Olá,
O Prêmio Nobel de Literatura de 1966 foi dividido entre os autores judeus Shmuel Yosef Agnon e Nelly Sachs (1891-1970). Enquanto a escolha de Agnon foi mais uma homenagem a Israel que uma escolha estética (vide a postagem anterior), o laurel outorgado à poeta alemã naturalizada sueca rendeu tributo àquela que é considera a maior voz da poesia em língua alemã depois de Stefan George (aliás, várias vezes candidato ao Nobel). Na breve exposição de motivos para a premiação, a Academia Sueca foi certeira ao destacar a potência da obra de Nelly Sachs, cujo prêmio foi concedido "pela sua excelente escrita lírica e dramática, que interpreta o destino de Israel com um toque de força".
A força desta poeta vem, justamente, do autorreconhecimento de seu papel na História do século XX. Nascida em Berlim de pais judeus, a escolha da língua alemã como expressão nem sempre foi bem acolhida pelos círculos literários judaicos, sobretudo após a Shoah. Sachs defendia-se sempre lembrando que os judeus são por excelência um povo disperso e errante, sendo o alemão sua língua literária por uma questão puramente geográfica. Para além disso, sua obra retrata o martírio de Israel de um ponto-de-vista bastante pessoal e tragicamente construído pelo arbítrio dos acontecimentos. Em 1939 ela escreveu à célebre e influente escritora sueca Selma Lagerlöf (Nobel de 1909), solicitando asilo político para ela e sua mãe. A resposta positiva chegou em 1940 e no mesmo dia em que era expedida a ordem de transferência das duas para um campo de concentração, elas embarcavam num avião em direção a Estocolmo, onde a poeta viveu até 1970, ano de sua morte. E o fato de ter escapado do Holocausto nazista não fez dela uma escritora omissa ao drama de seu povo. Tanto que, como veremos, é deste sofrimento indelével que se alimentou sua produção poética ao longo dos tempos.
Para esta postagem, li a única tradução em língua portuguesa disponível da poesia Nelly Sachs, a antologia Poesias, vertida diretamente do alemão pelo dramaturgo português Paulo Quintela. Cobrindo praticamente todas as fases de sua obra, ela é aberta com três poderosos poemas daquela que é a obra mais conhecida de Sachs, Nas moradas da morte (1946). Escrito já no exílio sueco, o livro foi produzido sob o impacto das notícias vindas da Alemanha e do resto da Europa sobre os assassinatos em massa ocorridos nos campos de concentração. Dentre os milhões de vítimas, estavam parentes da poeta, bem como seu noivo. Em memória dele, Sachs escreveu "Orações para o noivo morto", cujo primeiro poema reproduzo abaixo:
A vela, que em lembrança tu eu acendi,
Fala com o ar a fala trêmula das chamas,
Caem-me lágrimas dos olhos; lá da campa ouvi
Como em pó por vida eterna chamas.
Ó alto encontro no quarto da pobreza,
Inda se eu soubesse os elementos entender;
Explicam-te, pois tudo sempre e com firmeza
Te explica; eu nada senão chorar posso fazer.
(p. 55)
Utilizando-se da forma clássica em quartetos rimados (ABAB, CDCD), o poema abriga a dor pungente pela morte do amado em seu mimetismo através da evocação do elemento essencial da destruição: o fogo. Simbolizando tanto a chama da vela acendida em rito de prece, como as labaredas dos fornos crematórios, destino de grande parte dos judeus confinados aos campos de extermínio, o fogo aqui ultrapassa seu sentido sagrado para representar a morte/oração, esse elemento dúplice diante do qual também é dupla a impotência do eu-lírico. Incapaz de trazer de volta à vida aquele que morreu martirizado, também ele não consegue na oração uma compreensão das dimensões e ressonâncias desta mesma morte, diante da qual a poeta é categórica: "eu nada senão chorar posso fazer". A inversão da sintaxe (que é uma das marcas da poética de Nelly Sachs) pode, na linha de que a obra de arte traz em seus momentos formais o horror dos tempos (Adorno), ser compreendia como a própria inversão da ordem natural das coisas: em lugar do amor, a morte; em lugar do casamento, as chamas; em vez da prece marital, a oração fúnebre em memória de um morto ausente, tornado em "pó por vida eterna" em razão do Holocausto. A morada do amor passa a ser a morada da morte, não só aquela experimentada pessoalmente por Nelly Sachs, mas também pela morte de muitos dos membros desgarrados do povo de Israel que ela representa com sua potência poética.
Outro exemplo da reconstrução poética da dor provocada pelo extermínio do povo judeu está presente no livro Fuga e transfiguração (1959). Sem títulos, os poemas gravitam em torno dos signos que, mesmo depois do Holocausto e do abrigo (ainda que precário) oferecido aos judeus pelo fim da guerra e a criação do Estado de Israel, perseguem a poeta: a morte, a noite, o ato de fugir, a memória e os elementos da religião judaica são mesclados num amálgama poético que, para evocar o comunicado da Fundação Nobel, confere "o toque de força" à tentativa de recomposição da vida daqueles que ficaram, mesmo que profundamente marcados pelos trágicos eventos de duas décadas atrás:
Assim fugi eu da palavra:
Um pedaço da noite
de braços abertos
só uma balança
para pesar fugas
este tempo de estrelas
afundando em pó
com as pegadas impressas.
Agora é tarde.
O leve sai de mim
e também o pesado
os ombros já voam
como nuvens para longe
braços e mãos
sem gesto de levar
Fundo-escuro é a cor da nostalgia sempre
assim a noite toma
de novo de mim posse
(p. 164)
Inicialmente, temos a fuga ("assim fugi eu da palavra") como mote, metaforizada por alguém que abraça noite e sua liberdade em face dos julgamentos ("só uma balança para pesar fugas"). O eu-lírico experimenta um sentimento de absoluta leveza ao metaforizar o ato de despir-se da(s) dor(es) que a noite é capaz de arrefecer ("o leve sai de mim / e também o pesado / os ombros já voam / como nuvens para longe"). No entanto, a noite é também traição ("Fundo-escuro é a cor da nostalgia sempre") e a metamorfose (a transfiguração) da dor para a leveza revela outra vez o império da noite, que toma posse do corpo do eu-lírico como uma memória do sofrimento.
A poesia de Nelly Sachs, ainda que centrada no rememoramento da dor (que é a sua e também a do outro), é também uma poesia da partilha, do abraço e do acolhimento daqueles que sofreram e sofrem as terríveis chagas propiciadas pelo desacordo entre os homens. Tanto que sua voz, ainda que fale tanto de si e de seus mortos, é uma voz coletiva, como podemos ler, por exemplo, na dolorosa série de poemas Coros para depois da meia-noite (1946), em que as vozes daqueles "que se salvaram", dos "órfãos", das "sombras" e até mesmo daqueles "que ainda não nasceram" entoam um cântico que é em tudo universal, como é universal a dor entre eles compartida. Essa atitude ética de abarcar a alteridade sofredora acompanhou toda a escrita desta sobrevivente. Num de seus últimos poemas (da série Enigmas em brasa, 1964), ela faz questão de revelar a presença da multidão em seu parco quarto (Sachs foi extremamente pobre a vida inteira) na cidade de Estocolmo, onde dois anos depois receberia merecidamente o Prêmio Nobel de Literatura:
No meu quarto
onde está minha cama
uma mesa, uma cadeira
o fogão de cozinha
ajoelha-se o Universo como em toda a parte
para se salvar
da invisibilidade
(p. 241)
Salvar o outro da invisibilidade foi o fado desta poeta excepcional que parece ter escapado das moradas da morte especialmente para esta missão. Grata pela salvação - recebida por ela como uma graça em meio à noite do Holocausto -, ela foi uma pessoa generosa. Logo após o anúncio de que tinha sido laureada com o maior prêmio literário do mundo, os jornalistas acorreram ao seu minúsculo apartamento com as perguntas de praxe, principalmente qual seria a destinação da volumosa soma em dinheiro que o Nobel traz consigo. Em vez de pensar em si e ter um final de vida mais confortável, sobretudo para uma mulher que foi sempre muito pobre, sua resposta foi uma profissão de fé de de sua dedicação ao outro: ela respondeu que estava alegre principalmente pela possibilidade de, agora rica, poder retribuir a uma velha amiga em Dresden pelo auxílio recebido à época de sua fuga da Alemanha e que agora vivia miseravelmente naquele país. Melhor exemplo não há para radiografar o páthos de uma mulher que dedicou uma vida inteira a escrever não como quem fugiu, mas como quem foi poupada do Holocausto para dar voz àqueles que, infelizmente, não foram.
Jorge Verly
Referência da leitura: SACHS, Nelly. Poesias. Trad. de Paulo Quintela. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1975.