Em 2011, vencendo os brios de premiar mais uma vez um autor local, a Academia concedeu o Prêmio Nobel de Literatura ao poeta sueco Tomas Tranströmer (1931-2015) porque, "pelas suas condensadas e lúcidas imagens, nos deu um novo acesso à realidade", conforme lemos na exposição dos motivos para a concessão da honraria. Se por um lado as reservas dos suecos se justificassem pelo receio de novas acusações de bairrismo, por outro elas caíram por terra tão logo o anúncio foi feito: houve um consenso, interno e externo, de que Tranströmer era digno do Nobel que lhe fora atribuído e que, inclusive, já deveria ter sido premiado há mais tempo. Autor de uma obra concisa, mas profundamente marcada pela evocação de ideias e de construções imagéticas com alto poder de reflexão sobre o existente, ele há muito era reconhecido como um dos mais importantes autores de poesia em atividade, dentro e fora do mundo nórdico. Embora tenha sido vítima de um AVC nos anos 1990 e que lhe retiraram a fala e comprometeram a capacidade motora, Tranströmer seguiu escrevendo e publicando livros até sua morte, apenas quatro anos após a atribuição do Nobel.
Espantosamente, até 2011 o público brasileiro não-leitor em língua sueca não tinha acesso a nenhuma de suas obras, com a exceção de uma pequena coletânea de poemas-haiku publicados pela revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional e que, em face da curiosidade despertada pelo Nobel, foram republicados por vários veículos da imprensa ainda naquele ano. Foi só em 2018 que, graças aos esforços da tradutora Márcia Sá Cavalcanti Schuback, saiu o primeiro livro contendo parte significativa da produção do autor, vertida diretamente do sueco: Mares do leste, uma reunião de poemas de quatro livros de Tranströmer (Mares do leste, Gôndola lúgubre, Prisão e Grande enigma), além de poemas esparsos e inéditos e de seus conhecidos poemas-haikus. Foi, claro, a edição que me coube ler e dela selecionar os poemas discutidos nesta postagem.
Começo com "Paisagem com sóis" (1996), que reproduzo integralmente abaixo:
O sol passa pela parede da casa
se coloca no meio da rua
e respira sobre nós.
com seu sopro vermelho.
Innsbruck, tenho que te deixar.
Mas amanhã
haverá um sol incandescente
na floresta cinza meio morta
onde vamos trabalhar e viver.
(p. 69)
Este poema, como tantos outros da produção tranströmeriana, evidencia os caracteres apontados pelos críticos como sendo a marca distintiva do autor: o poder de síntese e a perícia em condensar nela imagens-reflexos do/sobre o mundo. A cena nele montada, em tudo simples, descreve a partida do eu-lírico do lugar de férias para a realidade de trabalho e rotina que o espera após seu regresso. No entanto, em lugar de uma construção descritiva, o poeta escolhe apoio na imagem crua do sol e sua onipresença ("passa pela parede da casa / se coloca no meio da rua") sobre o lugar e o ser que se encontra de partida ("Innsbruck, tenho que te deixar"), para dali retomar seus dias tristes ("na floresta cinza meio morta") em que lhe cabe existir ("onde vamos viver e trabalhar"). Assim, toda a carga de pesar e de nostalgia do lugar, regida pelo império do sol, é adivinhada - melhor: transmitida - pelo leitor a partir do conjunto de versos-imagens em sucessão. Outro ponto de destaque na leitura do poema é seu caráter de espera, uma vez que tudo o que acontece evidencia o que ainda irá acontecer, i. e., a partida ("Mas amanhã / haverá um sol incandescente") é algo pertencente ao plano posterior, o devir, não havido, mas já posto, determinado justamente pela predominância da natureza em face do homem: notem que o sol não respira "entre", mas "sobre nós", lá e cá.
Outro poema-síntese é "Rochedo de uma águia" (2004). Vejamos:
Atrás do vidro do terrário
répteis
estranhamente imóveis.
Uma mulher pendura a roupa
no silêncio.
A morte está parada.
No fundo do solo
minha alma desliza
calada feito cometa.
(p.115)
O título já evidencia a recolha de uma imagem supostamente à esmo, não nomeada, mas por isso mesmo universal (a mônada, a parte que contém o todo): a ideia de "Rochedo de uma águia", sem artigo inicial ou dêitico de lugar/ propõe o discurso do ponto-de-vista de qualquer rochedo, a partir do qual seria possível à águia vislumbrar as mesmas imagens construídas pelo/no poema. Seu mote central é a morte. Ou melhor, a suspensão: a águia, cuja simbologia está ligada, entre outras coisas, à imponência, representa o olhar da morte que observa o mundo pelo filtro da suspensão. É assim que os animais no terrário apresentam-se "estranhamente imóveis" e a mulher estende sua roupa "no silêncio". O reino animal (no qual a águia distingue-se por sua visão superior e em plano panorâmico) é posto em compasso de espera ante a própria paralisa da morte, ela própria em interrupção de suas atividades ("A morte está parada") sob a vigilância do olhar da ave. O movimento, nesse sentido, fica por conta do eu-lírico, deslocado da(s) cena(s) do poema ("No fundo do solo / minha alma desliza") e que empreende uma espécie de fuga, a um só tempo silenciosa e evidente: "calada feito cometa". A imagem do cometa em muda travessia pelo espaço do texto do poema sugere que ele, o eu-lírico, escapa da morte, de sua suspensão e do controle exercido pelo águia. Outra leitura possível seria a de que tudo encontra-se em espera justamente para permitir sua passagem; é pertinente imaginar que, após a travessia, tudo voltará a ocorrer, a morte continuará fazendo suas vítimas sob o olhar imperturbável, implacável da águia.
Destaco ainda alguns dos poemas-haiku, todos sem título e que constituem o exemplo mais bem acabado de uma poética de condensação dos seres e do mundo em um mínimo espaço formal, gerando, em contrapartida, um profusão de significados a serem apreendidos pelo leitor: em "Pelas varandas / gaiola raiando o sol - / um arco-íris" (p. 133), temos os clássicos antitéticos prisão (gaiola) e liberdade (arco-íris); em "O fogo, azul / levanta do asfalto / como mendigo" (p.159), lê-se a ferocidade dos elementos naturais e a incompreensão de sua marginalidade (o mendigo); em "Olha, eu sento / como um barco sem mar / Aqui sou feliz" (p. 179), a aceitação da falta (barco sem mar) e a construção de um sentido de felicidade a partir dela"; em "Vento divino. / Tiro que chega sem som - / um sonho bem longo" (p. 209), novamente a pacificação da morte (tiro sem som), personificada na tranquilidade e na inescapabilidade (o vento divino) daquilo que existe; já em "Pássaros homens. / Macieiras viram flor. / Grande enigma" (p. 2015), haiku que encerra o livro, temos o homem diante do absurdo das coisas (pássaros transmutados em homens, árvores em flores) e que, em lugar do desespero, prefere o espanto de sua não-decifração (o grande enigma). Em suma, nesses pequenos poemas de três versos há o sempre imprescindível momento em que tudo conflui na essência das coisas, ainda que sua decodificação signifique empreender novas viagens em busca de outros sentidos que, qual miragem, escapam e excitam o leitor em sua procura.
A poesia de Tomas Tranströmer vale-se dos elementos da tradição, não se fiando em inovações e experimentações formais, como visto nos poemas aqui comentados. Sua potência vem daquilo que dizem, i. e., da recolha do mundo e sua tradução em imagens e evocações nela presentes, criando, para aludir ao verso da canção*, "mundos no mundo". E o mundo e os mundos do poeta sueco são infinitos, o que resulta numa espécie de benção para o leitor: é possível percorrê-los também infinitamente, sempre à cata de novos prazeres estéticos, novas descobertas, novos sentidos. Novas vidas. E o que é a grande poesia - daí a justeza do Nobel atribuído a Tranströmer - senão a possibilidade de criar "novos acessos à realidade"?
Jorge Verly
Referência da leitura: TRANSTRÖMER, Tomas. Mares do leste. Trad. de Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
*Trata-se de "Livros", de Caetano Veloso.
Começo com "Paisagem com sóis" (1996), que reproduzo integralmente abaixo:
O sol passa pela parede da casa
se coloca no meio da rua
e respira sobre nós.
com seu sopro vermelho.
Innsbruck, tenho que te deixar.
Mas amanhã
haverá um sol incandescente
na floresta cinza meio morta
onde vamos trabalhar e viver.
(p. 69)
Este poema, como tantos outros da produção tranströmeriana, evidencia os caracteres apontados pelos críticos como sendo a marca distintiva do autor: o poder de síntese e a perícia em condensar nela imagens-reflexos do/sobre o mundo. A cena nele montada, em tudo simples, descreve a partida do eu-lírico do lugar de férias para a realidade de trabalho e rotina que o espera após seu regresso. No entanto, em lugar de uma construção descritiva, o poeta escolhe apoio na imagem crua do sol e sua onipresença ("passa pela parede da casa / se coloca no meio da rua") sobre o lugar e o ser que se encontra de partida ("Innsbruck, tenho que te deixar"), para dali retomar seus dias tristes ("na floresta cinza meio morta") em que lhe cabe existir ("onde vamos viver e trabalhar"). Assim, toda a carga de pesar e de nostalgia do lugar, regida pelo império do sol, é adivinhada - melhor: transmitida - pelo leitor a partir do conjunto de versos-imagens em sucessão. Outro ponto de destaque na leitura do poema é seu caráter de espera, uma vez que tudo o que acontece evidencia o que ainda irá acontecer, i. e., a partida ("Mas amanhã / haverá um sol incandescente") é algo pertencente ao plano posterior, o devir, não havido, mas já posto, determinado justamente pela predominância da natureza em face do homem: notem que o sol não respira "entre", mas "sobre nós", lá e cá.
Outro poema-síntese é "Rochedo de uma águia" (2004). Vejamos:
Atrás do vidro do terrário
répteis
estranhamente imóveis.
Uma mulher pendura a roupa
no silêncio.
A morte está parada.
No fundo do solo
minha alma desliza
calada feito cometa.
(p.115)
O título já evidencia a recolha de uma imagem supostamente à esmo, não nomeada, mas por isso mesmo universal (a mônada, a parte que contém o todo): a ideia de "Rochedo de uma águia", sem artigo inicial ou dêitico de lugar/ propõe o discurso do ponto-de-vista de qualquer rochedo, a partir do qual seria possível à águia vislumbrar as mesmas imagens construídas pelo/no poema. Seu mote central é a morte. Ou melhor, a suspensão: a águia, cuja simbologia está ligada, entre outras coisas, à imponência, representa o olhar da morte que observa o mundo pelo filtro da suspensão. É assim que os animais no terrário apresentam-se "estranhamente imóveis" e a mulher estende sua roupa "no silêncio". O reino animal (no qual a águia distingue-se por sua visão superior e em plano panorâmico) é posto em compasso de espera ante a própria paralisa da morte, ela própria em interrupção de suas atividades ("A morte está parada") sob a vigilância do olhar da ave. O movimento, nesse sentido, fica por conta do eu-lírico, deslocado da(s) cena(s) do poema ("No fundo do solo / minha alma desliza") e que empreende uma espécie de fuga, a um só tempo silenciosa e evidente: "calada feito cometa". A imagem do cometa em muda travessia pelo espaço do texto do poema sugere que ele, o eu-lírico, escapa da morte, de sua suspensão e do controle exercido pelo águia. Outra leitura possível seria a de que tudo encontra-se em espera justamente para permitir sua passagem; é pertinente imaginar que, após a travessia, tudo voltará a ocorrer, a morte continuará fazendo suas vítimas sob o olhar imperturbável, implacável da águia.
Destaco ainda alguns dos poemas-haiku, todos sem título e que constituem o exemplo mais bem acabado de uma poética de condensação dos seres e do mundo em um mínimo espaço formal, gerando, em contrapartida, um profusão de significados a serem apreendidos pelo leitor: em "Pelas varandas / gaiola raiando o sol - / um arco-íris" (p. 133), temos os clássicos antitéticos prisão (gaiola) e liberdade (arco-íris); em "O fogo, azul / levanta do asfalto / como mendigo" (p.159), lê-se a ferocidade dos elementos naturais e a incompreensão de sua marginalidade (o mendigo); em "Olha, eu sento / como um barco sem mar / Aqui sou feliz" (p. 179), a aceitação da falta (barco sem mar) e a construção de um sentido de felicidade a partir dela"; em "Vento divino. / Tiro que chega sem som - / um sonho bem longo" (p. 209), novamente a pacificação da morte (tiro sem som), personificada na tranquilidade e na inescapabilidade (o vento divino) daquilo que existe; já em "Pássaros homens. / Macieiras viram flor. / Grande enigma" (p. 2015), haiku que encerra o livro, temos o homem diante do absurdo das coisas (pássaros transmutados em homens, árvores em flores) e que, em lugar do desespero, prefere o espanto de sua não-decifração (o grande enigma). Em suma, nesses pequenos poemas de três versos há o sempre imprescindível momento em que tudo conflui na essência das coisas, ainda que sua decodificação signifique empreender novas viagens em busca de outros sentidos que, qual miragem, escapam e excitam o leitor em sua procura.
A poesia de Tomas Tranströmer vale-se dos elementos da tradição, não se fiando em inovações e experimentações formais, como visto nos poemas aqui comentados. Sua potência vem daquilo que dizem, i. e., da recolha do mundo e sua tradução em imagens e evocações nela presentes, criando, para aludir ao verso da canção*, "mundos no mundo". E o mundo e os mundos do poeta sueco são infinitos, o que resulta numa espécie de benção para o leitor: é possível percorrê-los também infinitamente, sempre à cata de novos prazeres estéticos, novas descobertas, novos sentidos. Novas vidas. E o que é a grande poesia - daí a justeza do Nobel atribuído a Tranströmer - senão a possibilidade de criar "novos acessos à realidade"?
Jorge Verly
Referência da leitura: TRANSTRÖMER, Tomas. Mares do leste. Trad. de Márcia Sá Cavalcanti Schuback. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
*Trata-se de "Livros", de Caetano Veloso.