segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Quase uma elegia, de Joseph Brodsky



Olá,



É evidente que num escopo pequeno de 116 laureados, o Prêmio Nobel de Literatura tenha cometido inúmeras  injustiças. Não me refiro aqui aos que foram premiados, mas àqueles que deixaram de sê-lo. É imperdoável que autores como Proust, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Julio Cortázar, James Joyce, ou Philip Roth tenham morrido sem recebê-lo. Mas também é verdade que, muitas vezes, o Nobel foi justíssimo com autores que mereciam realmente a medalha, o diploma e o milhão de coroas suecas que estão atrelados ao prêmio. Um desses casos foi o do poeta russo naturalizado americano Joseph Brodsky (1940-1996), premiado em 1987 em razão de "sua autoria abrangente, caracterizada por nitidez de pensamento e intensidade poética", nas palavras do comitê julgador. De fato, sua poesia tem como marcas distintivas a clareza com que esquadrinhou o mundo e a alta voltagem lírica que foi capaz de produzir em seu contato com os seres e as coisas sobre as quais escreveu. Nascido em Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial, a relação de Brodsky com as autoridades soviéticas foi sempre problemática e marcada pela dissidência política, embora ele se considerasse apolítico. Acusado de "parasitismo social", foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados no Ártico, permanecendo lá por dezoito meses. Perseguido pelas autoridades de seu país, foi expulso da União Soviética em 1972, emigrando para os Estados Unidos, onde lecionou em diversas universidades. Brodsky também passou a escrever em inglês, atingindo um conhecimento do idioma que muitos consideravam superior ao de outro ilustre conterrâneo e exilado na América que também adotou este idioma como expressão literária: Vladimir Nabokov, outro injustiçado pelo Nobel. O poeta morreu prematuramente de infarto em Nova York aos 55 anos de idade.

Embora o autor tenha tido uma traumática experiência política em seu país natal, a poesia de Brodsky apresenta uma espécie de "dissidência lírica" e não proeminentemente engajada. Ele sempre dizia que sua ojeriza às figuras de Lênin e Stálin se devia muito mais a onipresença de seus retratos por todo o país do que necessariamente por uma discordância ideológica de suas posições. Sua crítica se devia basicamente à interdição ao livre pensamento e à expressão artísticas em um regime totalitário. Daí sua obra se apoiar na busca por esta expressão, na clareza das ideias e na síntese imagética, sem esbarrar numa dicção política como ferramenta crítica.

Infelizmente, no Brasil não há obras integrais de Brodsky em tradução. Há apenas a coletânea de ensaios Menos que um (1986) e o romance em prosa poética Marca d´água (1992), uma homagem a Veneza, cidade onde ele foi enterrado. Quanto a sua poesia, o único livro disponível no Brasil é brevíssima antologia Quase um elegia, publicada pela Sete Letras em 1995 e com traduções de Nelson Ascher e Boris Schnaiderman. Trata-se de uma edição hoje raríssima e que será a base para as leituras e análises que aqui serão feitas. 

Começo com a transcrição do poema que titula o livro, escrito em 1968, ainda durante seu período soviético:

Também eu aguardei na colunata
da Bolsa, outrora, o fim da chuva fria.
Julgava-a dom de Deus. E era sensata 
minha suposição. Pois algum dia 
também eu fui feliz. Fui prisioneiro 
dos anjos. Combatia monstro horrendo.
Feito Jacó, fitava, sorrateiro,
uma beldade - rápido - descendo
a escada principal.
                              Aonde tudo
se foi. Sumiu. Olho janela afora:
o "aonde" acima, eu o escrevi, contudo,
sem ponto de interrogação. Agora 
é Setembro. Um trovão distante invade
meu ouvido. Eis um horto. Peras pensas,
cheias de seiva nas ramagens densas,
parecem signos de virilidade. 
E o ouvido admite, como gente avara,
parentes na cozinha, um som assíduo
de chuva que, na mente, sem chegar a 
música ainda, é mais do que ruído. 
(p. 17)


Pleno de sensações e com um métrica - que, não sei até que ponto, a tradução para o português logrou recuperar - que lembra o mote da chuva, este poema é bastante representativo da produção de Joseph Bordsky na medida em que se constrói não como uma elegia tradicional, mas como uma evocação a um tempo, e, em especial, a um dia (aquele em que o eu-lírico aguardou, na escadaria do antigo prédio da bolsa de valores de São Petesburgo/Leningrado e tendo com guarda a magnífica série de colunas do edifício) cuja memória é a chuva fina e a expectante presença de uma bela dama (que, afinal, não apareceu) que desceria com ele as escadas. Embora o poema remeta a um tempo feliz ("Pois algum dia / eu também fui feliz") e tenha como contraponto as então vicissitudes enfrentadas por Brodsky na União Soviética, o que resta é a sensação que, remodelada pela poética, torna-se um amálgama em forma de música, ainda que precária ("sem chegar a / música ainda, é mais que ruído"). Ou seja, sem subverter o gênero elegíaco, o poema termina com a evocação de uma felicidade que o eu-lírico esperar recuperar e suster, ainda que no espaço reduzido - e em seu tempo fugaz - do texto. Misturando estilos e temáticas (o bíblico ["dom de Deus", "prisioneiro dos anjos" e "Feito Jacó, fitava, sorrateiro"], locus amenus do estilo árcade ["eis o horto", "peras pensas" e "ramagens densas']), sua estética resulta numa síntese da própria história da poesia, densa e altamente comunicativa. 




Outro exemplo da estilística virtuosa, agora com um tom de humour, é "Explorador polar", um dos mais conhecidos poemas de Brodsky:


Devorados os cães. Não resta espaço
no diário. Há na foto, pois, da esposa,
um colar de palavras: bem na face, 
a pinta de uma data duvidosa. 
Sobre a foto da irmã nem titubeia:
registra a latitude que atingiu!
Negrejando, a gangrena, feito meia
de uma vedete, chega-lhe ao quadril.
(p. 29)


Uma mirada na biografia do autor nos leva a intuir que a temática do poema foi retirada de duas experiências da vida do poeta na União Soviética dos anos 1950-60: seu período como assistente em expedições de reconhecimento e recolha de elementos geológicos pelo país e, depois, sua prisão nos campos de trabalhos forçados em Arkhangelsk, na saída para o Ártico. A perícia poética de Brodsky transforma a terrível imagem de um hipotético explorador polar - perdido nas extremas latitudes do planeta, condenado pela gangrena provocada pelo frio extremo e já ensandecido pela impossibilidade de continuar - em um texto pleno de humor e ironia. A "narrativa" é construída, verso a verso, a partir das imagens em sucessão: o leitor tem a impressão de que observa fotografias que, à medida em que são passadas, montam o retrato completo da loucura daquele homem, faminto ("Devorados os cães"), ferido de morte ("a gangrena, feito meia / de uma vedete, chega-lhe ao quadril") e obcecado em continuar registrando sua jornada ("Sobre a foto da irmã nem titubeia: registra a latitude que atingiu!"). O texto pode ser lido como uma irônica ode em louvor da tenacidade humana, na medida em que nada mais resta à personagem que não registrar, registrar e registrar, não importando mais os laços de parentesco (os retratos da mulher e da irmã não são mais recordações da vida deixada na civilização, mas sim meros papéis a servir ao seu intento) ou mesmo a saúde (a negra meia que é sua perna gangrenada). Seu único intento - e é a imagem que permanece mesmo ao final da leitura - é atingir o extremo da zona polar e deixar um testemunho vivo de seu feito. 

Outro poema bastante célebre da produção do poeta russo é "Para Urânia" e que, evocando a leitura deste feita pelo também poeta e amigo W. H. Auden, é representativo de sua face "tradicionalista", i. e., da releitura da tradição poética empreendida em sua obra. Cito-o integralmente:


Tudo tem seu limite, mesmo a mágoa.
O olhar - folha na cerca - é cerceado
por vidro. Agites chaves, vertas água:
a solidão é o homem ao quadrado.
Um dromedário franze, ao cheirar trilhos,
o cenho. Descortina-se o vazio.
E o próprio espaço enfim, ele não consta
da ausência só de um corpo em cada ponto?
Por isso Urânia é mais velha que Clio.
De dia e à luz de cegos candeeiros,
vê que ela nada oculta e, olhando fixo
o globo, vê-se a nuca. Os bosques, ei-los,
repletos de mirtilos, rios onde, às
mãos nuas, há esturjões que se oferecem,
cidades cujas listas telefônicas 
já não te incluem. Ao sul, melhor, sudeste,
pardejam as montanhas, éguas correm 
selvagens entre amieiros; ficam fulvas
as faces. Singram longe os cruzadores,
e a amplidão - lingerie rendada - azula.
(p. 35)


Urânia a quem o poema é dedicado trata-se de uma das nove musas, filha de Zeus da deusa Memória (Mnêmosis) e protetora, entre outras coisas, da astrologia, sempre representada em tons de azul e segurando na mão esquerda o globo terrestre. A reconstrução de sua imagem empreendia pelo poema vale-se de uma filtragem da tradição pelo crivo da modernidade, i. e., o que Urânia observa ao fitar o globo não é o mundo antigo em que fora gerada, mas nossos tempos, povoados da densa solidão do homem moderno ("a solidão é o homem ao quadrado", certamente um dos mais inesquecíveis versos da produção brodskyiana). Sendo ela mais velha que a própria criatividade (Clio), representa a preponderância do mundo sobre a invenção, o que nos remete ao velho telos filosófico da dualidade entre o sujeito e o objeto, aqui belamente trabalhado pela capacidade imaginativa de Brodsky: e o que seriam os versos "há (...) / cidades cujas listas telefônicas / já não te incluem" senão uma reversão da dialética (nos moldes de um Adorno, por exemplo) que põe o sujeito como senhor do objeto? Mudando o conceito de lugar, é o mundo e seus elementos que, empunhados por Urânia, fizeram nascer o homem, como o poema faz crer. Ainda que todo o invento e toda a criatividade humana vicejem pelo globo terrestre ("Singram longe os cruzadores"), é ela quem tudo governa ("a amplidão - lingerie rendada - azula"). A (re)leitura da tradição aqui resulta na própria revelação da condição humana e de sua característica solidão.

Estes exemplos da obra de Brodsky reforçam o poeta formidável, o gigante da lírica e o esteta sempre preocupado com a imagem que ele foi. Os três poemas aqui (parcamente, reconheço) analisados, colhidos de sua produção sempre excelente, sozinhos justificariam sua escolha para a maior honraria literária do planeta. No entanto, é fácil perceber que não foi ele quem mereceu o Nobel, mas sim que foi o prêmio quem ganhou com sua eleição. Como disse antes, há lacunas irreparáveis na lista dos vencedores. Por isso, a escolha de um autor tão irrepreensível tem a função de uma reparação: sim, não premiamos Auden, Valéry ou Celan, mas premiamos Joseph Brodsky! 

Jorge Verly

Referência da leitura: BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Trad. de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Encontro com o mar, de Pär Lagerkvist




Olá,



O Prêmio Nobel de Literatura de 1951 foi concedido ao escritor sueco Pär Lagerkvist (1891-1974), premiado em razão "do vigor artístico e verdadeira independência de espírito com a qual ele se esforça em sua poesia para encontrar respostas para as eternas perguntas que a humanidade enfrenta", como se lê na nota emitida pelo comitê julgador para justificar a distinção. De fato, Lagerkvist tem sua obra marcada pela investigação profunda acerca dos antípodas "espiritualidade" e "ceticismo" e dos embates entre o bem e o mal (e suas ressonâncias no espírito humano). Escolhendo frequentemente como cenário para suas tramas momentos da Antiguidade ou do Medievo, sua prosa, não obstante, vale-se de todas as liberdades modernas e resulta elegante e reflexiva, tal como os temas eleitos pelo autor. 

Dentre seus romances, merecem destaque Barrabás (1950), obra que explora o tema do ceticismo cristão a partir da figura do ladrão solto pela multidão em lugar de Jesus, e O anão (1944), relato cruel sobre Picollino, um anão e bobo de uma corte italiana no período renascentista e que, entre vilanias e maldades, exibe sem piedade a face horrível do homem em meio a um mundo hostil e socialmente injusto. Para esta resenha, elegi o breve romance Encontro com o mar (1962), escrito já próximo ao fim da vida do autor e representando uma síntese de seus trabalhos, uma síntese nem por isso menos profunda, menos lírica.

Empreendida como uma continuação do romance A morte de Ahasverus, a narrativa retoma a personagem Tobias, homem cuja vida pregressa fora marcada por uma absoluta devassidão e uma inveterada descrença, mas que agora, recém convertido ao cristianismo, realiza uma viagem à Terra Santa, razão pela qual é também referido no livro como "O peregrino". No entanto, como a marca distintiva da ficção de Lagerkvist é a abordagem das dualidades presentes na existência humana, Tobias utiliza como meio de transporte para seu intento um navio pirata, especializado em pilhagens e contrabando e que é habitado por tipos tão exóticos quanto tortos de caráter, a começar pelo capitão da embarcação, um homem minúsculo e de voz frágil, mas que mantém sob jugo autoritário toda a sua tripulação. Há o Gigante, homenzarrão de poucas palavras e gestos grosseiros, perito em pilhagem e ataques, nos quais intimida as tripulações assediadas com sua monstruosa compleição. Há Ferrante, homem de péssima índole e insaciáveis desejos por riquezas, o único capaz de enfrentar o capitão. E há Giusto, franzino e por vezes bobalhão, há tanto tempo no navio que, se algum dia teve caráter, acabou por perdê-lo no convívio com perdulários como aqueles piratas. 





Mas a figura com a qual o Tobias estabelece um contato mais próximo é Giovanni, italiano e ex-padre que deu por parar naquele navio pirata. As conversas entre Tobias e Giovanni acabam por configurar-se como verdadeiras preleções deste último, uma vez que o ex-sacerdote, assumindo a posição de mestre do indefeso peregrino naquele literal covil de piratas, ensina-o sobre a vida no navio, adverte-o a respeito das duvidosas personalidades dos outros tripulantes e explica-lhe a natureza dos "trabalhos" ali desempenhados. E é a partir da figura de Giovanni que Lagerkvist empreende sua instigante investigação acerca das dualidades humanas: tendo sido padre e sendo agora pirata - leia-se "fora da lei, dos homens e de Deus" -, ele concentra em seu discurso e em seus gestos os elementos do bem e do mal, do sagrado e do profano, do mundano e da busca pelo celestial. 

E é com Giovanni que Tobias aprende um novo catecismo, regido pela figura do mar - que terá uma importância simbólica ao longo do romance - e sua perene incerteza. É, pois, ele quem diz ao seu catecúmeno: 


" - Aprende-se muita coisa com o mar. Olhe, a gente pode percorrer países e países, varar campos e grandes cidades jamais vistas, palmilhar toda a vasta terra e jamais aprender tanto como se aprende com o mar. O mar sabe mais do que todas as coisas restantes da terra, se você procurar aprender com ele. Conhece todos os segredos antigos, por ser ele próprio tão velho: mais velho do que todas as coisas. Conhece os segredos de você também, não tenha dúvida. Se se lhe entregar inteiramente e o deixar reinando, se não se detiver em ninharias, não esperar que lhe ouça os fúteis resmungos enquanto ele estiver rugindo e açoitando o barco, então ele poderá trazer paz à sua alma. Se tiver alma. E se a paz é o que procura. Ignoro isso, e não é da minha conta. (...) Enquanto não aprendermos a deixar-nos levar pelo mar, a render-nos totalmente a ele, e a cessar de atormentar-nos por causa da justiça e da injustiça, da verdade e do erro, do bem e do mal, por causa da salvação, da graça e da condenação eterna, por causa do diabo e de deus e suas estúpidas contendas. Enquanto não nos tornarmos tão indiferentes e livres como o mar e não nos deixarmos levar, sem destino, para o desconhecido, totalmente entregues ao desconhecido: à incerteza como única certeza, única coisa realmente digna de confiança depois que tudo foi dito e foi feito. Enquanto não aprendermos tudo isso." (p. 9-11)


Giovanni expõe sua visão exótica da vida medida pela síntese marítima: daí o encontro sugerido pelo título e que Tobias, vai experienciar ao longo da narrativa. É nessa toada, por exemplo, que após a "aula" de Giovanni, quando encontramos o navio pirata pilhando as riquezas e linchando a tripulação sobrevivente de um navio de peregrinos naufragado, veremos Tobias aterrorizado ao observar a selvageria do ataque e disputa pela partição de seus despojos - sem se cogitar sequer o socorro aos náufragos - e o ex-padre à parte, observando tudo, num gesto sempre professoral, como quem diz: não tomemos parte nisso, são paixões humanas, são descidas ao estágio primitivo, são adesões ao mal que, ao fim e ao cabo, assemelham-se a uma cega busca pelo bem e pelo caminho da santidade.


Em dado momento da leitura, naturalmente, somos levados a questão central, mobilizadora do romance: que trauma, que fissura, que terrível experiência viveu Giovanni para ter desenvolvido uma visão tão estoica da vida e de seus dilemas? A revelação é feita a Tobias sob a forma de um denso monólogo após uma noite de bebedeira, quando os dois amigos, deitados na proa e olhando céu repleto de estrelas, estão próximos e abertos à íntimas revelações. Giovanni começa dizendo que, desde a infância, foi criado pela mãe viúva com o propósito de tornar-se sacerdote. O ex-padre narra a felicidade da vida eclesiástica e a até então genuína fé em Deus e a irrestrita observância aos dogmas católicos. Certo dia, em substituição ao pároco de sua igreja, ele é designado a ouvir a confissão de uma mulher casada e que escolhera a afastada igrejinha de Giovanni justamente para aliviar seu tormento. Sofregamente, ela narra sua paixão adúltera (mas ainda não consumada) por um outro homem - cujo retrato ela traz num camafeu junto ao pescoço - e os tormentos de sua alma, perdida entre a necessidade de resistir ao pecado e a chama daquela paixão que a devora. A confissão termina abruptamente, mas alguns dias depois a mulher retorna e retoma sua triste história. É então que Giovanni, subitamente enredado pela mulher - da qual só conhece a voz - , passa a cobiçá-la sexualmente, rendendo-se pela primeira vez na vida a um desejo que a vida sacerdotal até então interditara. E tudo concorre para que, naturalmente, os dois se entreguem a esta paixão:


"Na minha memória, essa noite está envolta em tépida ofuscação; a nada mais recordo de modo inteiramente igual. Não a lembro claramente, mas como algo quase irreal - lembro-a como a um todo, como algo muito fundo, como noite. Embora haja corrida tanto tempo, ainda conserva a mesma vida em mim e é como jamais tivesse experimentado qualquer outra coisa. Através da escuridão cheia de calor, ouço-a sussurrar com sua voz inesquecível.

- Nunca deixes os meus lábios... nunca sozinha outra vez...  nunca mais...

Estávamos ambos tão famintos que parecíamos insaciáveis. Passamos quase toda a noite aplacando-nos, pois foram muitas vezes que voltamos à unidade." (p. 78)

O padre Giovanni não é o homem que ela ama. No entanto, há o desejo e a mulher vê nele a possibilidade de desafogo. Os dois passam a se encontrar frequentemente, mergulhando numa relação marcada por satisfação sexual e recriminação pecaminosa. Tempos depois, o caso é descoberto pelo marido da mulher e pela mãe de Giovanni, que o entrega às autoridades eclesiásticas, cega de ódio pelo desvirtuamento do caminho de santidade que ela traçara para o filho. O escândalo resulta na excomunhão do padre, que abandona a cidade e adere ao navio pirata, passando a levar uma vida errante e praticamente ateia. Para ele, tal como narra a Tobias, o navio é um lugar a cima de Deus e do Diabo, do amor e do ódio, um lugar cujo único juiz possível e implacável é o mar. 

Quando Giovanni termina de contar sua história, Tobias pergunta o que foi feito do mulher. O ex-padre responde que, tempos depois, soube que o marido a perdoara, mas lhe impôs como pena a clausura em seu próprio quarto, do qual só saiu para uma peregrinação à Terra Santa. Porém, ela não chegou a desembarcar: ao avistar o porto, foi tomada de emoção e morreu subitamente. Este trágico desfecho enceta a reflexão final de Tobias que, assim como a infeliz mulher, também se dirige até Jerusalém: a verdade existe, mas nunca chegaremos a ela. A cena final mostra o barco avançando pelo mar, sem nenhum destino. 

Descontados os arroubos (e certa previsibilidade) da narrativa, Encontro com o mar configura-se como uma obra síntese do projeto estético de Pär Lagerkvist, como dito antes. Tendo como núcleo a triste história de Giovanni - que é, ao fim e ao cabo, o verdadeiro protagonista do livro -, o autor constrói fundas reflexões sobre a natureza humana, sobre o relacionamento antitético entre Deus e os homens e, sobretudo, sobre a impossibilidade de redenção, que viria com o conhecimento da verdade - mas verdade não há, conforme vimos. O que resta após a leitura, para além da experiência estética, é o sentimento de empatia, de reconhecimento. Mesmo distantes no tempo e mesmo não nos entregando às paixões ali narradas, é como se olhássemos num espelho e disséssemos: realmente, este sou eu, sou assim, sou humano como estes personagens. 


Jorge Verly


Referência da leitura: LAGERKVIST, Pär. Encontro com o mar. Trad. de Juvenal Jacinto. Porto Alegre: Globo, 1965. 

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Volta ao lar, de Harold Pinter




Olá,


Harold Pinter (1930-2008) foi um dos mais influentes dramaturgos do século XX. O auge de sua produção se deu nos anos 1960 e 1970, quando suas peças, encenadas no mundo inteiro, eram um retrato dos impactos da opressão e desajustes sociais sobre os indivíduos e suas relações. Talvez por isso houve uma certa reação negativa quando o Prêmio Nobel de Literatura lhe foi concedido em 2005, pois muitos consideravam que o momento de Pinter havia passado. Ledo engano. O dramaturgo inglês, "que nas suas peças descobre o precipício sob o murmúrio do dia-a-dia e força a entrada nos quartos escuros da opressão", nas palavras da Academia Sueca, mantém sua vitalidade e atualidade ainda em nossos dias, quando a deterioração da experiência humana é expressa pelo jugo de um mundo cada vez mais cruel. Severamente doente à época da entrega do Nobel, ele não pode viajar a Estocolmo para recebê-lo pessoalmente, mas gravou um vídeo (é praxe que os laureados em Literatura façam uma palestra na semana de entrega do prêmio) intitulado "Arte, verdade e política", em que repassa sua produção teatral e reforça seu compromisso com a representação artística da realidade através da baliza da invenção e da irrealidade, também elas portadoras de uma verdade sobre o mundo. 

No Brasil, embora as peças de Pinter sejam bastante representadas desde a década de 1960, há poucas traduções disponíveis ao público leitor.  Uma delas é Volta ao lar (1965), que escolhi para comentar nesta postagem e cuja estreia brasileira se deu em 1967 com um trio de peso nos papéis principais: Fernanda Montenegro (no papel de Ruth), Sérgio Britto (como Lenny) e Ziembinski (Max). A história se ampara na Parábola do Filho Pródigo, mas com todas as liberdades e iconoclastias características do teatro de Pinter, sobretudo  no uso de uma linguagem que se vale do chulo e do vitupério verbal como elementos dos desarranjos pessoais e coletivos de uma família que em nada se assemelha ao clã idílico deixado pelo jovem da história bíblica em busca de seu próprio destino.




Teddy, filho de Max e irmão de Lenny e Joey, deixou a família em Londres para tentar a vida acadêmica nos Estados Unidos. Dele, nada mais sabem até o momento em que a peça começa, já marcada pelas tensões representadas pelo áspero diálogo entre Max e Lenny e que, na toada do teatro do absurdo, gira em torno de uma tesoura desaparecida, gerando no leitor/expectador uma inevitável comparação entre o teatro de Pinter e as peças de Beckett (ele próprio ganhador do Nobel em 1969). No entanto, enquanto o dramaturgo irlandês põe suas personagens em atrapantes solilóquios a respeito do vazio da experiência humana, Pinter traz o absurdo para as relações comezinhas, como forma de apresentar as tensões e neuroses, traumas e recalques que resultam numa fala repleta de violência, derrisões e, sobretudo, mágoa:

"LENNY 
Você se importa se eu mudar de assunto? (Pausa) Quero te perguntar uma coisa. Esta comida que nós comemos, como é mesmo o nome dela? Como é que você chama essa comida? (Pausa) Por que você não compra um cachorro? Você cozinha bem para cachorro. Verdade. Você acha que está cozinham prum brando de vira-latas.

MAX
Quem não gosta que se mude!

LENNY
Vou pensar nisso. Por enquanto vou sair e ver se janto alguma coisa para tirar o gosto desse teu jantar. 

MAX
Vai logo! Que é que está esperando? (Lenny o olha)

LENNY
O que é que você disse?

MAX
Eu disse vomita, bota pra fora, foi o que eu disse.

LENNY
Primeiro eu boto você pra fora, paizinho, se continuar a me falar nesse tom."
(p. 15-16)


O diálogo tenso e exasperado entre pai e filho expõe, na verdade, fraturas que remontam à criação dada por Max aos três filhos (dentre eles o ausente) após a morte da mulher, Jessie. Embora lance invectivas contra o pai, Lenny sabe que, na hierarquia familiar, é ele o proprietário da casa e provedor da família, restando às ameaças de expulsão o mero lugar da rebeldia juvenil um tanto fora de época, sendo ele o filho mais velho. Lembremos que na parábola, é o filho mais velho quem inveja o Pródigo e a recepção festiva do pai depois de sua jornada infantil e desastrosa. Lenny cumpre bem esse papel, já que a tensão será elevada com a chegada de Teddy e os salamaleques - ainda que repletos do mais delicioso humor pinteriano - a ele dispensados pelo velho pai. 

Mas antes da chegada deste, entram em cena os outros dois membros da família: Sam, irmão de Max e que ascendeu socialmente na profissão, indo de modesto motorista de táxi a chofer de uma empresa especializada em realizar passeios com americanos pela cinzenta Londres e com quem o velho tem uma relação mal resolvida e que envolve rejeição paterna e traição (há a insinuação de que Jessie fora amante de Sam); e Joey, o filho do meio, que trabalha como mecânico e é boxeador nas horas vagas, uma personagem enxertada na remontagem da parábola bíblica e que, pairando acima dos conflitos entre o pai e os dois filhos, leva uma existência adida aos prazeres e às despreocupações típicas de um solteirão inconsequente. 

Muitas diatribes coletivas e zombarias depois, os quatro recolhem-se para dormir. É então que entram em cena Teddy e sua jovem esposa Ruth. Desde sua aparição para esta visita surpresa, instala-se uma tensão (no palco e na leitura) e que provém tanto das relações não-pacificadas entre o casal como nebulosas possibilidades que a visita (ou o retorno ao lar) poderão desencadear. O casal hesita em acordar a família, postergando para a manhã seguinte o encontro. Teddy sobe para o que seria seu quarto - numa espécie de retorno a uma mítica mas irrecuperável infância -, enquanto Ruth sai para uma volta pelo bairro em plena madrugada. Ao retornar, depara-se com Lenny na sala e é então que o leitor/espectador experienciará a tensão eivada de potência sexual entre eles. 

Tensão esta que é elevada à diferentes potências e voltagens no dia seguinte, quando a família descobre o retorno de Teddy. A cena em que Max lhe pergunta "Quem lhe deu licença de botar vacas sujas nesta casa?" (p. 60), para em seguida abraçar afetuosamente o filho e a aceitar a nora é um indicativo tanto da direção ao nonsense que a peça passa a assumir, como da introdução da assustadiça Ruth ao contexto comunicativo violento/irônico/chistoso da família. A cena, já antológica, termina com a desintegração da tensão em comicidade, risos e galhofas. No apagar/acender das luzes (recurso cênico utilizado pelo autor para saltar de uma a outra passagem temporal), vemos a família outra vez reunida após um saboroso e elogiado almoço, com os homens fumando charutos despreocupadamente, enquanto Ruth serve cafezinhos: 

"RUTH
Almoço excelente!

MAX
Fico muito contente que você tenha gostado. (Pros outros) Vocês ouviram isso? (Para Ruth) De uma coisa você pode estar certa - pus corpo e alma nesse almoço. (Bebe) O café também está divino.

RUTH
Agora quem fica contente sou eu. (Pausa

MAX
Alguma coisa me diz que você é uma cozinheira de mão cheia.

RUTH
Não sou má, não.

MAX
Alguma coisa me diz que você é a rainha das cozinheiras. Que é que você me diz, Teddy?

TEDDY

É, ela cozinha muito bem. (Pausa)"
(p. 67-68)


É também revelado que o casal tem três filhos, os adorados netos que vovô Max precisa conhecer. Mas a desintegração da tensão se revela, evidentemente, falsa. Após a saída de Joey (uma personagem, como disse, neutra e acima dos liamos mal-resolvidos entre os dois irmãos, o mais velho e o mais novo) e Sam, Lenny fustiga Teddy sobre seu trabalho na universidade como professor de filosofia, fazendo-lhe questões que estão além de sua capacidade interpretativa. Ruth vem em seu auxílio e as responde, mostrando que ela é algo além de uma "rainha das cozinheiras", o que desperta o apetite sexual não apenas de Lenny, mas dos outros homens da família, como se verá. Teddy sai brevemente e, em seguida, retorna com as malas, disposto a encerrar a visita, mas o irmão tira Ruth para dançar. Os outros chegam e Joey agarra a cunhada - que não resiste - e os dois se embolam freneticamente no chão da sala/palco. Todos dançam e bebem. Apenas Teddy tenta permanecer racional, gritando à família que eles não entenderiam seus trabalhos críticos, que eles são ignorantes e que ele não é, que não irá se perder como eles. 

Na cena seguinte, após uma passagem de tempo indicada de duas horas, temos Ruth e Joey ausentes (estão transando no andar de cima), enquanto os dois irmãos mantém um comovente diálogo, quase um monólogo de Lenny, em que a rivalidade entre os dois irmãos pletora a inveja que este último sente da vida de Teddy na América. É o acerto de contas que, se na parábola ocorre entre o pai e o irmão do Filho Pródigo, aqui se potencializa entre os dois irmãos. É então que Joey desce e a peça atinge o ápice do absurdo: com o retorno também de Max e Sam, os homens da família discutem sobre Ruth, traçando planos para fazer dela sua escrava sexual e empregada da casa. Tudo descamba para um clímax misógino e grotesco, com a explicitação dos procedimentos necessários e altamente organizados para fazer da mulher uma prostituta funcional e rentável, com local próprio para atendimento e expediente estabelecido. Ruth, até então alheia, passa a intervir, mostrando-se uma hábil negociante, bem aos moldes da crítica ao capitalismo tardio empreendida pelo teatro de Pinter:

"LENNY
Tá bem, eu te arranjo um apartamento com isso tudo.

RUTH
Com esses cômodos todos assim direitinho, mobilado?

LENNY
Você vai ver.

RUTH
Uma empregada só para mim.

LENNY
Natural. (Pausa) Em suma, nós te financiamos no começado e quando estiver estabelecida você nos paga em prestações.

RUTH
Ah, não, de maneira nenhuma - isso não.

LENNY 
Mas como?

RUTH
Vocês teriam que aceitar todas as despesas iniciais como um investimento de capital. (Pausa)

LENNY
Percebo. Tá certo.

(...)

RUTH
Todos os aspectos do acordo e as condições da minha manutenção e respectiva prestação de serviços terão que ficar bem claros no contrato, para nossa mútua satisfação."
(p. 114-115)


Alheio a tudo, Teddy percebe que perdeu a mulher, que terá que voltar sozinho para sua casa nos Estados Unidos e cuidar ele mesmo dos três filhos do casal. De repente, Sam morre. Ou finge morrer, não fica claro na cena e nem ficará ao final da peça, que se encontra agora em seus momentos finais. Em vez de lamentar a suposta morte do irmão, Max se aborrece com o incômodo de ter um cadáver no meio da sala. Teddy se despede e parte, com a total indiferença da agora satisfeita capitalista sexual Ruth. Max lança suas últimas lamúrias e invectivas contra velhice, enquanto a nora acaricia os cabelos do sonhador Joey. A última indicação textual é do olhar vazio de Lenny para a cena. 

Voltar ao lar é um texto dramático com muitas camadas possíveis de leitura e de interpretação. Como todo texto teatral, sua realização plena acontece no momento de sua encenação, sendo a leitura uma possibilidade parcial de compreensão da potência escondida nas entrelinhas das falas, dos gestos sutilmente indicados e das mudanças de ambiente. O que não nos impede de, ao lê-la, traçarmos um panorama das fraturadas relações entre os membros desta marcante família, de suas feridas latentes, de sua desintegração e de sua aparente pacificação final, indicando que "a entrada nos quartos escuros da opressão" pretendia pela obra de Harold Pinter é uma viagem sem volta, como é sem volta o empobrecimento do homem contemporâneo num mundo de destroçadas relações. Sim, é o capitalismo e as relações de exploração que ele estabelece que corroem o afeto desta família que tenta manter uma aparência de união, ainda que precária. São eles também que engolem a frágil Ruth. Mas é ela quem, ao final, subjuga dos homens de família, mostrando quem eles verdadeiramente são, quem verdadeiramente (ainda) somos todos nós. Daí ser injusta a ideia de envelhecimento do teatro de Pinter e da falta de ocasião de seu Prêmio Nobel. Suas peças, retratos estilhaçados do nosso mundo, permanecem para além de atuais: restam vivíssimas.

Jorge Verly

PINTER, Harold. Volta ao lar. Trad. de Millôr Fernandes. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 







Noche cerrada, de Vicente Aleixandre

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