos vão sendo contados, tal como a ideia mesma de confidência (ou confissão) presente no título do livro. 

A história começa quando um escritor - o autonomeado du Gard, autor e personagem colateral do relato - visita um sobrinho em um sanatório para tuberculosos em Font-Romeu. Ali conhece Leandro Barbazano, um livreiro italiano que vive em uma região não-designada (pelas razões que vamos conhecendo ao longo da leitura) no norte da África, e seu desafortunado sobrinho Michele, jovem que passara a integralidade de sua breve vida doente e que morrerá três dias depois da chegada de du Gard. A beleza da figura de Michele após a morte impressiona-o de tal modo - "(...) seu perfil de príncipe tinha a delicadeza de uma matéria esculpida", p. 13 - que vê-se obrigado a aproximar-se do tio para saber mais sobre a existência daquele desafortunado jovem. E dessa proximidade surge o convite para que du Gard visite-o em África, onde é recebido com efusivos jantares e reuniões, tal como uma celebridade. 




Em África, na inominada cidade de Y., o escritor vê-se obrigado a uma convivência com os pais de Michele, que dirigem com Leandro a maior livraria da cidade. Enquanto o pai é silencioso e senhorial, a mãe, Amália (irmã de Leandro), é glutona, barulhenta e repleta de filhos em redor de si. Du Gard, ao conversar com o casal sobre o filho falecido, nota como a mãe mal disfarça uma espécie de desprezo por ele, enquanto o pai lacrimeja em silêncio quando questionado sobre Michele. Algum tempo depois, o narrador decide retornar à França e Leandro, que tem negócios a resolver em Marselha, vai como ele. E é aí, à bordo do navio que cruza o Mediterrâneo, que este revela-lhe o segredo maior de sua vida: dá-se, por fim, a confidência africana. 

Recuando no tempo, Leandro começa contando a respeito da morte prematura da mãe e a criação severa e distante dispensada pelo pai aos dois irmãos: 

"Fomos, minha irmã e eu, educados pelo pai. Minha mãe morreu quando eu tinha três anos, não lembro nada dela. Amália, quatro anos mais velha, tinha, então sete. O pai era duro e autoritário. Não gostávamos dele. Vê, tinha dito que ia ser franco. Era filho dum italiano que possuía uma tenda de jornais. Ele próprio manteve por tempos o negócio. Mas pouco a pouco aumentou o capital e abriu esta livraria. Era quase iletrado, teve trabalho. Quando se casou, pela segunda vez, com a mãe, já era um homem de idade. Minha irmã e eu só conhecemos um velhote de cavanhaque branco, com os dentes ruins, uma pele enrugada e gasta, sabe, como de papel molhado que se deixou ao sol. Não o beijávamos nunca". (p. 33-34)

Em meio a essa educação terrível e distante, os irmãos contavam apenas um com o outro. Em dado momento da passagem da infância para a adolescência, Amália e Leandro passaram a dividir um quarto no andar de cima da casa, na anteloja da livraria, pois o pai casara-se (pela terceira vez) com a empregada da família. Viviam tal como dois "camaradas", dividindo segredos sobre suas vidas amorosas: ela tinha um namorado, ele tinha pequenos casos com garotas da escola. Algum tempo depois, Leandro enamora-se de uma vizinha, Ernestina, com quem tem sua iniciação sexual. É então que Amália passa a apresentar um comportamento arredio e feroz em relação ao irmão, logo interpretado por ele como sendo ciúmes. Eles agridem-se, censuram-se, evitam-se. Mas, de maneira  abrupta, essa virulência passa a um estágio de desejo feroz. Ambos vão percebendo que os ciúmes de Amália contém, na realidade, uma forte carga sexual, produto do convívio próximo entre os irmãos ao longo dos anos. E numa das brigas entre eles, a voltagem erótica desprendida é tão forte que a consumação do incesto resulta inevitável:

"(...) Estávamos no escuro. Eu, com toda a raiva. Ela também. Era sólida. Me esforçava por dominá-la, jogar no chão, com o claro fim de lhe bater e tirar a vontade de reincidir. Os dois estávamos de camisola, um contra o outro, no escuro, lutando como furiosos. Acabei levantando-a. Ela me arranhava a nuca. Sentia em sua carne ainda quente da cama o cheiro que respirei um noite inteira no corpo de Ernestina. Com um golpe brusco, fiz ela dobrar os rins e derrubei sobre o colchão. Nesse momento, me vi preso entre suas pernas, nuas, que ela fechava atrás de mim. Vacilei. Caí sobre ela. Confesso que já restava pouco de minha cólera - o bastante para exasperar meu desejo. Então busquei seus lábios com raiva. Creio que ela já me estendia sem jeito os seus..." (p. 51-52)

O modo quase telegráfico com que a confidência é feita, com frases entrecortadas e abruptamente encerradas, para serem retomadas logo em seguida, reproduz os sentimentos, conflitantes e intensos, que acometeram os irmãos no noite de seu "fato consumado". Curiosamente, na narrativa feita ao escritor, não encontramos por parte de Leandro o componente de pecado. De fato, o fator religioso está ausente de sua perspectiva narrativa. E é justamente isso que confere ao relato o caráter de clareza e naturalidade - ainda que sofregamente, tal como apontei - que lhe é característico. 

Os irmãos vivem "maritalmente" durante quatro anos, de forma intensa e sempre dispostos a satisfazer seus desejos sexuais. Podemos dizer que amam-se como irmãos e como homem e mulher. Até que o pai intromete-se na felicidade desta situação: ignorando absolutamente que os filhos vivam incestuosamente, o velho decide que está na hora de Amália tornar-se mulher e planeja casá-la com Luzzati, sócio da livraria - aquele a quem encontramos silencioso e lacrimejante no início da novela. Não desejando separar-se, Amália sugere a gravidez. Mas Leandro é convocado para o serviço militar. Amália casa-se com Luzzati, logo descobre-se grávida. É então que, para o escritor du Gard, dá-se a revelação de que Michele era, na verdade, filho de Leandro e Amália, o que justificaria sua saúde precária, fruto da consanguinidade dos pais. 

Passa o tempo, Amália tem mais filhos, Leandro vai viver em definitivo na França. Depois, retorna a Y. e passa a morar com a irmã e o cunhado, compartilhando com eles também a direção da livraria que herdam após a morte do pai. Os dois jamais falam do que ocorreu entre eles e, digamos, têm uma existência de certo modo feliz em família. O único elemento que recorda o passado é o doente Michele. Enquanto Amália lhe é fria e distante, o tio-pai cuida dele com tal zelo que não podemos deixar de ver nisso uma forma de expiação e culpa. Focando o encerramento da novela na relação entre Leandro e Michele, o narrador termina conde começou: sua atração pela figura do pobre jovem morte na cama revela-se o elo entre o presente e o passado, entre o dois irmãos e o amor danado que os envolveu na juventude. 

No final da narrativa, encontramos du Gard, agente e autor, em casa, refletindo sobre o que Leandro lhe contou em sua confissão na travessia mediterrânea. Trata-se de uma análise metalinguística da narrativa (uma espécie de pequeno livro dentro do livro). Ali ele se purga do modo como antes pintara a figura de Amália, vista como uma antipática mulher de seios sempre fartos a dar de mamar a uma criança chorosa e a ralhar com as outras que lhe rodeavam, gulosa e altissonante. Permite-se rivalizar esta odiosa mulher de agora com sua figura de vinte anos atrás, doce e jovem, perdidamente apaixonada pelo irmão, comparação somente possível a partir da enunciação da confidência de Leandro. E é este componente que faz da novela de Roger Martin du Gard uma pequena joia, tal como dito. O livro antecipa algumas discussões que serão feitas pela literatura e pela teoria ao longo do século XX, como o dado autoficcional (a naturalidade com que du Gard se imiscui na história, sem artifícios ou invenções, simplesmente começando com "Há alguns anos, durante uma viagem que fiz...", pondo logo em seguida sem nome, Senhor du Gard, é exemplo disso) e o rompimento entre as fronteiras entre literatura e memória (sim, pois ainda hoje não podemos dizer que se a história é ficcional ou não). Arte e verdade, memória e invenção, ficção e realidade, autor e personagem: são estas as dualidades que fazem a grandeza deste pequeno livro. Uma prova de que seu autor é mais que apenas o autor de Os Thibault e que mereceu seu Prêmio Nobel também por outras e tão importantes obras. 


Jorge Verly 

Referência da leitura: GARD, Roger Martin du. Confidência africana. Trad. de Paulo Hecker Filho. Porto Alegre, L & PM, 1983.

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