Olá,
Vicente Aleixandre (1898-1984) tinha quase 80 anos e era o mais consagrado poeta espanhol de sua geração quando foi anunciado como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1977, em razão de sua "escrita poética criativa que ilumina a condição do homem no cosmos e na sociedade atual, ao mesmo tempo que representa a grande renovação das tradições da poesia espanhola entre as guerras", conforme o anúncio oficial da Academia Sueca. De fato, a década de 1970 foi a que mais poetas o Nobel premiou: ao lado de Aleixandre foram escolhidos Pablo Neruda, Harry Martinson, Eugenio Montale, Odysseus Elýtis e Czeslaw Milosz. Diferentes entre si, a escolha desses autores evidencia uma tendência da Academia Sueca, naquela década, para os escritores de expressão essencialmente lírica.
A escolha do nome de Aleixandre causou espanto nas rodas literárias do mundo (ele era era pouquíssimo editado fora da Espanha), mas não em seu país natal, onde, ao lado de Rafael Alberti e Jorge Guillén, era um dos sobreviventes da Geração de 27, grupo de poetas, contistas, dramaturgos e prosadores espanhóis que, influenciados pela estética vanguardista das duas primeiras décadas do século XX, em especial o surrealismo, passou a renovar as letras espanholas. Sua produção se estendeu entre as décadas de 1920 e o início dos anos de 1980, alcançando imensa popularidade em seu país. Opositor do franquismo desde o início, Aleixandre não se exilou como fizeram muitos escritores espanhóis perseguidos. No entanto, foi sistematicamente censurado ao longo dos anos, o que de certo modo acentuou seu prestígio e sua avaliação nos meios literários de seu país. Mas não apenas por isso, como veremos.
Os críticos costumam assinalar duas fases distintas da escrita poética de Vicente Aleixandre. A primeira delas, iniciada na década de 1920 e estendendo-se até meados dos anos 1950, diz respeito à influência das imagens e visões experimentais advindas da influência surrealista, com o homem a transitar por lugares, sentimentos e sensações, tudo isso marcado por um formalismo experimental e vigoroso. Já a segunda fase, iniciada na segunda metade da década de 1950 e que vai até a morte do poeta, apresenta um Vicente Aleixandre menos preocupado com as experimentações de caráter de formal e mais centrado liricamente na figura do homem em meio ao existente e onde as imagens são acessórias à experiência de viver. No Brasil não há livros de Aleixandre publicados e mesmo em Portugal encontramos apenas uma Antologia de Vicente Aleixandre, editada em 1977 e fora de circulação. Por isso, para esta postagem, recorri à antologia Noche cerrada, em espanhol original e publicada em 1998. Curta, mas bastante significativa, apresenta poemas de todos os livros publicados em vida pelo autor, desde Ámbito (1928) até Poemas de la consumación (1974). Selecionei três deles para comentar. A tradução é minha, pelo que peço sinceras desculpas.
Comecemos pelo poema que dá título à antologia:
a noite desarmada. O vento
insinua surdas
batidas contra sua tela.
fria, sobre teu seio
sua grave seda, negra,
fechada. Resta oprimido
de noite, distinto, quieto
sobre o límpido plano
atrasado do céu.
Dobradiças polidas. O gelo
flutua à deriva
no alto. Frio lento.
sobre o contorno sério
e mudo bate, sinistra,
seu secreto chicote.
Flagelação. Corais
de sangue ou luz ou fogo
sob as sedas se anunciam,
cedem, fogem logo.
profunda. O vento vive
porque antecipa lufadas,
cruzes, pausas, silêncios.
Trata-se de um poema de claro toque surrealista, na clave da produção inicial de Aleixandre e que, conforme disse, demarca sua filiação à Geração de 27. Nele, a noite, fechada, transfigura-se ("Resta oprimido / / o vulto travestido / de noite") em crescente opressão. Ou mais, levando em conta o título e o próprio "clima" que o poema encena, a uma ideia de aprisionamento. Tanto eu-lírico (ou narrador terrível, diria) quanto o leitor são enfeixados em torno da noite assombrosa. E em meio a ela, o castigo ao mesmo tempo incorpóreo (a sombra) e físico (o chicote) impingido pela noite àqueles que a atravessam. Um castigo, no entanto, que não dura ("cedem, fogem logo") para dar lugar, ao fim da noite, a algo de luz que se insinua (ainda que uma "luz carnal"). Mas não é ela, a luz mortiça, que prevalece ao final da jornada noite adentro, mas sim aquilo que o leitor intui desde o início do périplo ("Campo nu. Apenas / a noite desarmada") e que, afinal se apresenta como chave-de-compressão do texto: "silêncios", palavra que podemos ler na linha final do texto. Dentro de uma perspectiva de escrita automática, adotada pelos escritores surrealistas (e, de certo modo, presente na própria concepção do movimento enquanto momento de abstração da arte e de construção de "sentido" a partir da montagem de imagens), podemos dizer que Vicente Aleixandre aqui leva essa premissa para uma espécie de surrealismo de horror (talvez presente, de certa visada, nos quadros de Dalí), i. .e, para a construção de imagens terríveis em busca de uma beleza presente no mistério e na incompreensão. E, friso, nos silêncios.
Outro poema que sinaliza a relação entre o poeta espanhol e a estética surrealista é "Poema de amor":
POEMA DE AMOR (1932)
Te amo sonho do vento
conflui em meus dedos esquecido do norte
nas doces manhãs do mundo de cabeça para baixo
quando é fácil sorrir pois a chuva é branda
oh peixes amigos dizei-me o segredo dos olhos abertos
do meu olhar que vai dar no mar
sustentando a quilha dos distantes barcos
Eu os amo – viajantes do mundo –, aqueles que dormem sobre a água
homens que vão à América em busca de suas roupas
os que deixam na praia sua ferida nudez
e sobre o convés do barco atraem os raios da lua
a prata e o ouro não alteraram o fundo
saltam sobre as ondas e sobre as espumas
e fazem música ou sonho para os cabelos mais louros
dos inúmeros povos que nas gemas tiveram
trevas vestidas de negro
e ao longe desenhadas nas costas.
é uma imensa pálpebra onde eu sei que existo
Lembra? Eu nasci para o mundo numa noite
em que somar e subtrair eram a chave dos sonhos.
em suas concêntricas ondas – sim – detidas
eu me movo e giro e procuro o central
caminho – viajantes do mundo – do existente futuro
para além dos mares que em meus pulsos batem
Ruínas de Numância
I
Nesta cidade morta há pó vivo.
Ao nível do chão passa o frio.
II
Oh, cidade mergulhada no silêncio!
Todas as casas chegam ao céu.
III
Entre colunas que não existem jazem,
distraídos e puros, todos os amantes.
IV
Os guerreiros são um fragor de espadas.
Eterna música em uma noite branca.
V
Dormes, donzela? Oh, não, nada perdes.
Considerada apenas, tua pupila é verde.
VI
Oh, majestade desse clamor total.
Feroz cidade sobre uma perpétua colina.
VII
A pedra descasca. Uma laje apenas.
Numância pronunciada, de pé, sólida.