sábado, 24 de agosto de 2019

Noites das mil e uma noites, de Naguib Mahfouz



Olá,


As histórias dos bastidores da Academia Sueca contam que em 1988 a disputa final para o Prêmio Nobel recaiu sobre dois autores bastante parecidos, ambos muito representativos das literaturas de seus países, os dois exímios contadores de histórias: o brasileiro Jorge Amado e o egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006). A balança pendeu para Mahfouz porque em "trabalhos ricos em matizes - já vividamente realistas, já evocativamente ambíguos - formou uma narrativa árabe que se aplica a toda a humanidade", tal como se lê no comunicado oficial do comitê que distribui o prêmio. Penso sempre que se substituíssemos a palavra "árabe" por "brasileira", o mesmo poderia ser aplicado aos romances de Jorge Amado - e aí teríamos o primeiro Nobel brasileiro. Desejos nacionalistas à parte, é verdade que a obra de Naguib Mahfouz encanta e revela, evoca e representa o mundo árabe como poucas, sendo acessível a qualquer leitor de qualquer parte do mundo. A cerimônia de entrega do Nobel causou comoção porque, já idoso e receoso de uma viagem extenuante a Estocolmo em pleno inverno, Mahfouz enviou suas duas filhas para recebê-lo das mãos do rei Carl XVI Gustav, numa demonstração de sua visão particular o Islã e do papel da mulher naquela sociedade.

Não tinha lido nenhum livro do autor antes de iniciar este projeto. Inicialmente, escolhi o romance Miramar (1967) como objeto de resenha para o blog. No entanto, acabei seduzido por outra obra de Mahfouz, sobretudo pelo jogo intertextual (tema de minha mais cara preferência) que ela apresenta: Noites das mil e uma noites (1981), conjunto que histórias que formam um romance-mosaico que se pretende como releitura de As mil e uma noites. 


A(s) trama(s) se passa(m) numa cidade não-nomeada em algum lugar dos territórios árabes durante a Idade Média. Como dito, Mahfouz recria a narrativa clássica da literatura árabe e (re)utiliza muitas das personagens originais para (re)colocá-las em situações fantásticas e insólitas, em que sua força ética será testada para além das intenções originais dos contos de Sherazade. No início do romance, encontramos o vizir Dandan, pai da personagem, visitando o sanguinário e implacável sultão Shahriar e este lhe revela aquilo que já sabemos do final de As mil e uma noites: em face da arte narrativa de sua filha e também de sua beleza, ele decide poupar sua vida. Toda a cidade vibra, em profundo regozijo. E é aí que as "noites" que escaparam das histórias da bela jovem começam a acontecer na vida dos moradores do lugar.





Um exemplo é a história que trata dos infortúnios do abastado comerciante Sanaan Al Jimali. Este, ao acordar no meio da noite, pisa inadvertidamente no gênio Kamkam e este, como condição para poupar sua vida, ordena que Sanaan mate Ali Al Saluli, o governador do bairro, subordinado ao sultão. O infeliz comerciante passa a viver atormentado e como estratagema para bular a promessa feita ao gênio, estupra e mata uma pobre garotinha que encontra na rua, no meio da noite, colocando para fora seus instintos mais primitivos:

"Mas, tal como despertou do medo, também despertou a curiosidade da menina. A idade dele p que a fez lembrar-se de seu pai - induziu nela uma espécie de confiança, na qual uma ansiedade desconhecida se mesclava à expectativa de algum sonho extraordinário. Ela deu um grito choroso que cindiu seu impulso humano e fez surgir fantasmas assustadores em sua imaginação tenebrosa. Tapou-lhe rapidamente a boca com a palma trêmula da mão. Uma súbita recuperação dos sentidos foi como um tapa na cara, quando novamente voltou à realidade.

- Não chore. Não tenha medo - sussurrou encarecidamente." (p. 25)

Saanan escapa graças ao auxílio do gênio e, quando o crime é descoberto, o comerciante vive um martírio ainda maior. Cobrando por Kamkam, ele finalmente tem a oportunidade de ficar cara a cara com o governador, a quem finalmente mata. Livre da promessa, ele implora ao gênio que o liberte, mas este lhe dá uma sinistra (e ao mesmo tempo reveladora) lição: ele deve entregar-se e pagar pelos dois crimes, pois seu destino não é escapar, mas sim morrer com a certeza de que a morte do governador pelas suas mãos livrou o bairro de um de seus mais notórios corruptos.

Dentre as figuras que povoam os contos-capítulos do livro, tem destaque Jamsa Al Balti, presente em várias das histórias ali contadas. Inicialmente o encontramos inicialmente como um corrupto e implacável chefe de guarda que, após libertar o gênio Sanjam de uma bola de ferro que pesca no rio da cidade, é desafiado por este a eliminar todos os outros corruptos do lugar. Primeiro relutante, depois decidido, Jamsa acata o desígnio e passa a matar a flechadas, no meio da noite, comerciantes desonestos e políticos e autoridades que vivem de explorar o povo e de roubar dinheiro público. Apanhado, é condenado pelo sultão à morte exemplar por decapitação, porém, na hora da execução, escapa de uma forma fantástica: em seu lugar, o gênio coloca uma cópia e transforma Jamsa em outra pessoa, um novo homem que assume o nome de Abdala, o carregador. Regenerado de seus antigos vícios, ele se reaproxima de sua família caída em desgraça (sem que eles saibam que Abdala é, na verdade, Jamsa Al Balti) e ajuda, por exemplo, a triste história de amor do perfumista Nuredin e a irmã de Sherazade, Duniazade, a ter um final feliz. Mas Abdala faz inimigos, precisa fugir e é novamente transfigurado pelo gênio, sendo agora transformado num velho de barbas e cabelos brancos e longos, apenas intitulado como "O louco", que passa a ser respeitado como um homem sábio, inclusive pelo próprio sultão. É o louco que revela crimes, dá lições, orienta o sultão. Pratica o bem, enfim.

É importante destacar que Mahfouz se vale dos elementos fantásticos (mudanças de corpos, aparições de gênios - do bem e do mal -, sonos profundos e ressurreições) para criticar os vícios e vilezas da cidade e que, compreendida como um microcosmo do mundo árabe, podem ser lidos contemporaneamente como uma crítica à hipocrisia escondida pelos costumes e pela religião em nossos dias. Um exemplo é que, ao longo do romance, os cargos de governador do bairro, chefe da guarda e secretário de governo vão sendo ocupados por diversos homens, todos eles caídos em desgraça e condenados à morte por cederem às tentações do poder e da luxúria. A corrupção, afinal, está enraizada naquela cidade como de fato está na própria natureza humana. 

O que não impede que haja no livro algum tipo de redenção. Como na história "Aladim, de pintas no rosto", em que a mítica figura retirada das narrativas das Mil e uma noites é agora transformada num jovem que, sedento por sabedoria, busca o sheik Abdala Al Balakhi, uma espécie de guru do lugar, de quem toma ensinamentos e se aprimora na contemplação de Alá. Vítima do ciúme do novo chefe da guarda, uma vez que Aladim se casa com a filha do sheik (moça que o policial cobiçava), acaba envolvido numa falsa trama e é condenado à morte por roubo. Al Balakhi assiste a tudo impassível e, quando o infeliz prisioneiro é morto e sua filha lhe questiona por que nada fez para ajudá-lo, o Sheik sentencia: "Nós o salvamos da morte com a morte" (p. 186), indicando que a pureza do coração de Aladim era incompatível com este mundo apodrecido. 

O livro termina com "Os lamentadores", narrativa em que o sultão Shahriar, aparentemente regenerado de seus crimes, resolve abandonar Sherazade e o palácio e viver como errante. Depois de penetrar num portal incrustado numa rocha à beira do rio, ele se vê num reino mágico, habitado apenas por mulheres. Um banho num lago do lugar o faz outra vez jovem e ele é escolhido como esposo da rainha daquele reino feminino. No entanto, há uma porta proibida no palácio em que passam a viver. Shahriar é feliz, mas quer abrir a porta, o que acaba fazendo. Como castigo, torna-se novamente velho, mais velho que era antes, encurvado e abatido. E é o novo chefe da guarda quem lhe diz: 

" - Passo a você as palavras de um homem experiente que disse: 'Uma indicação do zelo da verdade é o fato de que ela não traçou para ninguém uma trilha até ela, e não privou ninguém da esperança de alcançá-la, deixando as pessoas correndo nos desertos da perplexidade e se afogando nos mares da dúvida; e se aquele que pensa que a atingiu, dela se afasta, e aquele que pensa que se afastou dela, perdeu o seu caminho. Portanto, não há como alcançá-la e não há como evitá-la: ela é inescapável." (p. 186)

E é esta a lição (não no sentido meramente edificante) que o livro de Naguib Mahfouz nos transmite em suas muitas, mil histórias: a de que a verdade é algo incontornável. Toda a vaidade, toda a corrupção, toda a vilania sucumbe diante dela, como vemos nas narrativas que vão sendo desfiadas pela maestria do autor egípcio. Se Sherazade contava para escapar da morte, iludindo Shahriar em suas mil e uma noites, Mahfouz faz dessa última noite (a da libertação da astuta narradora) um estratagema não para engambelar o leitor, mas para revelar a ele que, para aquém dos crimes e de seus castigos, há a verdade que reside na alta literatura, no prazer de narrar histórias que, ao fim e ao cabo, permitem revelá-la. Se serve de consolo, Jorge Amado perdeu seu Nobel para um autor que como ele soube criar e recriar tramas inesquecíveis e construir personagens fortes, complexos, fazendo do mundo árabe um lugar tão universal quanto a Bahia de Todos os Santos. Ou de todos os gênios. 

Jorge Verly

Referência da leitura: MAHFOUZ, Naguib. Noites das mil e uma noites. Trad. de Georges Fayez Khouri e Neuza Feif Nabhan. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 


domingo, 18 de agosto de 2019

À espera dos bárbaros, de J. M. Coetzee




Olá,


Pertencendo ao pequeno grupo dos laureados com o Prêmio Nobel de Literatura ainda vivos, o australiano J. M. Coetzee o recebeu no ano de 2003 em razão de sua escrita "que, com inúmeros disfarces, retrata o envolvimento surpreendente do forasteiro". E é justamente o epíteto de forasteiro que define, em linhas gerais, a vida e a literatura deste autor nascido na África do Sul em 1940 e que, desde meados da década de 1960, viveu na Inglaterra, Estados Unidos (onde escreveu uma tese de doutorado sobre Beckett, outro Prêmio Nobel, e lecionou na Universidade de Nova York) e, depois de três décadas de volta à Africa (dando aulas de língua e literatura inglesas na Universidade da Cidade do Cabo), emigrou para a Austrália, onde vive atualmente, atuando como professor da Universidade de Adelaide, escrevendo e publicando regularmente ensaios literários e romances de grande impacto, sempre tendo como mote a situação dos desgarrados, dos outsiders, dos sujeitos inadaptados e pertencentes ao lugar-algum.

É a temática do degredo, por exemplo, que mobiliza seu romance mais conhecido, Desonra, publicado em 1999 e já adaptado para o cinema, no qual narra a história de um professor universitário branco que, caído em desgraça por conta do envolvimento sexual com uma aluna, perde o posto e a honra, indo refugiar-se na propriedade rural de sua filha, onde mergulha vertiginosamente nas contradições sociais de uma África do Sul mal saída do apartheid. Para esta postagem, no entanto, elegi um outro romance de Coetzee, À espera dos bárbaros, não tão conhecido no Brasil, mas que prenuncia já desde a data de sua publicação (1980) a escrita reflexiva, elegante e potente desde autor, habilitando-o para o Nobel que lhe seria concedido vinte e três anos depois. 

O romance se passa em uma vila fronteiriça de um império indeterminado, nomeado apenas como "o Império" e é narrado em primeira pessoa por uma personagem também sem nome, referida por si mesma e pelos outros como "o Magistrado", em razão das funções públicas que exerce na localidade e que consistem basicamente em aplicar a lei, julgar as dissidências, aplicar condenações, organizar e contabilizar a cobrança de tributos e manter a ordem local em consonância com as diretrizes governamentais que vem de longe, muito longe, mais precisamente da capital do Império, também inominada e que o narrador não visita há já não sabe quanto tempo. Sobre a vila (e sobre todo o Império) paira a ameça da invasão dos povos bárbaros, que vivem em suas cercanias. No entanto, há muitos e muitos anos nada acontece e o magistrado parece ter-se habituado à presença deles que, nos períodos de verão, aparecem e postam-se nas muralhas fortificadas, onde trocam produtos e mantém relações mais ou menos pacíficas com os moradores, numa mútua e habituada convivência. É então que essa aparente capa de paz é rompida com a chegada de soldados da temida Terceira Divisão do Império, especializada em ataques aos povos bárbaros e comandada pelo Coronel Joll, com quem o narrador imediatamente antipatiza. A passagem dele e de seus homens tem consequências terríveis na vida de todos, pois sua presença desregula o equilíbrio da balança que até então pautava as relações entre os aldeões e os bárbaros.






Joll é sanguinário e suas incursões ao deserto resultam na captura de bárbaros, homens, velhos, mulheres e crianças que são torturados (alguns até à morte) na vã esperança de confessar e delatar os supostos planos de invasão que seu povo intenta contra o Império. E tão ruidosamente como chegou, a Terceira Divisão parte, deixando sequelas nos bárbaros e na aldeia. Os primeiros fogem de volta para o deserto, mas deixam para trás uma moça que, terrivelmente torturada, teve os dois pés quebrados, além de ter o pai assassinado nas sessões de interrogatório. Esta moça, cujo nome nunca saberemos, é acolhida pelo magistrado, que com ela inicia uma conturbada relação de culpa e expiação. Inicialmente assexuados, os contados entre eles consistem em dormirem juntos e em longas sessões de unção corporal e massagens que o velho funcionário aplica na moça bárbara:

"Está deitada de costas, com as mãos placidamente pousadas sobre os seios. Fico a seu lado, falando carinhosamente. Este é o momento em que sempre vem a ruptura. Este é o momento em que minha mão, acariciando-lhe o ventre, parece mais desajeitada que uma lagosta. O impulso erótico, se é que posso chamá-lo assim, se anula; vejo-me agarrado a essa mulher, incapaz e me lembrar do que me despertou o desejo nela, com raiva de mim mesmo por querê-la e não querê-la. (...) Não a penetrei. Desde o começo, meu desejo não tomou essa direção. Alojar meu membro de velho nesse ninho ardente como o sangue faz-me pensar em ácido no leite, em cinza no mel, em pedra no pão." (p. 46-47)

Chega o inverno e o magistrado demonstra em sua narrativa um olhar ainda mais condescendente para com os bárbaros, temendo inclusive por eles em seu abandono em meio ao frio do deserto. É claro que este olhar é mediado pelo estreitamente de suas relações com a moça e com algum tipo de culpa que, em face do que foi violentamente praticado pelo Coronel Joll, ele carrega em relação àquele povo. É então que resolve empreender uma difícil viagem pelas terras bárbaras para desculpar-se com seus chefes e também devolver a moça a seu povo, desejo demonstrado por ela e percebido no esfriamento de sua relação. A separação entre o magistrado e a moça, quando enfim eles atingem o território bárbaro e travam contato com um grupo de doze deles, é melancólica, um prenúncio das coisas terríveis que estão por vir.

No retorno dele e de sua pequena comitiva de três soldados-guias, a aldeia encontra-se em um profundo estado de agitação. Não só lá está de volta a Terceira Divisão, agora mais numerosa, como também um novo personagem: Mandel, sub-oficial de Joll e mais sanguinário que ele. O magistrado é preso, acusado de alta traição por ter ido juntar-se aos bárbaros. Em sua cela, ele sente um misto de medo e de liberdade: medo pelo destino dos bárbaros, a quem aprendeu a olhar não como inimigos, mas sim como diferença; e liberdade por ter sido enfim despojado de suas penosas obrigações e da hipócrita fidelidade para com os ideais do Império:

"Tenho consciência da causa da minha satisfação: minha aliança com os guardiães do Império se rompeu, sou um homem livre! Quem não sorriria? Mas que alegria perigosa! Não devia ser tão fácil obter a redenção. E será que há algum princípio por trás da minha oposição? Não terei simplesmente reagido a uma provocação, ao ver um dos novos bárbaros usurpar-me a escrivaninha e vasculhar os meus papéis? Que estarei jogando fora em troca dessa liberdade, que valor tem ela para mim? Terei realmente aproveitado a ilimitada liberdade deste último ano, durante o qual, mais que nunca, minha vida me pertenceu, para renunciar a ela como estou fazendo?" (p. 101-102)

E é em meio a estas invectivas que o magistrado lança a si mesmo que retorna o Coronel Joll trazendo doze bárbaros atados pelas bochechas por um fio de suplício, iniciando um grotesco espetáculo de tortura e execução pública. O magistrado, tendo obtido secretamente a chave da cela em uma escapadela à cozinha, sai da prisão e junta-se à multidão na praça. Vencendo a auto-vigilância, ele irrompe ante os condenados e passa defendê-los e a atacar o Joll, Mandel e a Terceira Divisão como sendo os verdadeiros bárbaros. Surrado, é novamente encarcerado e passa a sofrer múltiplas, vexatórias e dolorosas torturas. No entanto, essas barbaridades são descritas por ele, sim, com horror, mas também com estoicismo, uma vez que está destinado a lutar ao lado do que considera o Bem e a combater os oficiais do Império, a denunciar seus crimes e sua brutalidade. 

Já perto do final do romance, o magistrado é solto a passa a viver como mendigo. Aos poucos é aceito novamente pela população (que pela influência de Joll e Mandel havia sido visto como um vil traidor). Nesse contexto, também observamos por sua narrativa uma exacerbação do comportamento "bárbaro" dos membros da Terceira Divisão, a frouxidão da vigilância das fronteiras, os saques constantes e os insultos aos moradores da aldeia que decidiram fugir em busca de segurança às cidades maiores do Império. O clima de medo se instala e, finalmente, os bárbaros se prenunciam no horizonte: dois soldados, um morto e outro ferido, retornam ao povoado atados a seus cavalos, um claro aviso de que a invasão é iminente. Todos se preparam para o pior. O exército parte aterrorizado, primeiro Mandel, depois Joll, que é quase apedrejado pelos habitantes da cidade em sua fuga covarde. 

Num anticlímax, o povoado, embora ainda atemorizado por uma possível invasão bárbara, tenta voltar ao seu estado anterior de calma. Aos poucos, os lavradores começam novamente a plantar, o comércio renasce e o magistrado, ainda que extraoficialmente, retoma seu posto e sua antiga influência:

"Tomei a liderança na execução de todas as medidas destinadas a nossa preservação. Ninguém me desafiou. Minha barba está aparada, visto roupas limpas e, de fato, reassumi a administração interrompida há um ano com a chegada da Guarda Civil. 

Devíamos estar cortando e armazenando lenha; não se pode encontrar, todavia, quem se aventure nas florestas queimadas ao longo do rio, onde os pescadores juram ter visto sinais de recentes acampamentos bárbaros." (p. 180)

Assim como começou, o livro termina com este horizonte de expectativas, i. e., de uma invasão que, ao fim e ao cabo, não se realiza nunca. E este não realizar-se confere o caráter de alegoria ao romance de Coetzee: ser sua possibilidade uma frágil justificativa para o exercício da intolerância e do exercício da mais bruta violência, representada pelas torturas perpetradas contra os diferentes (os bárbaros) ou contra aqueles que se mostram relativistas em relação a ela (o magistrado). Não podemos deixar de apontar também que o romance, optando pela indefinição de tempos, lugares e personagens, traz ecos de todas as barbáries cometidas contra grupos considerados indesejáveis socialmente, como no caso de apartheid sul-africano à época em que o o autor escreveu e publicou sua obra. Como na exposição de motivos da Academia Sueca para a concessão do Nobel a J. M. Coetzee, é o forasteiro que pode voz e vez, não para tomar lugares ou impor sua visão e sua força, mas unicamente pelo desejo de ser avaliado com justiça e, quem sabe, compreendido em sua própria dinâmica de vida. Em sua humanidade. Algo que a literatura deste notável escritor certamente contribuiu para promover.

Jorge Verly

Referência da leitura: COETZEE, J. M. À espera dos bárbaros. Trad. de Luiz Araújo. São Paulo: Best Seller,  1983.


quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, de Alexander Soljenítsin



Olá,


As relações entre a Academia Sueca e a União Soviética foram marcadas por controvérsias e dissonâncias. Cinco autores russos foram laureados durante a vigência do regime socialista no país e, destes, apenas um recebeu as "bençãos" (leia-se "autorização") das autoridades soviéticas para desfrutar do prestígio e do reconhecimento que o Prêmio Nobel costuma trazer: Mikhail Cholókov, ganhador em 1965, autor alinhado ao governo e, embora detentor de inegável valor artístico e visão narrativa, condescendente com certos horrores e expurgos praticados pelo regime comunista. Os outros quatro não tiveram a mesma sorte. Enquanto Ivan Bunin e Joseph Brodsky viviam no exílio quando foram premiados (1933 e 1987, respectivamente), Boris Pasternak simplesmente foi coagido a declinar da honraria (1956). Já Alexander Soljenítsin (1918-2008), embora tenha sido autorizado a aceitar o Nobel de 1970, foi impedido de viajar a Estocolmo para recebê-lo, sob a pena de não mais poder voltar à União Soviética. O autor, dissidente do governo comunista e denuncista das barbáries perpetradas contra aqueles que, como ele, discordaram dos rumos da política soviética, só pode receber seu Nobel em 1974, quando foi expulso do país, só retornando nos anos de 1990 após a queda do regime.

Na exposição de motivos da Academia Sueca para a atribuição do prêmio ao autor russo não há nenhuma menção explícita ao seu compromisso político enquanto crítico do poder soviético. Talvez para evitar atritos, como no caso de Pasternak, o comitê escreveu: "O Prêmio Nobel de Literatura de 1970 é atribuído ao escritor soviético Alexander Soljenítsin, pela força ética com a qual ele tem perseguido as indispensáveis tradições da literatura russa". Ao referirem-se à "força ética" que atravessa a obra deste escritor, os suecos faziam apenas uma oblíqua relação entre os romances e livros de memória do autor, sobrevivente dos campos de trabalhos forçados, e a delicada situação dos presos políticos em seu país. 

Os livros de Soljenítsin, enquadrados naquilo que se convencionou chamar de "literatura de testemunho" (sobretudo na ampliação do conceito para além das narrativas específicas sobre o Holocausto), foram quase todos publicados no exterior e apenas circularam na União Soviética de forma clandestina. Uma exceção é o romance Um dia na vida de Ivan Deníssovich, obra que escolhi como leitura para esta postagem e publicada naquele país em 1962. Este talvez seja o livro mais conhecido do autor, quer pela temática da opressão stalinista sobre os indivíduos dissidentes, quer pela crueza com que os fatos são ali narrados. 




Assemelhado a um relatório burocrático a respeito do cotiano em um dos muitos de campos de trabalhos forçados espalhados pela União Soviética durante o governo de Stalin, o texto é duro e, ao mesmo tempo, bastante detalhista em relação àquilo que nele ocorre, como lemos desde o parágrafo que abre o livro:

"Como habitualmente, às cinco da manha ouviu-se o toque da alvorada, dado pelos golpes de um martelo sobre um pedaço de trilho suspenso junto da barraca de comando. Mal os sons intermitentes haviam penetrado através das vidraças das janelas, nas quais a geada se acumulara numa espessura de quase dois centímetros, e já o ruído cessava quase imediatamente. Fazia frio no campo e os guardas não sentiam vontade de continuar a dar o toque de alvorada por muito tempo" (p. 5)

A figura central do romance é Ivan Denissóvitch Chukov, um ex-combatente que fora acusado de espionagem para os alemães na fase final da Segunda Guerra Mundial, nas proximidades da fronteira do Cazaquistão, onde aliás se localiza o campo da narrativa. Como previsto no famigerado Artigo 58 do Código Penal Soviético, ele fora para lá mandado para cumprir uma pena de dez anos que, no momento da narrativa, centrada em um dia, do amanhecer ao anoitecer, encontra-se quase em sua conclusão. É inevitável para o leitor que conheça a biografia de Soljenítsin associar Deníssovitch à figura do próprio escritor, uma vez que ao final da Segunda Guerra ele mesmo fora acusado de propaganda anti-stalinista e condenado à passar uma década em um campo de trabalhos, período após o qual, caso sobrevivesse, viveria o resto de seus dias em um exílio interno.

Sobreviver, aliás, é o motor que guia a sofrida existência da personagem. No dia em particular em que o acompanhamos através da leitura, curta e dolorosa, encontramo-no às voltas com situações limites, em que o minuto seguinte parece encerrar em si o fado de toda sua vida: acorda atrasado e vê-se obrigado a tergiversar com o guarda para escapar da punição na solitária; dirige-se à enfermaria na vã tentativa de conseguir uma dispensa e a consequente autorização para passar um dia de beatitude na cama, longe do trabalho (o que não acontece); olha expectante para o termômetro na esperança de que esse, ao marcar 41 graus negativos (o que também não acontece), dispensasse todos os prisioneiros do dia árduo de trabalho na neve; tenta consertar botas e luvas para lá de gastas para poder ter um dia de menos frio nas mãos e pés; esconde um pedaço de metal para utilizar como faca durante as refeições, temendo que seu "furto" seja descoberto na revista obrigatória ao final do dia de trabalho; negocia um punhado de tabaco com os afortunados que o recebem de casa (ele nada recebe, sequer notícias da esposa de quem se vê há tanto separado, um amor endurecido pela própria dureza da vida na prisão); negocia restos de sopa aguada com outros prisioneiros famintos como ele no refeitório; emprega o máximo de suas forças na construção de uma inútil parede de tijolos num galpão inservível em meio ao mar branco de neve para poder descansar alguns minutos a mais perto do fogo. Etc etc etc. Todos esses eventos do dia na vida de Ivan Deníssovitch  são, na escrita áspera de Alexander Soljenítsin, um momento que encerra, no indivíduo, a dor de uma existência vivida sobre o signo da opressão mais absoluta, mais inexorável, onde o mínimo sinal de esperança é imediatamente seguido de sua antípoda, a crudeza do real:

"Os homens aproximaram-se no fogão, mas imediatamente Pavlo os obrigou a se afastarem. Depois deu a Kilgas madeira, a fim de que ele fizesse tabuleiros para transportar a argamassa até o pavimento superior. Pôs mais dois homens para carregar areia, outros para varrer a neve do andaime onde eram colocados os blocos e um para retirar a areia quente da chapa do fogão e lançá-lo na caixa da argamassa". (p. 72)

Esta áspera e mecânica (como é toda a narração impessoal em terceira pessoa que configura o romance) descrição de um rol de tarefas dadas por Pavlo, o prisioneiro encarregado da turma de trabalho nº 104 da qual Deníssovitch faz parte, vem precedida do aparentemente corriqueiro enunciado inicial "Os homens aproximaram-se do fogão". Num contexto livre, tratar-se-ia apenas das necessidades laborais a interromper o despretensioso momento de descanso de um grupo de operários junto ao fogo. No entanto, para prisioneiros de um campo cercado de neve e perdido em meio às vastidões desoladas da União Soviética, obrigados a um trabalho em tudo inútil e desgastante, no limite mesmo de suas forças e de sua sanidade, o vislumbre do calor do fogão e sua imediata retirada para as tarefas coletivas significa a interrupção de uma breve possibilidade de redenção, de alento ao sofrer de cada dia.

A sucessão de eventos, do dia à noite, pelos quais passam Deníssovitch e seus companheiros de prisão reiteram o tempo inteiro esse sofrimento. As razões que cada um carrega em si como "justificativas" para o encarceramento, todas centradas no descumprimento do Artigo 58, em especial Deníssovitch, já não pesam por sua absoluta insensatez: vale muito mais escapar trabalhando, i. e., realizar o duro trabalho na expectativa de cumprir o dia, para que outro venha a ser cumprido, todos em melancólica sucessão, com o fito de, caso sobrevivam, possam experimentar alguma espécie de recompensa, ou seja, possam viver longe dali. Já não importa serem culpados ou inocentes - todos o somos, de alguma maneira. Importa sobreviver à culpa ou à inocência. 

Por esta razão, soa muito comovente o encerramento do romance, quando as luzes no campo são apagadas ao final do dia, quando Ivan Deníssovitch escapa incólume à última inspeção, quando contabiliza o pedaço de pão a mais economizado em face do que conseguiu surrupiar no refeitório, quando contempla a barrinha de metal que conseguiu enfim esconder, quando enfim, ainda que parcamente desanimalizado, faz as contas do dia que passou:

"Um dia sem uma nuvem carregada, sombrio. Quase um dia feliz.
Contava já no seu ativo três mil seiscentos e cinquenta e três dias como este. Desde o primeiro até ao último toque no pedaço de trilho.
Os três dias suplementares pertenciam a anos bissextos." (p. 196).

Ainda que esta conclusão remeta à repetição das mesmas vicissitudes no dia que se seguirá (a referência ao toque no metal do trilho que se ouvirá no dia de amanhã), não podemos deixar de lê-la como uma ode à sobrevivência. Se o romance de Soljenítsin tem como potência a denúncia de um regime bárbaro como o de Stalin - e uma das razões para a autorização do governo de Kruschev para a publicação do livro foi justamente a de denunciar o stalinismo -, salta dele também este laivo de redenção. Porque aquele que sobrevive conta. Leva a tocha adiante, testemunha que foi do horror e, no caso dos grandes escritores como foi Alexander Soljenítsin, portador do compromisso de passá-la aos da frente, àqueles que, como nós, tem algum poder - ainda que por meio da leitura de literatura - para impedir a repetição do horror. 

Jorge Verly

Referência da leitura: SOLJENÍTSIN, Alexander. Um dia na vida de Ivan Deníssovitch. Trad. de H. Silva Letra. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. 


sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Beethoven era 1/16 negro, de Nadine Gordimer


Olá,


Depois de Nelly Sachs em 1966, o Prêmio Nobel de Literatura só voltou a laurear outra mulher em 1991: Nadine Gordimer (1923-2014), autora sul-africana que, na palavras da Academia Sueca, "pela sua magnífica escrita épica trouxe - nas palavras de Alfred Nobel - um grande benefício para a humanidade". Ao saber da premiação, ela declarou aos jornalistas do mundo inteiro que correram a entrevistá-la que estava "realmente surpresa" por ter sido escolhida como a vencedora daquele ano, embora seu nome já figurasse desde a década de 1980 como potencial ganhadora. Gordimer, nascida em meio a uma família da minoria branca daquele país marcado pela divisão racial imposta pelo apartheid, fez de sua obra, que inclui romances, contos e ensaios, um libelo em prol da liberdade em seu país e que, sim, pode e deve ser compreendido como um monumento de traços epicistas em prol do benefício de cada ser humano, da África do Sul em particular e do conjunto da sociedade humano num plano mais geral.

Tendo vivido duas décadas após o Nobel, ela continuou produzindo regularmente após a concessão do prêmio, sempre legando ao público obras de exemplar qualidade narrativa. Deve-se destacar, por exemplo, que romances emblemáticos de sua produção, como A arma da casa (1998) e O engate (2001), apareceram após sua consagração mundial em face do maior prêmio de literatura do planeta. É também desse período a coletânea de contos Beethoven era 1/16 negro (2009), obra que selecionei para ler e resenhar nesta postagem. Escritas e publicadas em diferentes momentos dos anos 2000, as treze narrativas presentes no livro fornecem um panorama da escrita de Nadine Gordimer, seja por sua clareza e elegância no trato narrativo - o que faz dela um nome esteticamente indiscutível na história da atribuição do Nobel -, seja na abordagem de temáticas que, desde sempre marcaram a trajetória de sua escrita. Tratando das feridas ainda abertas e longe da cicatrização em um país marcado pela segregação racial como foi durante décadas a África de Sul, seus textos lidam com traumas, experiências autoficcionais, abordagens eruditas e filosóficas da realidade, jogos entre o grotesco e o sublime, sempre objetivando promover no leitor uma reflexão de alto nível sobre a empiria social, tanto pelo caminho da fabulação como pela reconstrução de episódios verídicos e tratados com especial deferência narrativa.




É o caso do conto que dá título ao livro. Tendo como personagem central um professor universitário de biologia, Frederick Morris (que o narrador confessa ser um nome falso, abrindo já um jogo entre identidade e representação), o conto começa com a reiteração da notícia dada pelo locutor de uma estação de rádio clássica de que Beethoven tinha 1/16 de sangue negro em suas veias. A informação intriga e interessa imediatamente o professor, um sujeito que, embora ativista da integração dos negros na sociedade sul-africana recém-liberta do apartheid, não se identifica com os brancos ainda portadores dos resquícios da segregação racial e tampouco é plenamente aceito pelos negros, de quem não partilha o dado identitário primordial, a cor. É então que, revisitando antigas fotografias de família, depara-se com um porta-retrato contendo a imagem de seu bisavô, um inglês que vivera por alguns anos na África, na virada do século XIX para o XX e que, como tantos outros, viera em busca de enriquecimento fácil na mineração que mobilizou a parte sul do continente. É aí que lhe surge a ideia salvífica: buscar nas raízes deste antepassado que, também como tantos outros, certamente manteve relações sexuais com negras e das quais poderiam ter nascidos filhos, parentes seus, garantindo sua parcela, ainda que pelas tortuosas linhas do parentesco, de sangue negro. Aproveitando o feriado de Páscoa e o recesso na universidade onde leciona, ele parte para a região de Kimberley, onde - de acordo com a busca que passa a empreender, fuçando na genealogia familiar - potencialmente estariam seus familiares de cor. Vagando por bairros que, mesmo após o fim da política oficial separatista, permanecem configurados como guetos negros, o professor faz perguntas, perde-se em conjecturas e acaba num bar onde faz amizade com beberrões, indagando se haveriam outros Morris por ali. É aí que sua busca empaca na impossibilidade da resposta, tão vasta a humanidade, tão vastos os laços sanguíneos possíveis, tão imensuráveis as relações marcadas pelo distanciamento naquele país maculado:

"(...) Um dezesseis avos. Um primo não sei quantas vezes distante da projeção de suas necessidades masculinas sobre o jovem macho garboso preservado sobre o vidro. Então o que foi que houve com a Luta (o genérico em caixa-alta de algo que nunca acaba, em que pesem as vitórias dos livros de história) pelo reconhecimento, começando comigo, de que nossa espécie, a espécie humana, não precisa de nenhum mérito percentual de pigmentos de sangue. Isso já fodeu com muita coisa no passado. Outrora havia negros, pobres-diabos, querendo ser brancos. Agora há um branco, pobre-diabo, querendo ser negro. O segredo é o mesmo." (p. 21)

A busca pela aceitação através do sangue negro em sua família esbarra na reiteração da história que, como lembra o narrador por várias vezes, nunca acaba. Numa alusão ao anjo de Walter Benjamin, é sempre a mesma história, o mesmo destroço. Ao acompanhar a impossível jornada através da genealogia perdida de Frederick Morris, é exatamente o que realiza o conto: repetir identidades, ainda que o olhar invertido agora introjete no branco o desejo (em tudo político) de ser preto.

Outros contos do livro revelam a enorme capacidade imaginativa de Nadine Gordimer e seu poder de transformar assuntos geralmente pertencentes ao plano ensaístico - pelo potencial grau de erudição necessários para se lidar com eles - em histórias divertidas e/ou tocantes, que fazem, sim, refletir, mas com um grau de prazer que todo grande texto tem (deve ter). Cito como exemplos "Sonhando com mortos" e "Gregor", ambos amparados na tática narrativa da autoficção. Colocando-se como personagem das duas histórias, a escritora traça comoventes (no caso do primeiro) e divertidos (no caso do segundo) painéis de suas relações com as ideias, as leituras e os intelectuais de seu tempo. Em "Gregor" a encontramos a lidar com uma situação insólita e que, desde o título, evoca o universo de Kafka, um autor a princípio distante do realismo histórico-político que marcou a produção de Gordimer. Narrado em primeira pessoa, ela nos conta que, após passar a noite lendo os Diários do autor de A metamorfose, tratou de ir ao escritório no dia seguinte para dar prosseguimento à labuta diária com as palavras e, ao ligar a máquina de escrever elétrica, deparou-se com uma barata que ali se encontrava encurralada, sem atinar em como tal coisa poderia ter acontecido sendo o aparelho hermeticamente fechado. Conectando o fato inexplicável à leitura da noite anterior (aliás, o conto é aberto com uma invectiva a respeito das relações entre nossas leituras e nossas vidas ordinárias), ela passa a viver uma kafkiana odisseia para libertar Gregor, a barata, da prisão na máquina de escrever, passando pela leitura dos manuais, consulta ao fabricante e auxílio de seu vizinho arquiteto e especialista em aparelhos modernos. Ao enfim abrirem o compartimento do visor da máquina, ambos descobrem que Gregor simplesmente desaparecera, incinerado nas entranhas da máquina, restando apenas um fino pó e "um segmento de uma perna preta, hieroglifo a ser decodificado" (p. 59). 

Já "Sonhando com mortos" tem o traço comovente do encontro no plano onírico com aqueles que partiram recentemente. Nadine, autora e personagem, relata um sonho em que, num restaurante chinês numa cidade indefinida e por ela poeticamente nomeada de "Algumlugarnenhum", aparecem as figuras de três importantes intelectuais recentemente falecidos à época (o conto é de 2005), os três seus amigos: o ensaísta árabe Edward Said, o jornalista inglês Anthony Sampson e a filósofa e escritora americana Susan Sontag. Notando nos três, que vão surgindo um a um no restaurante, características que ela apreciara enquanto vivos (a elegância dos trajes de Said, o exotismo da personalidade de Sampson, a risada aberta de Sontag) e que fazem com que ela se sinta acolhida entre por eles, a narradora vai poética e afetivamente descrevendo as conversações, diatribes, dissonâncias e convergências que os uniu enquanto vivos. 

Há ainda toques do grotesco, como em "Solitária", a narrativa em primeira pessoa de uma lombriga que, acolhida no corpo de seu hospedeiro e que, depois de adaptada a ele, é expulsa pela ingestão de vermífugos, não sem antes lembrar, com imenso rancor, que sua capacidade de botar ovos fará com que ela renasça outra vez; da solidão linguística em terra estrangeira, como lemos em "Língua Materna", em que uma alemã, ao casar-se com um sul-africano, vai morar na pátria do marido e, mesmo aprendendo o inglês, vê-se excluída da conversa numa festa em que as expressões idiomáticas e locais a separam do convívio e da compreensão das outras pessoas; da poeira que encobre segredos nas relações amorosas em "Allesverloren", em que uma historiadora recém-viúva, lembrando-se de uma confissão do marido sobre sua bissexualidade, vai através daquele que, antes dela, foi o homem de seu homem; da metaficção, como nos três contos da seção "Finais alternativos", histórias em que vemos a realidade se imiscuir na criação narrativa e, insidiosamente, mudar os rumos dos textos e de seus finais inicialmente pensados por seus autores. Estes e outros contos do livro dão profissão da fé narrativa de Nadine Gordimer, na medida em que se configuram como exemplos de uma prosa que preza não só pelo rigor, mas também pelo desejo de promover, pela riqueza das imagens e universos que constrói, momentos de reflexão igualmente ricos. 

É, enfim, uma mão repleta de áses o que as cartas narrativas de Nadine Gordimer nos oferecem. A inventividade de suas matizes narrativas surpreende e deleita o leitor em cada conto, cada página, cada linha de suas histórias. Sua sensibilidade é sempre voltada para o benefício (e nunca para o mero entretenimento) do outro. Poucas vezes li uma autora que soubesse tratar de temas tão elevados sem cair no pedante ou no hermético, no aborrecido ou no ilegível, sem que com isso sejam fáceis demais ou ofereçam ao leitor uma resposta definitiva, impedindo-os de pensar a partir daquilo que leram, de fabular sobre as muitas possibilidades de interpretação que há num texto literário significativo. Sua obra, nunca menos que irretocável, pode ser lida por qualquer um que saiba ler. E não é, pois, essa a essencial marca dos grandes autores? 

Jorge Verly

Referência da leitura: GORDIMER, Nadine. Beethoven era 1/16 negro. Trad. de Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 

domingo, 4 de agosto de 2019

Breve antologia, de Jaroslav Seifert


Olá,

No testamento de Alfred Nobel, uma das cláusulas estabelece que a justificativa para a atribuição dos prêmios que levam seu nome é a contribuição universal da obra, invento, descoberta ou atitude do laureado. Esta prerrogativa foi usada diversas vezes para explicar, por exemplo, a ausência de poetas considerados herméticos demais para serem lidos e compreendidos por um público amplo, cujo caso mais célebre é o do francês Paul Valéry, candidato tantas e tantas vezes e nunca agraciado com o Nobel. No plano oposto, poetas mais palatáveis e cultores de temáticas universais (sobretudo as amorosas) e amplas ganharam o prêmio, como Pablo Neruda ou Vicente Aleixandre. Jaroslav Seifert (1901-1986) situa-se num ente-lugar entre esses dois polos, a acessibilidade e o rigor formal. Escolhido como vencedor em 1984, este poeta tchecoeslovaco foi agraciado justamente por "sua poesia que, dotada de frescura e poder inventivo, oferece uma visão libertadora do indomável espírito e versatilidade do homem". Octogenário, Seifert não pode viajar a Estocolmo para receber seu prêmio, morrendo dois anos depois da honraria. Praticamente desconhecida fora dos circuitos leitores eslavos, o prêmio serviu de estímulo para que o público do mundo inteiro tivesses acesso a sua poesia lírica e inventiva, tal como asseverado pela Academia Sueca.
Infelizmente, não há livros integrais do autor publicados no Brasil. Para esta postagem, recorri a um livro encontrado quase que miraculosamente numa livraria online brasileira e que cobre, de maneira bastante sintética (infelizmente), a produção de Seifert: Breve antología, traduzido diretamente do tcheco por Clara Janes, a quem devo também o prefácio que auxilia o leitor não familiarizado com esta obra (o meu caso) a compreender influências, momentos e movimentos de uma poesia que, destaco já, tem o sabor de uma relevação. Como exercício e também como escolha, os poemas aqui citados foram por mim (mal) traduzidos desta edição espanhola, pelo que peço sinceras desculpas.


Janés destaca no referido prefácio que a poesia de Jaroslav Seifert pode ser dividida em três momentos distintos, embora percebamos ecos de uns nos outros: a do "poetismo", inspirada pelas lições dadaístas e pela poesia de Viteslav Nezcal e que recobre os anos 1920; a do lirismo clássico, bastante influenciada pelos acontecimentos históricos na Europa e em seu país, cobrindo os anos de 1930-50; e a fase metafísica, marcada por um maior rigor na concepção dos versos e na evocação das imagens, além de apresentar um amor incondicional à cidade de Praga, recorrendo os anos entre 1960-80.




Como exemplo da primeira fase, transcrevo o poema "Lâmpada":


Em redor da luz fria das lâmpadas
o bulício infatigável das asas agitadas

                E o senhor Edison
levantando os olhos do livro que lia
                sorriu
Ah, que quantidade de mariposas noturas
               salvou a vida!
(p. 110)


Temos aqui uma irônica visão do inventor da lâmpada, Thomas Edison, cercada de mariposas em torno daquela que uma noite iluminava seu momento de leitura. Alinhado com as vanguardas e com a cartilha do modernismo que, sobretudo, preconizava uma poesia eivada de sintetismo e de aproximação com o leitor através da reconstrução de imagens ("Em redor da luz fria das lâmpadas") e da recomposição de sensações quase tácteis ("o bulício infatigável das asas agitadas"), o poeta (re)cria um instante imaginado (mas absolutamente possível) em que este austero inventor, afeito à frieza dos cálculos e ao rigor de suas invenções - como são também rigorosos os poucos versos que a carpintaria de Seifert elege para compor seu poema -, tem uma epifania noturna, i. e., a ideia de que sua invenção mais famosa, a lâmpada, teve também uma função poética: salvar das mariposas que volteiam ao redor dela. A ironia, presente tanto no humor da cena como na eleição das palavras com as quais a constrói ("levantando os olhos do livro que lia / sorriu"), é o toque que confere vitalidade ao poema. Vemos neste texto curto, escrito em meados dos anos 1920, as marcas daquilo que chamou a atenção do júri sueco sessenta anos depois na atribuição do Nobel a Seifert: uma poderosa capacidade de inventar e também uma reconstrução das facetas humanas de cada ser, seja ele um celebrado inventor, seja ele o leitor do poema, ambos irmanados pela beleza que as "asas agitadas" do enxame de mariposa produz. 

E é nessa recomposição rigorosa da existência humana que intervém a História e sua(s) arbitrariedade(s), característica que, conforme vimos, marca a segunda fase da produção de Jaroslav Seifert. É o caso do poema "Sobre a ponte de Troia se encontrava ainda":

Sobre a ponte de Troia se encontrava ainda
              o exército de Schörner,
mas os alemães já estavam em fuga.
E os desejos amamentados em sangue
se estendiam da esperança à segurança.
E a segurança é um metal
               com o qual se pudem cunhar moedas
com o sorridente rosto da liberdade.

Maio pertencia em outros tempos aos amantes,
mas agora já não lhes pertence de todo.
                Os homens correm em busca das armas
escondidas debaixo das raízes das ervas
                que sabem calar.
Se houvessem tido mais tempo,
teriam derrubado até sua própria casa 
                 para fazer mais sólidas as barricadas
e em lugar de tapá-las com sacos de areia
                 teriam-no feito com seus próprios corpos.

Que pena que não ouvi
o que disse a enfermeirinha
                que corria com as bandagens!
Ainda se disparava!
                Tinha sangue no uniforme
e barro nas bochechas,
mas havia em seus olhos algo tão belo
que estremeci.
O primeiro soldado russo nos deixou nas mãos
uns punhados de tabaco negro.
Mas antes que pudesse encher meu cachimbo,
a guerra havia acabado.
(p. 41)

O mote do poema, como se percebe inicialmente - a clareza da poética de Seifert - é o final da Segunda Guerra Mundial, num espaço específico dos Bálcãs ("Sobre a ponte de Troia"), entre a fuga dos soldados alemães derrotados e a iminente chegada do exército soviético com o objetivo de libertar a região. Mas a despeito dos dêiticos e das marcas linguísticas que o poema apresenta ("ponte de Troia", "exército de Schörner", "primeiro soldado russo", "barricadas mais sólidas"), há também um movimento que indica a transição política pela qual a Tchecoslováquia passaria dali em diante com a implantação do socialismo no país. Isso pode ser percebido sub-repticiamente - o caráter inventivo da poética de Seifert - pela eleição de um espaço distante geograficamente para situar a "cena" retratada no poema e que indica a interdição em tratar do tema já sob o jugo do novo regime político que se instalou na pátria do poeta após o fim da guerra. Para tanto, Seifert se vale do recurso à ironia na construção dos quatro versos que encerram o poema:

"O primeiro soldado russo nos deixou nas mãos
uns punhados de tabaco negro.
Mas antes que pudesse encher meu cachimbo,
a guerra havia acabado."

O ato de encher e fumar o cachimbo, um desafogo em meio à carnificina de momentos antes, é interrompido justamente pelo final da guerra. Este ato irônico, pela potência de crítica inerente a esta figura de linguagem, pode ser lido como uma crítica ao próprio socialismo, i. e., à interdição da liberdade que o fim da guerra prenunciara, mas que o domínio soviético tampouco permitiria nos anos que se seguiram.

E é aí que a poesia de Jarsolav Seifert entre em sua última e mais vigorosa fase. Como se fugisse do real (sem contudo abandoná-lo),  os poemas escritos a partir dos anos 1960 até o final da vida do poeta se vestirão de uma capa metafísica e de um rigor ainda maior na constituição formal. Tomemos como exemplo "Na Vila Bertramka":

Se alguma vez existiu o paraíso,
                  não foi neste planeta.
A Terra gira ao redor de seu eixo
para que o o tempo
de todos os sofrimentos humanos
eternamente flua.
Contudo, o paraíso existiu. 
                 Sem dúvida, em alguma das estrelas.
Quem pode indicar com precisão
onde se encontram esses jardins celestiais?
Mas se existe no paraíso a beleza,
não podemos imaginá-la
a não ser recordando nosso mundo.
Os encantos das mulheres,
                  o perfume das flores,
a alegria das crianças
                  e as cores das asas das mariposas.

Se o céu está lá.
                  não pode haver debaixo dele lugar para a dor.
As pessoas lá não choram
e as lágrimas são mais escassas
que as pérolas em nossos rios.

Ali chegou.

E quando se pôs a tocar
e a trança se movia em suas costas,
deixaram de sussurrar até as conchas 
e aguçaram suas orelhinhas de porcelana.
Por que não pensaram em fechar a porta?
Por que não desengancharam os cavalos da carruagem?
Ele foi embora tão cedo!
                    E pelas portas da terra negra
voltou ao lugar de onde viera.

Atrás dele restou apenas uma pobre mecha de cabelo,
                    além de outra coisa
que faz a vida mais bela.
(p.59)

Uma nota da tradutora ao poema indica que a Vila Bertramka era o local preferido do compositor Wolfgang Amadeus Mozart em Praga, cidade que ele amava e à qual, assim como o próprio Seifert, dedicou algumas de suas mais belas composições. O poeta, aliás, escreveu um livro sobre a relação entre o compositor e sua amada cidade, Mozart em Praga (1985). O poema em tela retrata a busca por uma recomposição da beleza e que mobiliza cada um de seus versos. Assim é que a temática central, "Mas se existe no paraíso a beleza, / não podemos imaginá-la a não ser recordando o nosso mundo", carrega uma evocação do belo (a poesia, a música) através de sua mímese com o mundo, o real, o existente. Na impossibilidade de falar do real concreto (a Tchecoslováquia socialista), Seifert buscará na figura de Mozart um espaço para a construção do paraíso. As imagens e figurações que o poema vai montando ("os encantos das mulheres", "as cores das asas das mariposas", a impossibilidade de dor debaixo do céu daquela Praga anterior) conduzem à cena em que o compositor toca uma de suas obras e tudo ao redor dele se paralisa ante a beleza do que se vê-ouve: as conchas, os cavalos, as pessoas e as portas estão como que congelados, apreciando tão grande beleza. O poema lamenta a partida repentina (e dupla: de Praga e da vida) de Mozart, lembrando que ele deixou "pouco", uma pequena mecha de cabelos e "outra coisa / que faz a vida mais bela", i. e., sua música e toda a carga de encanto que ela traz em si e que este poema tão bem foi capaz de representar.

Os exemplos acima, espero, convidam a uma leitura mais ampla da obra deste poeta que, caso o Nobel não revelasse, ficaria restrito a um circuito pequeno de leitores. Eis aí a função, como já apontado em outras postagens deste blog, do prêmio: relevar autores, obras, temáticas e contextos de lugares distintos, pequenos e por vezes ignorados, mas que tem o toque da universalidade e contribuem para o benefício da humanidade, como desejou Alfred Nobel em seu testamento. Algo que Jaroslav Seifert certamente proporcionou com seus belos, fortes, inesquecíveis poemas.

Jorge Verly


Referência da leitura: SEIFERT, Jaroslav. Breve antología. Trad. de Clara Janés. Madri: Hiperión, 1984. 


quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela



Olá,


Em 1989, o Prêmio Nobel de Literatura foi concedido ao escritor espanhol Camilo José Cela (1916-2002) em razão de sua "prosa rica e intensa, que com compaixão contida forma uma visão desafiadora da vulnerabilidade humana". A escolha de Cela foi bastante criticada à época, menos por sua literatura, praticamente uma unanimidade crítica, e mais em razão de sua sua atuação política: o escritor lutou ao lado dos franquistas na Guerra Civil Espanhola (1936-39), apoiou a ditadura do General Franco e foi, inclusive, informante dos serviços de inteligência e censor oficial de obras literárias. Num contexto em que pouquíssimos escritores simpáticos às ditaduras foram agraciados com o Nobel (lembremos o caso do argentino Jorge Luis Borges, um dos maiores narradores do século XX, eterno candidato ao prêmio, mas que se viu distante dele por sua simpatia pública ao governo do chileno Augusto Pinochet), Cela configura-se como uma exceção. É um exemplo de uma literatura que, por sua criatividade, força, potência e argúcia narrativas, superou a mesquinhez das visões políticas do homem que a escreveu. Tanto é que o autor só ganhou o Prêmio Cervantes em 1994, depois da concessão do Nobel, um exemplo da nem sempre fácil digestão de sua figura por parte do mundo literário espanhol do período pós-franquista.

Para esta postagem, escolhi, dentre as muitas obras de Camilo José Cela disponíveis no Brasil, o romance A família de Pascual Duarte (1942). Ele é um considerado, desde sempre, um exemplo de estreia literária irretocável. Sendo simplesmente a primeira obra publicada pelo autor, ela configura-se como produto de uma criação madura e refinada, de uma carpintaria literária esmerada e com uma potência reflexiva sobre o absurdo da vida apresentadas por poucas narrativas do século XX. Mais espantoso ainda é o fato de que seu autor tinha apenas vinte e seis anos quando de sua publicação. Considerada como renovadora da prosa em espanhol, seja pelo impacto formal, seja pela crueza da história contada, A família de Pascual Duarte foi um sucesso quase imediato, ganhando incontáveis edições ao longo da vida de Cela e sendo uma de suas obras mais traduzidas ao longo de carreira literária.

Tendo como cenário uma aldeia miserável da província de Badajoz, situada "a umas duas léguas de Almendralejo" (p. 15), o romance tem como figura central Pascual Duarte, um sujeito pouco afeito ao trabalho e que, conforme vamos sabendo à medida em que a história é contada, encontra-se no cárcere pelo mais terrível dos crimes: matricídio. O leitor desavisado que chegou até aqui pode ter se aborrecido com esta revelação sobre o enredo, mas é inevitável (diria impossível) resenhar/analisar a narrativa sem, na linguagem das séries televisivas tão em voga nos dias de hoje, "dar esse spoiler". Embora o assassinato da mãe (não nomeada ao longo do romance) seja o ponto culminante do cru relato, ele é antecipado e entrevisto durante várias passagens das pouco mais de cento e quarenta páginas da obra. 



Estruturado como um manuscrito endereçado a um dos poderosos chefes políticos do povoado e escrito pelo próprio Pascual em primeira pessoa durante o interregno entre seu processo e a execução da pena capital à qual foi condenado, o romance tem como marcas formais o uso de uma linguagem crua e seca, conforme vimos, mas nem por isso menos profunda. Entremeada por ricas descrições das paisagens características da região ou por reflexões sobre o absurdo da vida dos camponeses esquecidos pelos poderes políticos na Espanha no final século XIX (período em que, presumivelmente, a história se passa), dos quais Pascual Duarte é exemplo e centro, o romance revela a escrita de uma personagem ricamente construída e sempre pronta a filtrar sua trágica existência pelas lentes áridas com as quais enxerga o mundo. 

Pascual Duarte é um homem terrível. Desde muito cedo se percebe distante do afeto dos pais, descritos de maneira cruel e sem isenções, e fadado a um destino de tragédias e crimes. Desligado das pessoas, arisco às possibilidades de envolvimento sentimental e propenso ao crime, vemos nas primeiras páginas do livro seu "afeto" a uma pedra e a forma cruel com a qual reage ao "julgamento" de uma das pouquíssimas criaturas que lhe devotaram algum amor ao longo da vida, a cadela Chispa, sua fiel companheira durante os longos períodos em que vagava pelos campos a caçar e a evitar o convívio humano:

     "Ao voltar, a cadela tomava a dianteira e me esperava sempre junto à encruzilhada; ali havia uma pedra redonda e achatada como uma cadeira baixa, da qual guardo tão grata lembrança como de qualquer pessoa; melhor, certamente, da que guardo de muitas delas. Era larga e um tanto afundada e quando me sentava o traseiro (com o perdão da palavra) escorregava um pouco e ficava tão bem acomodado que sentia ter de deixá-la; passava longos momento sentado sobre a pedra da encruzilhada, assobiando, com a escopeta entre as pernas, olhando o que havia para olhar, fumando meus cigarros. (...) A cadela continuava a olhar-me fixamente, como se nunca me houvesse visto, como se fosse culpar-me de um momento para o outro, e seu olhar me aquecia o sangue das veias de tal forma que se via chegar o momento em que teria de entregar-me; fazia calor, um calor espantoso, e meus olhos se reviravam dominados pelo olhar, como um cravo, do animal.
     Peguei a escopeta e atirei; voltei a carregar e voltei a atirar. A cadela tinha um sangue escuro e pegajoso que se estendia pouco a pouco sobre a terra" (p. 21-22)


O leitor brasileiro não pode deixar de fazer uma analogia entre este episódio narrado por Duarte e o relato da morte da cachorra Baleia, personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos, igualmente pelas mãos de seu dono, Fabiano. Além disso, a prosa seca e a paisagem árida aproximam formal e tematicamente os dois romances. No entanto, as duas cenas se distanciam justamente pela "natureza" das ações dos dois assassinos: enquanto é a compaixão e o desejo de livrar sua cadela da fome que levam Fabiano ao tiro de misericórdia em Baleia, a motivação para o assassinato (e que outra coisa seria?) de Chispa por Pascual Duarte é seu medo do julgamento. Em várias passagens da narrativa, vemo-lo fugir dos olhos julgadores do outro: o do pai, bêbado e fanfarão; da irmã Rosário, mulher de vida devassa, mas que lhe devota algum afeto; da primeira mulher, Lola, inicialmente devotada mas depois adúltera; e, sobretudo, da mãe, em quem o jovem enxerga o olho arquitípico da maldição, uma vez que, a despeito de sua frieza e desprezo pelo filho, é a responsável por tê-lo trazido a este mundo absurdo e vazio de sentido.

Um dos poucos momentos de felicidade pelos quais atravessa Duarte em sua malfadada existência é justamente seu casamento com Lola. Moça da aldeia, ela se aproxima da família de Pascual logo após uma das tragédias que se abatem sobre ela: a morte de Mário, irmão mais moço do narrador e que nasce, após um parto difícil, vítima de múltiplas deficiências e que lhe impedem de andar, falar e de expressar algum sentimento em relação à terra e àqueles que o rodeiam, os seus, sua família, a não ser por um olhar baço "com seus olhos pretinhos, os consolos!" (p. 41). Aliás, o parto coincide com a morte do pai, vítima de hidrofobia e encerrado num quarto feito um animal, não sem antes ter-lhe sido revelado pela mãe que o novo filho era, na verdade, fruto de uma infidelidade com don Manuel, um proprietário de terras local. Mário morre antes de completar dez anos, afogado numa pipa de azeite. A mãe pouco ou nada sofre, sendo Pascual e Rosário os únicos a chorarem aquela morte. E é após o velório que Lola, aproximando-se de Pascual, pergunta-lhe: 

"- És como teu irmão?
  - Eu?
  - Sim, tu."
(p. 48)

Esse diálogo enfurece Pascual e ele a estupra ("Eu a mordi até sangrar, até ficar rendida e dócil como uma égua nova", p. 49), engravida e faz dela sua esposa, sempre na linha da total satisfação de seus caprichos. O casamento, inicialmente feliz e permeado por momentos de afeto, como na lua-de-mel passada em Mérida, é apenas um prelúdio de uma nova jornada de Pascual ao inferno: ao voltarem da viagem, a mulher cai da égua enquanto o marido vai à taverna beber com os amigos e perde o bebê. Irado, o desafortunado camponês assassina a égua a golpes de navalha. A depressão se apossa dele e os presságios sobre sua má sorte se avolumam ("Sempre tive um olho bom para a desgraça", p. 77), mas logo Lola engravida outra vez. O fato deste novo filho ter nascido com saúde e ser belo como os pais não tira deles o sentimento de que sua vida será breve, o que de fato se confirma onze meses depois, com a morte do menino por uma febre maligna. 

É aí que o relato se adensa e se tinge de contornos ainda mais trágicos, como se Pascual Duarte estivesse a preparar o leitor de seu manuscrito para a descrição do crime capital que está prestes perpetuar. Primeiro, ele resolve abandonar a aldeia e a família e parte para Madri e, depois, La Coruña, onde intenta emigrar para a América. Permanece na região costeira espanhola por dois anos em subempregos, vivendo em pensões e casas de favor. Decide então voltar e encontra Lola grávida de outro homem. Indagada sobre quem seria o pai da criança e presa de imensa angústia, ela acaba morrendo aos pés de Pascual, não sem revelar o nome de Estirão, ex-noivo de Rosário, como sendo pai do filho que morre com ela. Cego de ódio, Duarte caça e mata Estirão com um pisão de bota sobre o peito e passa três anos preso. Por bom comportamento e aparentando regeneração, ele é solto e retorna à casa da família. Enquanto a mãe lhe é fria, Rosário se alegra com a soltura do irmão e, tempos depois, apresenta-lhe Esperanza, com quem Pascual logo se casa. Mas nem este casamento arrefece seu ódio que, tantos e tantos anos latejando, acaba desaguando em sua mãe, como um agravo ao próprio ato de ter nascido ("Nada fede tanto nem tão mal como a lepra que o mal passado deixa na consciência, como a dor de não sair do mal apodrece-nos este ossário de esperanças mortas, logo depois de nascer", p. 132). Duarte espera e maquina, até que uma noite aproxima-se do quarto da mãe e, com uma faca, atira-se sobre ela que, após uma terrível luta, é morta pelo filho: 

     "Foi quando pude cravar-lhe a lâmina na garganta...
     O sangue escorria sem freios e me bateu no rosto. Estava quente como um ventre e sabia ao sangue dos cordeiros.
   Soltei-a e saí fugindo. Tropecei em minha mulher na saída; o candeeiro se apagou. Peguei o campo e corri, corri sem descanso, durante horas inteiras. O campo estava fresco e uma sensação de alívio me correu pelas veias.
     Podia respirar..."
(p. 138)

A narrativa de Pascual Duarte termina neste ponto. As páginas finais do romance consistem num breve relato daquele (anônimo) que transcreveu o manuscrito e lhe deu a feição de livro e duas cartas, uma do capelão e outra de um soldado da prisão, que relatam ter sido bela a caminhada do infeliz narrador ao paredão, altaneira e repleta de arrependimento, mas que, diante do pelotão de fuzilamento, Pascual esperneou e gritou, pois tinham medo de morrer.

Tenho consciência de, nos parágrafos acima, ter feito mais um resumo que uma análise do romance de Camilo José Cela. Intencionalmente. Esclareço: foi mister meu tentar transmitir, na reiteração dos fatos lidos no livro, a crueza dessa vida destinada ao trágio e à morte desde o princípio. Tudo o que Pascual Duarte fez e realizou na vida tem o toque da dor, do infortúnio, da maldição e da morte. Tanto que as palavras finais de seu terrível relato ("Podia respirar") podem ser compreendidas literalmente, como se uma bolha de ar se desprendesse de um corpo que, até então, o aprisionasse num círculo infindo de tragédias. Penso que - na evocação dos motivos encontrados pela Academia Sueca para atribuir a Cela o Nobel - seja "a desafiadora vulnerabilidade humana" a principal personagem de A família de Pascual Duarte: é ela o motor de todos os acontecimentos que o livro encerra. Tanto que, ao morrer, Pascual grita, como gritamos também nós, ante a estupidez e o nonsense do mundo que rodeia cada ser humano.

Jorge Verly

Referência da leitura: CELA, Camilo José. Trad. de Janer Cristaldo. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 

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