Olá,
É evidente que num escopo pequeno de 116 laureados, o Prêmio Nobel de Literatura tenha cometido inúmeras injustiças. Não me refiro aqui aos que foram premiados, mas àqueles que deixaram de sê-lo. É imperdoável que autores como Proust, Virginia Woolf, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Julio Cortázar, James Joyce, ou Philip Roth tenham morrido sem recebê-lo. Mas também é verdade que, muitas vezes, o Nobel foi justíssimo com autores que mereciam realmente a medalha, o diploma e o milhão de coroas suecas que estão atrelados ao prêmio. Um desses casos foi o do poeta russo naturalizado americano Joseph Brodsky (1940-1996), premiado em 1987 em razão de "sua autoria abrangente, caracterizada por nitidez de pensamento e intensidade poética", nas palavras do comitê julgador. De fato, sua poesia tem como marcas distintivas a clareza com que esquadrinhou o mundo e a alta voltagem lírica que foi capaz de produzir em seu contato com os seres e as coisas sobre as quais escreveu. Nascido em Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial, a relação de Brodsky com as autoridades soviéticas foi sempre problemática e marcada pela dissidência política, embora ele se considerasse apolítico. Acusado de "parasitismo social", foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados no Ártico, permanecendo lá por dezoito meses. Perseguido pelas autoridades de seu país, foi expulso da União Soviética em 1972, emigrando para os Estados Unidos, onde lecionou em diversas universidades. Brodsky também passou a escrever em inglês, atingindo um conhecimento do idioma que muitos consideravam superior ao de outro ilustre conterrâneo e exilado na América que também adotou este idioma como expressão literária: Vladimir Nabokov, outro injustiçado pelo Nobel. O poeta morreu prematuramente de infarto em Nova York aos 55 anos de idade.
Embora o autor tenha tido uma traumática experiência política em seu país natal, a poesia de Brodsky apresenta uma espécie de "dissidência lírica" e não proeminentemente engajada. Ele sempre dizia que sua ojeriza às figuras de Lênin e Stálin se devia muito mais a onipresença de seus retratos por todo o país do que necessariamente por uma discordância ideológica de suas posições. Sua crítica se devia basicamente à interdição ao livre pensamento e à expressão artísticas em um regime totalitário. Daí sua obra se apoiar na busca por esta expressão, na clareza das ideias e na síntese imagética, sem esbarrar numa dicção política como ferramenta crítica.
Infelizmente, no Brasil não há obras integrais de Brodsky em tradução. Há apenas a coletânea de ensaios Menos que um (1986) e o romance em prosa poética Marca d´água (1992), uma homagem a Veneza, cidade onde ele foi enterrado. Quanto a sua poesia, o único livro disponível no Brasil é brevíssima antologia Quase um elegia, publicada pela Sete Letras em 1995 e com traduções de Nelson Ascher e Boris Schnaiderman. Trata-se de uma edição hoje raríssima e que será a base para as leituras e análises que aqui serão feitas.
Começo com a transcrição do poema que titula o livro, escrito em 1968, ainda durante seu período soviético:
Também eu aguardei na colunata
da Bolsa, outrora, o fim da chuva fria.
Julgava-a dom de Deus. E era sensata
minha suposição. Pois algum dia
também eu fui feliz. Fui prisioneiro
dos anjos. Combatia monstro horrendo.
Feito Jacó, fitava, sorrateiro,
uma beldade - rápido - descendo
a escada principal.
Aonde tudo
se foi. Sumiu. Olho janela afora:
o "aonde" acima, eu o escrevi, contudo,
sem ponto de interrogação. Agora
é Setembro. Um trovão distante invade
meu ouvido. Eis um horto. Peras pensas,
cheias de seiva nas ramagens densas,
parecem signos de virilidade.
E o ouvido admite, como gente avara,
parentes na cozinha, um som assíduo
de chuva que, na mente, sem chegar a
música ainda, é mais do que ruído.
(p. 17)
Pleno de sensações e com um métrica - que, não sei até que ponto, a tradução para o português logrou recuperar - que lembra o mote da chuva, este poema é bastante representativo da produção de Joseph Bordsky na medida em que se constrói não como uma elegia tradicional, mas como uma evocação a um tempo, e, em especial, a um dia (aquele em que o eu-lírico aguardou, na escadaria do antigo prédio da bolsa de valores de São Petesburgo/Leningrado e tendo com guarda a magnífica série de colunas do edifício) cuja memória é a chuva fina e a expectante presença de uma bela dama (que, afinal, não apareceu) que desceria com ele as escadas. Embora o poema remeta a um tempo feliz ("Pois algum dia / eu também fui feliz") e tenha como contraponto as então vicissitudes enfrentadas por Brodsky na União Soviética, o que resta é a sensação que, remodelada pela poética, torna-se um amálgama em forma de música, ainda que precária ("sem chegar a / música ainda, é mais que ruído"). Ou seja, sem subverter o gênero elegíaco, o poema termina com a evocação de uma felicidade que o eu-lírico esperar recuperar e suster, ainda que no espaço reduzido - e em seu tempo fugaz - do texto. Misturando estilos e temáticas (o bíblico ["dom de Deus", "prisioneiro dos anjos" e "Feito Jacó, fitava, sorrateiro"], locus amenus do estilo árcade ["eis o horto", "peras pensas" e "ramagens densas']), sua estética resulta numa síntese da própria história da poesia, densa e altamente comunicativa.
Outro exemplo da estilística virtuosa, agora com um tom de humour, é "Explorador polar", um dos mais conhecidos poemas de Brodsky:
Devorados os cães. Não resta espaço
no diário. Há na foto, pois, da esposa,
um colar de palavras: bem na face,
a pinta de uma data duvidosa.
Sobre a foto da irmã nem titubeia:
registra a latitude que atingiu!
Negrejando, a gangrena, feito meia
de uma vedete, chega-lhe ao quadril.
(p. 29)
Uma mirada na biografia do autor nos leva a intuir que a temática do poema foi retirada de duas experiências da vida do poeta na União Soviética dos anos 1950-60: seu período como assistente em expedições de reconhecimento e recolha de elementos geológicos pelo país e, depois, sua prisão nos campos de trabalhos forçados em Arkhangelsk, na saída para o Ártico. A perícia poética de Brodsky transforma a terrível imagem de um hipotético explorador polar - perdido nas extremas latitudes do planeta, condenado pela gangrena provocada pelo frio extremo e já ensandecido pela impossibilidade de continuar - em um texto pleno de humor e ironia. A "narrativa" é construída, verso a verso, a partir das imagens em sucessão: o leitor tem a impressão de que observa fotografias que, à medida em que são passadas, montam o retrato completo da loucura daquele homem, faminto ("Devorados os cães"), ferido de morte ("a gangrena, feito meia / de uma vedete, chega-lhe ao quadril") e obcecado em continuar registrando sua jornada ("Sobre a foto da irmã nem titubeia: registra a latitude que atingiu!"). O texto pode ser lido como uma irônica ode em louvor da tenacidade humana, na medida em que nada mais resta à personagem que não registrar, registrar e registrar, não importando mais os laços de parentesco (os retratos da mulher e da irmã não são mais recordações da vida deixada na civilização, mas sim meros papéis a servir ao seu intento) ou mesmo a saúde (a negra meia que é sua perna gangrenada). Seu único intento - e é a imagem que permanece mesmo ao final da leitura - é atingir o extremo da zona polar e deixar um testemunho vivo de seu feito.
Outro poema bastante célebre da produção do poeta russo é "Para Urânia" e que, evocando a leitura deste feita pelo também poeta e amigo W. H. Auden, é representativo de sua face "tradicionalista", i. e., da releitura da tradição poética empreendida em sua obra. Cito-o integralmente:
Tudo tem seu limite, mesmo a mágoa.
O olhar - folha na cerca - é cerceado
por vidro. Agites chaves, vertas água:
a solidão é o homem ao quadrado.
Um dromedário franze, ao cheirar trilhos,
o cenho. Descortina-se o vazio.
E o próprio espaço enfim, ele não consta
da ausência só de um corpo em cada ponto?
Por isso Urânia é mais velha que Clio.
De dia e à luz de cegos candeeiros,
vê que ela nada oculta e, olhando fixo
o globo, vê-se a nuca. Os bosques, ei-los,
repletos de mirtilos, rios onde, às
mãos nuas, há esturjões que se oferecem,
cidades cujas listas telefônicas
já não te incluem. Ao sul, melhor, sudeste,
pardejam as montanhas, éguas correm
selvagens entre amieiros; ficam fulvas
as faces. Singram longe os cruzadores,
e a amplidão - lingerie rendada - azula.
(p. 35)
Urânia a quem o poema é dedicado trata-se de uma das nove musas, filha de Zeus da deusa Memória (Mnêmosis) e protetora, entre outras coisas, da astrologia, sempre representada em tons de azul e segurando na mão esquerda o globo terrestre. A reconstrução de sua imagem empreendia pelo poema vale-se de uma filtragem da tradição pelo crivo da modernidade, i. e., o que Urânia observa ao fitar o globo não é o mundo antigo em que fora gerada, mas nossos tempos, povoados da densa solidão do homem moderno ("a solidão é o homem ao quadrado", certamente um dos mais inesquecíveis versos da produção brodskyiana). Sendo ela mais velha que a própria criatividade (Clio), representa a preponderância do mundo sobre a invenção, o que nos remete ao velho telos filosófico da dualidade entre o sujeito e o objeto, aqui belamente trabalhado pela capacidade imaginativa de Brodsky: e o que seriam os versos "há (...) / cidades cujas listas telefônicas / já não te incluem" senão uma reversão da dialética (nos moldes de um Adorno, por exemplo) que põe o sujeito como senhor do objeto? Mudando o conceito de lugar, é o mundo e seus elementos que, empunhados por Urânia, fizeram nascer o homem, como o poema faz crer. Ainda que todo o invento e toda a criatividade humana vicejem pelo globo terrestre ("Singram longe os cruzadores"), é ela quem tudo governa ("a amplidão - lingerie rendada - azula"). A (re)leitura da tradição aqui resulta na própria revelação da condição humana e de sua característica solidão.
Estes exemplos da obra de Brodsky reforçam o poeta formidável, o gigante da lírica e o esteta sempre preocupado com a imagem que ele foi. Os três poemas aqui (parcamente, reconheço) analisados, colhidos de sua produção sempre excelente, sozinhos justificariam sua escolha para a maior honraria literária do planeta. No entanto, é fácil perceber que não foi ele quem mereceu o Nobel, mas sim que foi o prêmio quem ganhou com sua eleição. Como disse antes, há lacunas irreparáveis na lista dos vencedores. Por isso, a escolha de um autor tão irrepreensível tem a função de uma reparação: sim, não premiamos Auden, Valéry ou Celan, mas premiamos Joseph Brodsky!
Jorge Verly
Referência da leitura: BRODSKY, Joseph. Quase uma elegia. Trad. de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.